O sistema agroalimentar mundial – em crise
terminal
Desde meados do século
passado o sistema produtivo conhecido como Revolução Verde expandiu-se
celeremente e hoje ocupa a totalidade das terras cultivadas nos países
desenvolvidos e a ampla maioria daquelas dos países antigamente chamados de
Terceiro Mundo e hoje de Sul Global. Esta expansão permitiu um aumento
extraordinário da produção agropecuária ao ponto dos mais otimistas
considerarem que o fantasma de Malthus tinha sido definitivamente exorcizado.
Todos os mega produtores agrícolas atualmente (EUA, Brasil, EU, China, Índia,
Argentina, Canadá, Austrália, Rússia e outros menores) aplicam este sistema,
marginalizando a produção tradicional camponesa. O sistema agroalimentar
mundial produz 2900 calorias por pessoa por dia, descontadas as perdas,
desperdícios, conversão para alimentação animal e bioenergia. Isto permitiria
alimentar (apenas no sentido de fornecer as calorias necessárias) 9 bilhões de
humanos, mais do que a população atual do planeta. (relatório FAO, 2016)
Todos os analistas
insistem que as causas da fome e subnutrição no mundo se explicam por problemas
de acesso à alimentação e não por falta de produto. Em termos relativos, o
efeito da expansão deste sistema foi a redução da fome no planeta como um todo,
embora em números absolutos o ano de menor contingente de famintos ainda
registrou mais de 700 milhões de pessoas, no final dos anos 90. Atualmente este
número chega a 850 milhões (FAO), sendo que outros analistas elevam este número
para mais de 1 bilhão. Entretanto, são muitos os países, e não só entre os mais
pobres, onde a fome é endêmica. Apesar da percepção generalizada de sucesso
deste sistema, muitas vozes já levantavam dúvidas e críticas desde os anos
1980. Estas vozes hoje são muito mais incisivas e tem muito mais ressonância do
que no passado. Entidades pouco suspeitas de ideologismos como vários
organismos da ONU (FAO, UNCTAD, Relatoria do Direito Humano à Alimentação,
UNDP, UNEP e outros), o IPCC e até (em termos menos críticos) o Banco Mundial,
vêm publicando estudos e projeções cada vez mais veementes sobre a crise
alimentar mundial e seus prováveis desdobramentos.
O estudo elaborado
pelo IAASTD (International Assessement of Agriculture Knowledge, Science and
Technology for Development) promovido Banco Mundial e pela FAO e
apresentado em 2009, indicou múltiplos fatores de insustentabilidade do atual
sistema agroalimentar mundial, depois de quatro anos de pesquisas com centenas
de cientistas, confirmando uma ampla gama de estudos parciais realizados nos
últimos 20 anos por dezenas de entidades multilaterais e nacionais.
·
Sinais de esgotamento
do sistema
Os sinais da crise
começam com a percepção de que o sistema tinha chegado, na segunda metade dos
anos 1980, a um estancamento. Isto se mediu por vários fatores.
O primeiro foi a
diminuição (ou o estancamento e até decréscimo) do ritmo do aumento das
produtividades das culturas, com as novas variedades desenvolvidas
cientificamente oferecendo apenas pequenos incrementos a cada ano, após três
décadas de avanços significativos. Estes modestos incrementos, entretanto, não
chegaram a compensar o aumento do número de consumidores.
O segundo foi a
crescente necessidade de aumentar a fertilização das culturas apenas para
manter as produtividades.
O terceiro foi
crescente perda de produção devido à multiplicação de pragas e doenças sem que
o uso, mesmo ampliado, de agrotóxicos pudessem controlá-las.
O uso de engenharia
genética foi anunciado como um grande salto à frente, mas após 30 anos de
aplicação resultou apenas em avanços nos lucros das empresas de biotecnologia.
Não houve avanços em termos de aumento de produtividades nem diminuição no uso
de agrotóxicos. Isto sem falar nos cada vez mais numerosos e dispendiosos
processos de consumidores contra as empresas de biotecnologia, condenadas por
impactos na saúde.
·
As carências
estruturais do sistema agroalimentar
As mencionadas
críticas, já preocupantes por si mesmas, empalidecem quando se analisam os
impactos já visíveis e os previsíveis de carências inerentes ao próprio
sistema. O sistema agroalimentar está submetido a um conjunto de fatores que o
estão levando a uma crise terminal, colocando em risco toda a humanidade.
Qualquer um destes fatores leva à inviabilização do sistema, mas a sua
combinação acelera o processo. O primeiro fator tem a ver com o fato de que o
sistema agroalimentar depende de recursos naturais para produzir: os
renováveis, como solo, água e biodiversidade e os não renováveis, como
petróleo, gás, fósforo e o potássio. Os primeiros estão sendo destruídos e os
segundos estão sendo esgotados.
·
O esgotamento dos
recursos naturais não renováveis – petróleo e gás
O esgotamento das
reservas de petróleo é objeto de debates desde os anos 50, quando o geólogo
americano King Hubert projetou o esgotamento das reservas americanas para o ano
1970. A projeção de King se confirmou, mas a que ele fez para a produção
mundial, o ano de 2000, não. Mas o erro, desculpável pela maior dificuldade de
acessar dados precisos em todo o mundo, foi de apenas oito anos. Hoje ninguém
discute o fato de que a oferta do chamado petróleo convencional estancou em
2008 e hoje oscila levemente em um patamar estável. Como a demanda não parou de
crescer, a corrida para explorar petróleo em formas ditas não convencionais
explodiu, estimulada pelos preços mais altos do convencional.
O dito petróleo não
convencional é o explorado em águas profundas, como o nosso pré-sal ou as
jazidas do Golfo do México e do Mar do Norte, todos, menos o primeiro, já em
declínio acentuado. Também são óleos não convencionais os extraídos das areias
betuminosas do Canadá, ou através do fraking de rochas porosas
nos Estados Unidos, ou de depósitos de xisto. No entanto, apesar do sucesso
imediato da oferta destes óleos, as previsões apontam para um esgotamento ainda
nesta década. E o custo destes produtos é maior do que na exploração de
petróleo convencional, além dos impactos ambientais serem muito maiores. Ficam
ainda na reserva os chamados óleos ultrapesados, como os da bacia do Orenoco,
na Venezuela. No frigir dos ovos, os analistas confluem na avaliação de que nos
aproximamos de um momento em que a oferta não vai poder cobrir a demanda. Nada
disso significa que o petróleo, em todas as suas formas, convencionais ou não,
vai desaparecer de um dia para o outro. Mas vai começar a rarear e, sobretudo,
vai ficar mais caro a cada ano. Na crise de 2008 o preço do barril de Brent,
referência de mercado para o petróleo convencional, chegou a um pico de 130,00
dólares e foi o motor de uma crise financeira mundial. Hoje ele está em 90,00
dólares e subindo.
Não é exagero dizer,
como alguns autores, que a “comida é petróleo digestível”. O sistema
agroalimentar depende totalmente do petróleo, quer como energia para mover
tratores e máquinas agrícolas ou para a produção de fertilizantes e
agrotóxicos, quer como combustível para o transporte e para o processamento. O
aumento dos preços do petróleo fere o sistema no coração e projeta aumentos de
preços dos alimentos, no imediato, e a diminuição da oferta, no médio e no
longo prazo. Como as reservas de gás ainda estão mais elásticas, ele pode vir a
substituir o petróleo por algum tempo, mas não muito. As previsões para a
oferta de gás miram nos meados da próxima década como provável início do
esgotamento.
·
O esgotamento das
reservas de fósforo
O segundo produto
natural não renovável de imenso peso na agricultura é o fósforo. Nenhuma planta
pode existir sem dispor de fósforo em doses variadas segundo a espécie. Quando
há carência deste mineral o efeito pode ser, de acordo com o caso, a perda de
produtividade e a maior fragilidade frente a doenças e pragas. As reservas de
fósforo no mundo estão concentradas em poucos países, sendo que as maiores e
ainda menos exploradas se encontram em um território disputado pelo Marrocos e
pelo povo Saaruí. A previsão do esgotamento é para mais duas décadas, mas os
custos da extração estão em constante aumento pelo fato de que as jazidas mais
acessíveis já estarem em processo de esgotamento.
O Brasil é altamente
dependente das importações de fosfatos, do Canadá ou da Rússia e Ucrânia. A
agricultura chinesa sempre usou como fertilizante o composto de esterco, animal
ou humano. Isto foi substituído, a partir dos anos 80, pelo uso cada vez mais
intensivo de fertilizantes químicos. Com uma população cada vez mais urbana, os
chineses necessitariam adotar sistemas de coleta e tratamento em escala
industrial. É o mesmo caso para o Brasil, com o agravante de sermos altamente
deficitários na coleta e tratamento de esgoto ou de lixo. É preciso registrar,
também, que o uso de adubos químicos solúveis implica em perdas da ordem de 50%
dos produtos, parcela que nunca chega a ser utilizada pelas plantas e que se
perde carreada pelas chuvas para poluir lençóis freáticos, lagos, rios, reservatórios
e o mar. Já existem processos modernos de aplicação modulada de adubos químicos
e o uso de formas não diretamente solúveis pela água, mas por ação das próprias
plantas. Mas estas práticas mais avançadas não são amplamente utilizadas,
ainda, por serem mais caras. Os subsídios públicos para o uso de fertilizantes
têm a ver com este diferencial de custos e necessitariam de ser eliminados.
·
Recursos naturais
renováveis – solos
Mesmo desconsiderando
previsões mais pessimistas que indicam o esgotamento dos solos férteis entre 30
e 60 anos, não confirmadas por estudos científicos, há suficientes indicadores
para que se acendam os sinais vermelhos de alarme. A FAO indica que 33% de
todos os solos no mundo estão degradados pela erosão, salinização, compactação
e contaminação química. A perda de solos agricultáveis é estimada, pela mesma
fonte, em 12 milhões de hectares por ano, enquanto 290 milhões de hectares
estão em alto risco de desertificação. Já os processos de esgotamento de solos,
com perda de nutrientes essenciais, afetam a produtividade de 20% das culturas.
Por outro lado, as áreas de pastejo tem decréscimos de produtividade entre 19%
e 27%, segundo o tipo de bioma (grasslands e rangelands)
(UN Department of Economic and Social Affairs, 2012).
Em todos os estudos
mencionados os impactos sobre o solo derivam das práticas da agricultura
convencional.
·
Água
O sistema
agroalimentar dominante é o maior consumidor de água entre todas as atividades
humanas, em média mundial, 70% do total de extrações. As áreas irrigadas vêm
dobrando a cada década desde os anos 50, na medida em que vai se disseminando
em todo o mundo uma dieta que cobra altos investimentos o uso deste recurso.
Para dar alguns exemplos: um hamburguer requer 2240 litros de água e uma xícara
de café, 140. A UNEP (United Nations Environment Program) adverte que,
se esta trajetória continuar, a falta de água vai provocar perdas de até 25% da
produção de alimentos. O rebaixamento de lençóis freáticos por consumo superior
às taxas de reposição afeta maciçamente países como China, Índia, Irã, México e
muitos outros. Por outro lado, vários grandes rios passam meses ao ano sem ter
água correndo, fruto das retiradas para irrigação, entre eles o Amarelo
(China), Indo e Ganges (Índia), Colorado e Grande (EUA). Grandes lagos como o
Aral e Chade estão quase totalmente secos, enquanto grandes aquíferos vão se
esvaziando, como o Ogallala (EUA) e o Guarani (Brasil e Paraguai) está sendo
contaminado por agrotóxicos e fertilizantes.
·
Biodiversidade
O abastecimento
alimentar vem sofrendo um constante estreitamento na variedade de produtos
ofertados. Das mais de 50 mil plantas comestíveis existentes, apenas três
(arroz, milho e trigo) respondem por 2/3 de todas as ingestões calóricas dos
consumidores e 90% de toda a alimentação depende de apenas 15 produtos.
Historicamente esta situação indica um alto risco para o abastecimento, sendo
que ele é ainda mais grave pelo fato de que este reduzido número de plantas é
produzido a partir de um muito pequeno número de variedades de cada uma delas.
As perdas da
biodiversidade agrícola no último século foram gigantescas, como demonstra um
estudo do USDA que comparou o número de variedades com sementes colocadas no
mercado americano em 1903 com aquelas guardadas no laboratório nacional de
estocagem de sementes em 1983, indicando a extinção de 93% delas.
·
Alterações climáticas
globais
Para além das perdas
dos recursos naturais renováveis e do esgotamento dos não renováveis, o sistema
agroalimentar está seriamente ameaçado pelo aquecimento global e as
consequentes mudanças no clima.
Em primeiro lugar, é
preciso lembrar que o IPCC vem apontando, a cada novo relatório, uma aceleração
do aquecimento global, provocado pelo crescente uso de combustíveis fósseis e
pela expansão da agricultura e da pecuária. A meta limite assignada no Acordo
de Paris em 2014, um aumento máximo de 1,5º C na temperatura média mundial,
estimado para ocorrer até 2040, já está sendo atingido em 2024. Não é ainda a
média anual, mas nos meses mais quentes este índice foi alcançado e deve ser
anualizado nos próximos anos. O IPCC já está indicando que um aquecimento de 2º
C é inevitável até 2030, mesmo se as emissões de gases de efeito estufa (GEE)
forem eliminadas imediatamente. Isto se dá pelo delay entre a emissão de gases
e seu efeito no aquecimento.
A agricultura
industrial e o sistema agroalimentar como um todo tem um gigantesco impacto
neste processo. As emissões de GEE da agricultura e da pecuária (11 a 15%),
junto com o seu impacto nos desmatamentos (15 a 18%), representam 26 a 33% do
total. Por outro lado, o conjunto do sistema agroalimentar, incluindo
transportes (5 a 6%), processamento e embalagem (8 a 10%) refrigeração e
supermercados (2 a 4%) e desperdícios (3 a 4%) chega a representar entre 44 e
57% de todas as emissões de GEE (ETC e Grain). O mero aquecimento do planeta
impacta pesadamente a agricultura, provocado pelo estresse das altas
temperaturas. Com o aquecimento alcançando os fatídicos 2º C são esperados
efeitos de até 30% de perdas na produtividade das plantas, dependendo da
espécie. Por outro lado, o clima está se tornando visivelmente mais instável e
imprevisível, com secas e inundações mais frequentes e intensas, também com
grandes impactos na produtividade das plantas. Maiores temperaturas também
propiciam uma maior multiplicação de pragas afetando as produções. Finalmente,
o aquecimento está provocando o degelo acelerado e a consequente elevação do
nível dos oceanos. Marés cada vez mais altas já estão inviabilizando a produção
em áreas costeiras baixas no Bangladesh, Paquistão, Índia e China, enquanto
enchentes gigantescas afetam milhões de pessoas em todo o mundo, obrigando o
deslocamento em massa de populações. Para completar este quadro sombrio é
preciso ainda lembrar que o IPCC predisse, em 2018, que 32% da superfície
terrestre será árida antes mesmo do aquecimento global chegar aos 2º C.
Em resumo, estes dados
são apenas uma amostra do conjunto muito mais amplo de fatores que apontam para
a conclusão a que chegou a FAO em um evento científico em 2014: “business as
usual is not an option”. Em bom português: mais do mesmo não é uma opção.
·
E qual é a opção? ou
as opções?
Antes de apresentar as
opções e discutir a sua validade, é bom lembrar que a crescente onda de
críticas ao modelo agroalimentar convencional não significou uma mudança nos
rumos da forma de se produzir no setor agrário. As formas alternativas de
produção estão se multiplicando em todo o mundo, mas representam ainda apenas
uma fração diminuta do output total do setor agropecuário. Em outras palavras,
os elementos apresentados acima como fatores de insustentabilidade estão se
agravando e arrastando a humanidade para o desastre. Mesmo as entidades como a
FAO, por exemplo, que tinham feito declarações firmes sobre a
insustentabilidade do modelo dominante, continuaram apoiando, nas suas
atividades, os mesmos paradigmas que levavam a esta insustentabilidade. Esta
realidade se explica pelo poderio das empresas que controlam as várias etapas
do sistema agroalimentar. Um punhado de transnacionais domina a produção de
fertilizantes, de agrotóxicos, de maquinário, de produtos veterinários e de
sementes, utilizados por um número cada vez menor de grandes produtores, que
vão concentrando a economia agrária. No setor de transformação a concentração
vai no mesmo caminho, assim como no comércio de atacado. Até mesmo no mais
pulverizado setor de comércio varejista a concentração se manifesta, embora em
níveis menos impressionantes. E, por trás destas megaempresas, o peso do setor
financeiro vem se tornando cada vez maior. Pode-se dizer que esta aliança entre
o capital produtivo e o financeiro determina os rumos do sistema agroalimentar,
influenciando desde a opinião pública até governos e parlamentos nacionais e,
em parte, organismos multilaterais.
Este predomínio
econômico, que se reflete nas instituições nacionais e internacionais, faz com
que o modelo siga, impavidamente, produzindo com os mesmos vícios de sempre.
Criaram-se algumas “alternativas” que não escapam de aplicar os mesmos
paradigmas, no máximo racionalizando e buscando minimizar alguns dos piores
efeitos do modelo. É o caso do que é conhecido como “climate smart
agriculture” (intraduzível, algo como agricultura preocupada com o clima)
ou a agricultura de precisão. Em ambos os casos, não se põe em questão o modelo
de monoculturas em enormes extensões de terras e aposta-se nas mágicas
prometidas pela engenharia genética. É o que os franceses chamam de “fuite
en avant”, ou fuga para adiante. E mesmo estas “soluções” têm pouca adoção
pelo agronegócio. Racionaliza-se o uso de fertilizantes químicos, mas não se
deixa de depender de uma adubação com data marcada para desaparecer. E o uso de
agrotóxicos não para de crescer em todo o mundo. A solução, demonstrada por
inúmeras experiências com um histórico de mais de 80 anos, é a agroecologia.
Sua prática vem se ampliando rapidamente nas últimas décadas, com o número de
produtores dobrando a cada uma delas e já chegando a dezenas de milhões de
camponeses, mas também de milhares de empresários do que já é chamado de
agronegócio verde.
Existem várias
vertentes sob esta designação de agroecologia, sendo que as mais antigas
precedem a adoção deste conceito. Trata-se da agricultura orgânica, com a
variante biodinâmica. Nesta versão da agroecologia, entretanto, prevalece uma
abordagem mais voltada para a produção de alimentos “limpos” do uso de produtos
químicos ou variedades da engenharia genética. A agricultura orgânica se
caracteriza mais pelo que ela não pode utilizar para ter seus produtos
certificados. Frequentemente, esta produção orgânica mantém um desenho
produtivo com monoculturas para permitir a mecanização, o que leva alguns
puristas a não a considerar agroecológica. A meu ver, é preciso aceitar que
existem mediações entre sistemas que aplicam todos os princípios da
agroecologia e os que fazem simplificações de modo a poderem responder a algum
tipo de pressão, seja de trabalho, seja de mercado.
Em sistemas
agroecológicos mais avançados o desenho produtivo é mais complexo e
diversificado e não comporta monoculturas. Estes sistemas provaram, na prática,
serem os de melhor performance em termos de produtividade
total por área cultivada, mas também mostraram que esta área não pode ser
grande. Há uma relação inversa entre a complexidade de um sistema agroecológico
e o tamanho da área produtiva. O tamanho e a complexidade implicam um maior uso
de mão de obra, mas o limitante principal é a capacidade de gestão do espaço e
do tempo de trabalho. A implicação deste fato é a necessidade de se multiplicar
o número de produtores de forma gigantesca, invertendo a tendência da
agricultura convencional que sempre buscou, desde o advento do capitalismo,
diminuir o uso de mão de obra e ampliar a escala das áreas de cultivo.
Se o mundo não
estivesse enfrentando uma crise energética crescente, seria impensável pensar
em abandonar as imensas fazendas com dezenas de milhares de hectares de
monoculturas operados por umas poucas dezenas de motoristas de tratores,
cultivadores, colheitadeiras e aplicadores de fertilizantes químicos,
agrotóxicos e irrigação. Mas o custo energético do sistema convencional vai
exigir o maior emprego de mão de obra, bem como uma radical redistribuição da
produção alimentar em todo o mundo, buscando diminuir ao máximo a distância dos
consumidores. Antes que se argumente com a substituição dos combustíveis
fósseis por energia “verde”, é bom lembrar que há limites importantes para que
isto se dê de forma generalizada.
Como já foi dito,
sistemas agroecológicos diversificados são operados com maior eficiência por
produtores familiares e em pequena escala. E para que se possa produzir
alimentos em quantidade e qualidade necessárias para garantir uma dieta
adequada a toda a população do planeta, vai ser preciso mais do que uma reforma
agrária. Vai ser necessário fazer uma revolução agrária e entregar as terras do
agronegócio para centenas de milhões de camponeses. A título de exemplo podemos
citar um estudo realizado nos EUA indicando que a adoção generalizada da
produção orgânica e garantir a oferta alimentar adequada para toda a população
seria necessária uma base de 40 milhões de camponeses. Tal estudo usou
produtividades das experiências de produção orgânica nos EUA, mais baixas do
que as agroecológicas aqui no Brasil. Mas mesmo com menor performance,
a produtividade da agricultura orgânica norte-americana é comparável com a da
agricultura convencional em condições climáticas ideais. Em situações de seca,
que tendem a ser tornar muito mais frequentes, esta produtividade chega a ser
40% maior.
Estudos encomendados
pela FAO mostraram que a agricultura orgânica pode alimentar corretamente uma
população de 10 bilhões de pessoas, substituindo totalmente os sistemas
convencionais. Haveria mudanças na composição das culturas, com uma diminuição
significativa da produção animal, sobretudo de gado bovino e aumento na
produção de leguminosas e hortaliças. A quantidade de calorias disponível
também cairia, mas mantendo-se acima das necessidades vitais de cada um. Outros
estudos apontam para a possibilidade de se substituir toda a fertilização
química de nitrogênio, fósforo e potássio por leguminosas fixadoras do primeiro
e compostagem de lodo de esgoto e lixo orgânico para o segundo e terceiro. Por
outro lado, os sistemas agroecológicos permitem a fixação de carbono nos solos,
além de favorecerem o reflorestamento, o que tem o mesmo efeito. A redução dos
estoques de bovinos teria impactos na diminuição da emissão de N20,
um dos mais poderosos GEE. Alguns estudos indicam que, entre o reflorestamento,
a redução das emissões do gado bovino e a fixação de carbono nos solos
retiraria significativamente o CO2 da atmosfera, além de
diminuírem exponencialmente as emissões de N2O. Não é preciso se
estender nos comentários sobre os impactos positivos da agroecologia na
eliminação da contaminação química de solos e águas, bem como na maior economia
no uso de água na agricultura. Estes resultados são inerentes à agroecologia.
Para completar esta
breve análise das implicações da adoção generalizada da agroecologia no lugar
da agricultura convencional é preciso indicar que o efeito social seria
gigantesco. Transferir milhões de pessoas do universo urbano de volta para o
rural vai ser uma imposição desta realidade e, para que isto seja possível, vai
ser necessária uma redistribuição da renda para remunerar corretamente uma
produção vital, os alimentos e outros produtos agrícolas, assim como o
pagamento dos serviços ambientais do novo sistema. Um imposto sobre a emissão
de GEE e um bônus pela sua retirada da atmosfera favoreceriam esta
redistribuição.
Todas estas mudanças
têm implicações para a pesquisa científica, exigindo novas formas de produção
do conhecimento. A prática mostra que a extrema diversidade dos sistemas
produtivos na agroecologia elimina propostas centradas no monocultivo, marca da
atual pesquisa agropecuária. A agroecologia é “knowledge intensive”,
enquanto a agricultura convencional é “input and energy intensive”. Vai
ser preciso combinar a investigação científica com a experimentação camponesa
para que possam ser redesenhados esquemas produtivos específicos para cada
produtor. São novos paradigmas para o ensino das ciências agrárias, para a
pesquisa e para a extensão rural. Esta nova distribuição do trabalho acontecerá
de uma forma ou de outra. Se induzida pela compreensão antecipada da sua
necessidade ela enfrentará sobretudo a resistência do agronegócio. Se deixada
para quando as crises se agravarem ela vai se fazer em meio a imensas
dificuldades oriundas de uma produção cada vez mais insuficiente e todas as
perturbações sociais e políticas que não deixarão de se manifestar.
Fonte: Por Jean Marc
von der Weid, em A Terra é Redonda
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