'Brasil não pode entrar apenas como vítima
em debate sobre reparação de Portugal pela escravidão', diz historiador
A discussão sobre
reparação histórica pela escravidão e pelos crimes cometidos durante o período
colonial não pode se resumir a um diálogo entre Portugal e Brasil, afirma o
historiador Luiz Felipe de Alencastro, um dos maiores pesquisadores da
escravidão no Brasil.
É preciso trazer
Angola e outros países africanos, como Moçambique e Benin, para o debate,
defende Alencastro. E o Brasil não pode entrar nessa discussão somente como
vítima.
Reparação histórica é
um conjunto de ações cujo objetivo é diminuir as injustiças que aconteceram no
passado contra certos grupos sociais, e assim promover a igualdade e combater a
discriminação.
"Os
afro-brasileiros são vítimas, mas houve colonos brasileiros e proprietários,
fazendeiros e comerciantes brasileiros [que participaram do tráfico
transatlântico de escravizados] já desde antes da independência", diz o
historiador, em entrevista à BBC News Brasil.
"Então, o país
também deve assumir a responsabilidade, porque ele foi coparticipante, ao lado
de Portugal – e, depois da independência, sozinho –, da pilhagem dos povos
africanos."
Alencastro é professor
da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo, e também professor emérito da
Universidade de Sorbonne, em Paris, onde lecionou por 14 anos.
O autor do livro O
trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (Cia. das Letras, 2020)
falou à BBC News Brasil pouco depois de o presidente português, Marcelo Rebelo
de Sousa, reconhecer pela primeira vez a culpa de Portugal pela escravidão.
Em conversa na
terça-feira (23/4) com correspondentes estrangeiros, Rebelo de Sousa afirmou
que seu país assume total responsabilidade pelos danos causados pela
colonização, como massacres a indígenas, a escravidão de milhões de africanos e
o saque de bens.
Rebelo de Sousa
afirmou que Lisboa deve arcar com os custos dos crimes cometidos no passada.
Ele não especificou, no entanto, de que forma essa reparação histórica seria
feita.
"Temos que pagar
os custos [pela escravidão]", declarou o social-democrata, que é chefe de
Estado de Portugal – enquanto o primeiro-ministro, Luís Montenegro, exerce a
função de chefe de governo.
"Há ações que não
foram punidas, e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados
e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso", completou.
• ‘Se fosse indenizar, Portugal estaria
arruinado’
Para Luiz Felipe de
Alencastro, é fundamental não deixar o debate acabar após a declaração do
presidente de Portugal.
"Se fosse para
indenizar para valer, Portugal estaria arruinado, tal é o estrago que foi
provocado na África e depois na exploração dos africanos no Brasil, e também em
São Tomé", diz o historiador, referindo-se à ilha principal de São Tomé e
Príncipe, país insular africano localizado no Golfo da Guiné, que foi
colonizado por Portugal até 1975.
Alencastro lembra que,
entre os séculos 16 e 19, dos 5,8 milhões de africanos embarcados por navios
portugueses ou brasileiros, 4 milhões vieram da África Central Ocidental, onde
hoje é Angola.
E que, enquanto Luanda
(a capital angolana) foi o maior porto de embarque de escravizados de toda a
África – um porto sob controle português –, o maior porto de desembarque era a
capital do Vice-Reino do Brasil e depois capital do Brasil independente: o Rio
de Janeiro.
"Quem deveria ter
reparações e mil desculpas são os povos de Angola, que foram os que mais
sofreram com a pilhagem humana feita pelos portugueses e brasileiros",
afirma Alencastro.
"Então, vamos
introduzir Angola aí nesse debate. Não é só um debate entre Portugal e o
Brasil."
Segundo o historiador,
também deveria ser incluído na discussão Moçambique, de onde vieram cerca de
250 mil escravizados no século 19, quando o Brasil já era independente.
E ainda o atual Benin,
antigo Daomé, parte da região do golfo da Guiné conhecida no período colonial
como Costa da Mina, de onde também vieram muitos escravizados trazidos por
navios brasileiros e portugueses.
• Mudança de postura
Alencastro observa que
o reconhecimento por Portugal de sua responsabilidade histórica pela escravidão
marca uma mudança de postura do presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
"Isso talvez
explique as reações que isso [a declaração de Rebelo de Sousa] suscitou em
Portugal", considera o pesquisador.
Na quarta-feira
(24/4), o partido de direita radical português Chega criticou a fala do
presidente de Portugal. O deputado André Ventura, líder do partido, disse que,
se pudesse, pediria a destituição do mandatário.
Rebelo de Sousa e o
Estado português não haviam respondido às críticas do Chega até a publicação
desta reportagem.
O professor da FGV
lembra que, em abril de 2017, o presidente português esteve em Senegal, em
viagem oficial, e na Ilha de Goreé, que fica em frente a Dacar.
A ilha abriga a Casa
dos Escravos e a Porta do Não Retorno, museu e memorial dedicados à história do
comércio transatlântico de escravizados, que já foi visitado por figuras como o
papa João Paulo 2°, o ex-presidente americano Bill Clinton, o ex-líder sul-africano
Nelson Mandela, além do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e
o músico Gilberto Gil, quando era ministro da Cultura, durante o primeiro
mandato do petista.
"O que é curioso
é que, nesta viagem, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa disse que Portugal
reconheceu a injustiça da escravidão quando a aboliu em 1761", lembra
Alencastro.
"Mas essa
abolição dizia respeito unicamente à escravidão de africanos e afrodescendentes
que existia no território continental de Portugal", observa.
O historiador destaca
que, pouco antes, em 1755, o nobre português Marquês de Pombal (1699-1782)
havia criado a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, que
englobava o Norte do Brasil, introduzindo, sistematicamente, pela primeira vez,
escravizados africanos nesta região.
Em 1759, Pombal criou
a Companhia do Pernambuco e Paraíba, que detinha o monopólio comercial nos
territórios de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande e Ceará.
"Era uma
companhia portuguesa, sediada em Lisboa e no Porto, [criada] para promover o
tráfico de escravizados. E isso estava dito na lei", enfatiza Alencastro.
"Então, a
observação dele [Rebelo de Sousa] de que Portugal aboliu a escravidão em 1761 é
inexata. E, como se trata de um homem culto, é surpreendente – para ser
generoso", ironiza.
Alencastro lembra
ainda que, em 2020, uma estátua do padre António Vieira (1608-1697), no centro
de Lisboa, foi vandalizada. O monumento recebeu um banho de tinta vermelha e
teve a palavra "descoloniza" grafitada em sua base.
Um dos mais influentes
padres jesuítas do século 17, Vieira passou longo tempo no Brasil, atuando na
catequização de indígenas. Foi também escritor e é conhecido ainda hoje por
seus sermões.
Alguns historiadores
consideram, porém, que paralelamente à sua atuação contra a escravização dos
indígenas, Vieira teria sido condescendente com o trabalho forçado dos
africanos.
"Marcelo Rebelo
de Sousa protestou contra a vandalização [da estátua do jesuíta em 2020], mas
não entrou em nenhuma nuance a respeito do padre António Vieira. Aliás, pouca
gente em Portugal falou disso. E agora [em 2024] vem essa declaração", observa
Alencastro.
Para o historiador, é
difícil avaliar o que causou a mudança de postura do presidente português.
Na quarta-feira, a
ministra brasileira da Igualdade Racial, Anielle Franco, afirmou que a
declaração de Rebelo de Sousa é "fruto de séculos de cobrança da população
negra".
A ministra disse ainda
esperar que ações concretas de reparação ocorram, já que o próprio presidente
parece estar comprometido com isso.
"Nossa equipe já
está em contato com o governo português para dialogar sobre como pensar essas
ações e, a partir daqui, quais passos serão tomados", declarou Franco.
A declaração da
ministra também gerou reação do Chega.
“Em reação às
declarações vergonhosas do presidente da República, a ministra do governo de
Lula vem agora exigir de Portugal medidas concretas... e o dinheiro que lá
investimos e as estradas que construímos, também nos vão devolver? Mas que
grande parvoíce!”, afirmou o partido na rede social X (antigo Twitter).
• Um país 'atrasadíssimo'
O professor emérito da
Sorbonne considera que Portugal está atrasado em relação a outras antigas
potências coloniais, como Inglaterra e Holanda, no reconhecimento de sua
responsabilidade pelos crimes cometidos contra africanos escravizados e
indígenas.
Em 2022, por exemplo,
a Holanda pediu desculpas pela colonização e pela escravidão na África e na
Ásia. Também anunciou a criação de um fundo de 200 milhões de euros (cerca de
R$ 1,1 bilhão), destinado ao financiamento de "iniciativas focadas no legado
da escravidão transatlântica".
Em 2023, o rei Charles
3º, do Reino Unido, manifestou seu apoio a um projeto de pesquisa sobre o papel
da monarquia britânica na escravidão.
Pesquisas sobre o tema
estão sendo realizadas pela Universidade de Manchester, com base em documentos
oficiais disponibilizados pelo Palácio de Buckingham. A expectativa é de que o
estudo seja finalizado em 2026.
"Portugal está
atrasadíssimo, dado o papel esmagador que exerceu no tráfico de
escravizados", considera Alencastro.
"Mais que a
Inglaterra, ao contrário do que se diz. Porque a Inglaterra foi muito ativa [na
escravidão] no século 18, mas Portugal começa desde meados do século 16."
Enquanto a Inglaterra
aboliu o tráfico em 1807, e os Estados Unidos proibiram a importação de
escravizados em 1808, foi justamente neste momento em que o comércio de
africanos aumentou no Brasil, com a vinda da Corte portuguesa ao país, lembra
Alencastro.
"Então, Portugal
sempre esteve atrasadíssimo", considera o historiador.
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Desmontando falsos argumentos
Para Alencastro, é
preciso desconstruir alguns falsos argumentos neste debate sobre o papel de
Portugal na escravidão no Brasil.
• 1. 'Portugueses nem pisavam na África'
Durante as eleições
presidenciais de 2018, por exemplo, o então candidato Jair Bolsonaro (então do
PSL e atualmente no PL) declarou no programa Roda Viva da TV Cultura que os
portugueses não teriam nada a ver com o tráfico de escravizados, porque supostamente
"os portugueses nem pisavam na África”, lembra Alencastro.
Em sua fala, Bolsonaro
replicava o discurso de brasileiros e portugueses que tentam isentar os
colonizadores europeus da culpa pela escravidão.
"Tinha a Câmara
Municipal Portuguesa em Luanda e, depois, em Massangano, desde o século 17. E,
no começo do século 18, tinha Câmara Municipal também em Benguela, com
governadores portugueses e tudo", afirma o historiador.
"No norte de
Angola, em Banza Congo, que se chamava São Salvador do Congo, os portugueses,
com o apoio do papa, criaram a primeira diocese católica no continente
africano. Quer dizer, como que os portugueses nem pisavam na África? Isso é de
uma estupidez total."
• 2. 'Africanos também escravizaram'
Alencastro diz ainda
ser importante desfazer o argumento que tenta eximir portugueses e brasileiros
da culpa pela escravidão ao culpar os próprios africanos pelo tráfico, devido à
escravidão entre povos africanos de diferentes culturas.
"Obviamente, a
África não era um lago de paz, como nenhum continente. Os povos entravam em
guerra, como na Europa", observa.
Então, na África,
existia de fato escravidão interna, afirma o pesquisador. Mas, com a demanda
europeia, os escravizados passaram a valer muito mais, porque havia companhias
com ações em bolsa que financiavam esse comércio e enviavam soldados para a
captura de africanos.
"E aí vai se
criar um tráfico transatlântico de africanos, que tem uma dimensão, não só
numérica, mas de valor, e um sentido histórico muito diferentes [da escravidão
interna na África]", diz.
"Além disso, no
caso português propriamente dito, as tropas portuguesas e os governadores
participavam das expedições preadoras [que faziam prisioneiros] e
escravizadoras de africanos, homens, mulheres e crianças livres."
• 3. Colonialismo ‘brando’
Por fim, o historiador
afirma que é preciso desfazer o mito de que o colonialismo português teria sido
mais "brando" do que o de países como França, Bélgica e Inglaterra.
"O governo
português dizia o seguinte: 'Nós somos diferentes dos outros colonizadores
europeus, dos franceses, dos belgas e dos ingleses, porque nós não somos
racistas, criamos uma sociedade multirracial. Veja o Brasil, como há uma
coabitação pacífica entre afrodescendentes e luso-descendentes'", observa.
Mas essa tese foi
completamente refutada pelo processo de descolonização, diz o pesquisador.
Ele lembra que a
Inglaterra se retirou da Índia, considerada "a joia do Império
Britânico", em 1947.
Já a França foi
derrotada na Indochina (região do sudeste asiático que inclui Vietnã, Laos e
Camboja) em 1954 e se retirou da África Ocidental Francesa (federação de
territórios que inclui Senegal, Costa do Marfim, o atual Benin e outros) e
depois da Argélia no início da década de 1960.
"Portugal ainda
queria manter os territórios em Goa, Damão e Diu, até 1961, quando a Índia
perde a paciência e diz: 'Não, não tem que ter enclave ou território de um
outro país encravado no meio de um país soberano como a Índia'", afirma.
Os ditadores fascistas
portugueses António Salazar e Marcello Caetano, que governaram o país entre
1933 e 1974, tentaram ainda manter as colônias portuguesas na África –
Guiné-Bissau, Moçambique e Angola –, que tinham grupos organizados combatendo
os portugueses, lembra Alencastro.
"Isso inclusive
vai levar ao 25 de abril [de 1974, data da Revolução dos Cravos, que derrubou a
ditadura em Portugal], com os militares dizendo: 'Isso é uma política burra, a
gente que vai pagar o preço de sangue aqui, servindo de bucha para canhão. Não
dá para lutar com três países diferentes'", diz o historiador.
"Esse é o
componente africano do 25 de abril, que fez 50 anos essa semana e que é
escondido. Em Portugal, parece que foram a esquerda portuguesa e os militares
que deram a independência à África. Mas os africanos estavam lutando e
derrotando os portugueses há 14 anos. E esses militares [da Revolução dos
Cravos] sabiam muito bem disso."
Alencastro lembra
ainda que, com a independência de Angola, em 1975, 300 mil colonos portugueses
fugiram da guerra em curso lá e foram expulsos.
"Eu estava em
Lisboa quando eles chegaram lá, com uma mão na frente e outra atrás,
alucinados", lembra Alencastro.
"Isso então é
algo que não teve diferença nenhuma da descolonização belga [marcada por
violentos conflitos entre africanos e colonos no Congo]. A descolonização
portuguesa em Angola e Moçambique acabou em uma catástrofe, os portugueses
fugiram todos."
• Os desafios da reparação histórica
A fala do presidente
português coloca lenha na fogueira do debate sobre reparações históricas pelo
legado da escravidão.
No Brasil, a discussão
ganhou novo fôlego em setembro de 2023, após o Ministério Público Federal (MPF)
abrir um inquérito para investigar o envolvimento do Banco do Brasil (BB) na
escravidão e no tráfico de escravizados durante o século 19.
Em outubro, a BBC News
Brasil perguntou ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) se a
política de reparação histórica que está sendo pensada pela pasta para o caso
do BB poderá eventualmente incluir compensação financeira para descendentes de
escravizados.
"Reparação
financeira não está na linha de avaliação agora", respondeu à época Rita
Cristina de Oliveira, secretária-executiva do MDHC.
"O passivo que
nós temos em relação à escravidão e ao tráfico [de escravizados] é trazer à
tona esses registros", completou a "número 2" do ministério
liderado por Silvio de Almeida.
No caso de Portugal,
Alencastro também avalia que a compensação financeira seria difícil.
“Eu não sei como eles
vão lidar com isso, se estão pensando em dinheiro. Pois certamente seria a
derrocada das finanças portuguesas durante um século, porque eles foram muito
ativos nessa pilhagem [aos países africanos]”, considera.
Para o historiador,
esse é um assunto que deve persistir pelos próximos 50 anos, e portugueses e
brasileiros terão que se habituar a isso.
"No Brasil, o
caso é ainda mais grave, porque a maioria da população brasileira é
afrodescendente. E o país ainda não percebeu que não se trata apenas de
reparação ou de política afirmativa ou de cota. Trata-se de consolidar a
democracia brasileira, dando plena cidadania aos afrodescendentes", diz.
Alencastro destaca
que, no Brasil, enquanto a maioria dos analfabetos, dos moradores de favelas e
das vítimas de mortalidade infantil são afrodescentes, a maioria dos ocupantes
de altos cargos nos setores público e privado e dos formandos em universidades
são descendentes de europeus.
"Agora, isso está
mudando um pouco, mas ainda é muito difícil. Então, é preciso que os
brasileiros saibam que a plena cidadania dos afrodescendentes não é só o
direito de votar, mas é o direito de exercer a cidadania, de ascender
[socialmente], de estudar em boas universidades. Isso tudo é essencial para
consolidar a democracia brasileira", afirma o historiador.
"Não pode haver
democracia sólida num país onde a maioria dos cidadãos está fora dos mecanismos
de promoção social."
Fonte: BBC News Brasil
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