O FIM DE UM QUILOMBO: Megaporto e ferrovia
ocuparão 87% de território quilombola no MA. Mas moradores não sabem
A PAISAGEM da
Ilha do Cajual, no Maranhão, vai mudar. A mata frondosa e os palmeirais de coco
babaçu vão ser substituídos por navios cargueiros de até 350 metros de
comprimento, levando milhares de toneladas de ferro, cobre, soja, milho e
outras commodities para a China, Estados Unidos e Europa.
Até 2027, os
quilômetros de praias e mangues darão lugar a um complexo portuário, com linhas
férreas, subestações de energia e galpões, onde 1,8 mil trabalhadores vão se
revezar dia e noite na ilha do município de Alcântara
Esta é a mudança que
os portugueses naturalizados brasileiros Paulo Salvador, Nuno da Mota e Silva e
Nuno Martins, da empresa Grão-Pará Maranhão, a GPM, pretendem concluir. A ideia
é ocupar quase 90% do Território
Quilombola Vila Nova, na Ilha do Cajual, com o Terminal
Portuário de Alcântara e a ferrovia EF-317.
“Um empreendimento
dessa envergadura, na prática, extingue o território quilombola. Inviabiliza
por completo a proteção do território”, explicou Yuri Costa, defensor público
da União no Maranhão. A defensoria entrou no ano passado com uma ação civil
pública que cobra a titulação do quilombo.
O projeto foi pensado
para escoar soja e outras commodities do agronegócio e da mineração para China,
Estados Unidos e países
da Europa. Mas, no estudo de viabilidade encomendado
pela GPM, o principal produto a ser transportado é o minério de ferro, extraído
pela Vale S.A. da Serra dos Carajás, no Pará.
Hoje, o minério é
escoado pela Estrada de Ferro Carajás até o Terminal Portuário Ponta da
Madeira, em São Luís, ambos operados pela Vale. O projeto, segundo a GPM, é uma
“resposta à necessidade de satisfazer a demanda futura para exportação de
minério de ferro, através de um porto de águas profundas”.
A Ilha do Cajual é uma
Área de Proteção Ambiental das Reentrâncias Maranhenses, com importância
internacional. É um ambiente “bastante preservado” e sensível, segundo um
relatório do Ibama de 2018, e ainda abriga fósseis de dinossauros que habitaram
a região há cerca de 95 milhões de anos.
É também uma área
quilombola onde 51 famílias, cerca de 92 pessoas, vivem de pesca, agricultura e
criação de pequenos animais – um modo de vida herdado de seus antepassados,
trazidos na condição de escravizados há pelo menos três séculos.
O processo para
titular o território como quilombola no Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária, o Incra, e na Secretaria de Coordenação e Governança do
Patrimônio da União no Maranhão se arrasta desde 2007. O processo é a única
forma de dar às famílias a regularização definitiva do terreno.
No entanto, em 2017, a
Associação de Moradores da Comunidade Negra Rural Quilombola de Vila Nova Ilha
do Cajual assinou um contrato cedendo o uso e usufruto de mais de 14 milhões de
metros quadrados do território – ou 1,4 mil campos de futebol – para a instalação
e operação do porto. O acordo, em nome de toda a comunidade, é válido por tempo
indeterminado.
Com investimento
bilionário e duas autorizações federais outorgadas, o empreendimento da GPM
prevê parceria da empresa pública alemã Deutsch Bahn e
tem forte apoio do atual governo federal e do governo
do Maranhão.
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Porto ocupará 87% do território
quilombola
Agora, a comunidade
está prestes a assistir ao início das obras, mesmo sem as devidas consultas
legais. Em 2 de janeiro, o Ibama, órgão federal responsável por conceder ou não
as licenças para o empreendimento, informou que a GPM ainda não tinha entregado
todos os documentos que detalham os impactos socioambientais da obra.
O território
quilombola da Ilha do Cajual ocupa uma área de pouco mais de 1.630 hectares, ou
1.630 campos de futebol, de acordo com dados do Cadastro Ambiental Rural, o
CAR. Comparando as coordenadas geográficas da área terrestre do futuro porto,
com as do território quilombola, é possível constatar que a associação permitiu
que mais de 87% do território seja devastado para instalação do Terminal
Portuário de Alcântara.
A área a ser destruída
inclui residências, roças, região de preservação e uma escola municipal de
ensino fundamental.
Para Danilo Serejo,
cientista político e membro do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de
Alcântara, o Mabe, a ilha é pequena para abrigar um empreendimento dessa
magnitude. “Ainda que o porto comece exigindo uma estrutura mínima de trabalho,
o que se espera de um empreendimento desse é que, com a demanda, ele vá
necessitando de mais áreas. Inevitavelmente a comunidade vai sair”, ele diz.
Procurado
pelo Intercept Brasil, o diretor-geral da Grão-Pará Maranhão, Paulo
Salvador, informou que o empreendimento ocupará “apenas 20% do total da Ilha do
Cajual”, e que o início das obras e operação do empreendimento têm cronograma
de dois a três anos, a depender dos processos administrativos de autorização e
licenciamento.
Perguntamos ao
empresário para onde as famílias seriam removidas, uma vez que o projeto será
implantado em grande parte da área do quilombo.
Ele disse que as
decisões sobre o desenho do empreendimento e seus impactos sobre a comunidade
estão sendo “tomadas em conjunto, buscando-se a harmonização das necessidades
de implantação do terminal, com a localização dos diversos núcleos
habitacionais existentes”.
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Ferrovia atravessa comunidade, mas
moradores não sabem
A ferrovia que consta
no projeto da GPM tem 520 quilômetros e atravessa pelo menos 22 municípios
maranhenses, segundo traçado disponibilizado pela própria empresa aos órgãos do
governo. A estrada de ferro cruza mais de uma dezena de assentamentos rurais, e
em alguns pontos passa a pouco mais de 10 quilômetros de distância de Terras
Indígenas.
Em um dos mapas de
afetações produzidos pela GPM, o quilombo Tanque de
Valença, no município de Matinha, não aparece
representado, mas ele é cortado ao meio pela linha férrea. Visitamos a
comunidade em agosto do ano passado, e nenhum dos mais de 10 moradores com quem
conversamos sabia da existência do empreendimento.
Para Danilo Serejo, os
impactos socioambientais da ferrovia serão ainda piores que os do porto. “Você
tem a exposição de uma população ao pó de minério de ferro, que vai gerar uma
série de problemas respiratórios, de pele, de saúde naquelas pessoas e comunidades
que vão estar à margem dessa ferrovia. Ainda tem o problema da poluição sonora,
de livre circulação e trânsito no território”.
Em troca do uso e
apropriação dos recursos do território, os empresários portugueses oferecem no
contrato 51 residências com saneamento básico, água, energia, escola de ensino
fundamental, campo de futebol, espaço para manifestação religiosa e posto de saúde.
Eles, no entanto, não
especificam onde esta estrutura será instalada. O contrato também diz que à
associação parceira “caberá o fruto correspondente a 6% do empreendimento, com
todas as suas respectivas vantagens”. Mas não há informação sobre prazos e condições
da repartição de lucros, e nem detalhes sobre as “respectivas vantagens”.
Em março de 2018,
faltando poucos dias para se completar um ano da assinatura do acordo entre
empresa e associação quilombola, seis analistas do Ibama fizeram uma vistoria
técnica na Ilha do Cajual e conversaram com moradores.
No relatório, os funcionários
destacaram que “quando indagados pelo Ibama sobre o empreendimento, foi
verificado que, de modo geral, para os moradores havia pouca informação sobre a
correta localização e os impactos que ocasionaria”.
No início de
fevereiro, perguntamos a Josilene Pereira Penha, vice-presidente da associação
quilombola, se ela sabia que o território seria quase todo ocupado para a
instalação do empreendimento.
“Para a gente que vive
naquelas terras, a gente vê, escuta as coisas, mas às vezes não sabe fazer
aquela análise clínica sobre o que a gente está olhando ali”, respondeu Penha,
que foi uma das três pessoas da associação que assinou o contrato com a GPM, ainda
em 2017.
Na época, ela era
secretária-geral da entidade. Penha informou que a orientação da atual
presidente, Vanda Almeida Pereira – que era vice-presidente em 2017 –, é de não
dar entrevista sobre o empreendimento.
Paulo Salvador,
diretor-executivo da Grão-Pará Maranhão, disse que a obra ainda está em fase de
licenciamento ambiental e que a “associação quilombola da Ilha do Cajual tem o
direito, por lei, ao usufruto do território da ilha, como foi reconhecido por todos
os órgãos consultados antes do processo de autorização”.
Disse, ainda, que a
comunidade é parceira do projeto e que a associação está ciente do seu papel,
“conforme constatamos recorrentemente nas nossas reuniões mensais, desde 2017”.
Ainda segundo ele, a distribuição de 6% dos lucros à associação, prevista no
contrato, será feita “como a qualquer acionista, sem data de expiração, sempre
e quando o terminal portuário tenha resultados positivos”.
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Empresa não consultou Fundação Palmares e
obteve facilidades de agência federal
O termo de parceria
assinado entre a GPM e a associação quilombola foi decisivo para garantir aos
empresários a possibilidade de celebrar dois contratos de adesão com o governo
federal e iniciar o processo de licenciamento.
O documento de
propriedade da terra, de ocupação ou de direito de uso e fruição é uma exigência do governo federal ao
empreendedor que pretende instalar e explorar infraestrutura portuária. Sem
ele, o processo não avança.
No entanto, um
contrato como esse, tratando de território quilombola, deveria ser precedido
por uma consulta prévia às comunidades atingidas pelo empreendimento, conforme
prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
Yuri Costa, o defensor
público, argumenta que o acordo feito diretamente pela GPM não respeita as
diretrizes nacionais e internacionais sobre o tema, “o que gera, na teoria, uma
nulidade de toda a cadeia de licenciamento do projeto”.
Em dezembro de 2018,
ainda no governo de Michel Temer, a Agência Nacional de Transportes
Aquaviários, a Antaq, assinou o contrato autorizando a GPM a construir e
explorar a instalação portuária para uso privado por 25 anos
prorrogáveis.
Mas a procuradoria da
própria Antaq expressou preocupação sobre a validade do contrato que transmite
a posse do terreno. Também disse ter dúvidas se a “associação teria
legitimidade para celebrar o contrato em nome da comunidade quilombola”.
A procuradoria, então,
sugeriu que a Antaq consultasse a Fundação Palmares, órgão federal que delibera
sobre políticas públicas ligadas aos povos quilombolas. A Antaq não seguiu a
recomendação e, ainda em dezembro de 2018, um dia depois do alerta, o
então diretor-geral da agência, Mário Povia, assinou a resolução autorizando a
construção.
Questionado sobre o
porquê de não consultarem a Fundação Palmares, o atual diretor da Antaq, Alber
Furtado de Vasconcelos Neto, respondeu que não era uma atribuição da
agência.
“Se ele [empreendedor]
entrega aqui o documento, a gente tem que dar fé pública. Se o documento não é
válido, é outra discussão. Ele não consegue iniciar uma construção numa área
que não é dele. A minha competência, na Antaq, não é ficar perguntando nos
cartórios se o documento está certo, se está ok, se o escrivão escreveu ok.
Cada um que responda pelos seus atos”.
Para Danilo Serejo, do
Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara, o contrato entre a
empresa e a associação tem apenas um efeito: validar a narrativa política do
empreendimento de que GPM e comunidade estão caminhando em comum acordo. “Ele viola
a convenção da OIT e, por consequência, viola a Constituição. O problema é que
ele autoriza a narrativa da empresa. Isso fragiliza o enfrentamento”.
Serejo diz que o Mabe
chegou a acionar o Ministério Público Federal em 2018, mas não houve respostas.
“É preciso que se diga: nós não temos no Maranhão, hoje, o MPF atuante como
tivemos em anos anteriores. Essa situação do porto do Cajual só está avançando
da forma como está porque não houve ação mais contundente do MPF”, apontou.
Procurado, o MPF disse
que, até o momento, a GPM afirmou que ainda não interveio na área de
implantação do empreendimento da Ilha do Cajual, pois aguarda autorização do
Ibama. O inquérito civil aberto a partir da denúncia feita pelo Mabe foi
arquivado. O MPF não respondeu questões específicas sobre a legalidade do
contrato de parceria assinado entre empresa e associação quilombola, e nem
sobre o impacto para a comunidade.
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GPM pressiona pela titulação do território
quilombola
Em janeiro de 2023, a
Defensoria Pública da União no Maranhão moveu uma ação civil pública cobrando
a conclusão da titulação do território quilombola pelo governo federal. A GPM
tentou se habilitar como parte interessada no processo, mas a juíza
Bárbara Malta Araújo Gomes não aceitou. Em decisão de dezembro de 2023, ela
determinou que o Incra conclua a titulação do território em seis meses.
Segundo Paulo
Salvador, representante da GPM, o interesse da empresa em ser parte do processo
é “contribuir, ao lado da DPU, para a regularização definitiva da comunidade
quilombola residente na ilha do Cajual”.
Em novembro do ano
passado, empresários da GPM e seus assessores jurídicos estiveram no Incra
“pleiteando a titulação da área [quilombola]”, nas palavras do próprio
superintendente do órgão, José Carlos Nunes Júnior. Para ele, o motivo era
claro: entrar em acordo com a associação dos quilombolas para a implantação
desse porto”.
Empossado em abril do ano passado, o
superintendente nunca esteve, até o dia em que falei com ele, com os
quilombolas da Ilha do Cajual. Perguntei se a retomada do processo de titulação
se deu só após o pedido dos empresários portugueses. Ele negou. “O que norteia
nossa atitude é a sociedade”, justificou.
Em janeiro deste ano,
o Incra recorreu da decisão contra o prazo e a multa estipulados pela juíza na
ação civil pública. O Instituto alegou falta de tempo, recursos e pessoal
para cumprir com sua obrigação, mesmo após quase 20 anos desde o primeiro
pedido de titulação da comunidade. Ainda não há decisão sobre o recurso.
Para o defensor Yuri
Costa, o projeto inviabiliza a própria titulação, capaz de garantir segurança
jurídica à comunidade.
Enquanto isso, desde
janeiro deste ano, funcionários da empresa Virtú Ambiental estão na Ilha do
Cajual visitando moradores para a elaboração do estudo ambiental.
“Serão vários dias em
campo ouvindo as comunidades na área de influência do empreendimento”, escreveu em seu Instagram
uma das sócias da empresa, Isabella Pearce. “Nessa missão, as líderes locais
(coincidentemente, todas mulheres) estão nos guiando de casa em casa e nos
ajudando a estabelecer esse amplo diálogo, porque enxergam, assim como nós, a urgente
necessidade de melhora nas condições materiais de vida, ao tempo em que se
preserva a identidade cultural”.
O marido de
Pearce, Francesco Cerrato, é
também sócio da Virtú Ambiental e membro suplente
do Conselho Estadual de Meio Ambiente do Maranhão, Consema, até 2025.
Solicitamos uma
entrevista a Isabella Pearce, mas ela afirmou que os diretores da GPM são as
pessoas mais legítimas a responderem. Entramos em contato também com a
Superintendência do Patrimônio da União no Maranhão e com o prefeito de
Alcântara, Nivaldo Araújo, mas não
tivemos retorno até a publicação da reportagem.
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Governos Temer, Bolsonaro e Lula deram aval
para porto em cima de área quilombola
Mesmo sem as licenças
necessárias para iniciar as obras, as últimas administrações do governo federal
deram importantes passos burocráticos para viabilizá-las.
Em dezembro de 2021,
durante o governo Jair Bolsonaro, o Ministério da Infraestrutura autorizou a empresa
a construir e explorar, por 99 anos, a ferrovia EF-317, de 520 quilômetros,
ligando o porto na Ilha do Cajual à cidade de Açailândia, no Maranhão.
Em março de 2023, no
início do terceiro governo Lula, a Antaq publicou o primeiro aditivo do
contrato de adesão do porto, atualizando o cronograma de execução do projeto e
inserindo o valor global de investimento: R$ 4,7 bilhões.
O superintendente da
Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Programas Estratégicos do Maranhão,
José Reinaldo Tavares, se gaba das articulações para viabilizar o
empreendimento. Ele já tratou do projeto com os ministros do Transporte, Renan
Filho; Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes; e com o
vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, e ministro da Indústria,
Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin.
“Também estivemos com
uma das maiores estatais rodoviárias do mundo, a alemã Deutsch Bahn e
realizamos diversas reuniões. A empresa responsável pela execução tem se
empenhado para que, neste ano de 2024, seja iniciada a primeira fase do
projeto”, completou.
A Deutsche Bahn será a
gestora da operação ferroviária, disse Paulo Salvador, diretor-executivo da
Grão-Pará Maranhão. A gestão funcionará em um regime aberto, que permite que
qualquer operador utilize a ferrovia.
Procuramos o
Ministério dos Transportes, que informou que a autorização ferroviária foi
assinada pelo governo anterior e, após essa fase, a pasta “não arbitra
sobre nenhum trâmite”. O Ministério de Portos e Aeroportos não respondeu ao
pedido de entrevista. Já a alemã Deutsch Bahn disse que não comentaria o
projeto.
Fonte: Por Felipe
Sabrina, para The Intercept
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