Por que algumas rochas da Terra se parecem
com as de Mercúrio
A curiosidade matou o
explorador. E Nicola Mari temia que ele talvez fosse o próximo.
Mari se orientava pelo
telefone celular enquanto dirigia entre as montanhas mais remotas de Chipre.
Mas, conforme
anoitecia, a bateria do celular se esgotou, até que ele se viu perdido no meio
do nada, sem ter ideia de como voltar ao seu alojamento.
"Eu havia viajado
mais de 50 km sem encontrar outro veículo", ele conta.
Mari achou que
conseguiria relembrar o caminho até um restaurante, onde ele poderia
reabastecer seu estômago, seu motor e a bateria do celular. Mas, ao chegar lá,
tudo estava deserto.
Com um pouco de sorte,
Mari acabou chegando a outro estabelecimento, mas ele reconhece que receou
perder a vida naquelas solitárias estradas montanhosas. "Calculei
mal", diz ele.
Mas, felizmente, sua
missão não foi em vão.
Mari é geólogo
planetário da Universidade de Pavia, na Itália. Ele estuda como os nossos
vizinhos do Sistema Solar se formaram e evoluíram. E, para obter o grau de PhD,
ele estudou os fluxos de lava de Marte.
Desta vez, seus olhos
estavam em Chipre, mas voltados para Mercúrio. Seu objetivo era encontrar na
ilha um certo tipo de rocha, chamada "boninita".
Acredita-se que esta
rocha tenha notável similaridade com as encontradas em Mercúrio. E, se esta
suposição estiver correta, pode ser uma indicação das origens únicas daquele
planeta.
• Primeira rocha a partir do Sol
Mercúrio é um planeta
de extremos. Com volume total um pouco maior que o da Lua, é o menor planeta do
Sistema Solar – e o mais próximo do Sol.
Mercúrio não tem
atmosfera para reter calor. Ou seja, a temperatura na sua superfície varia de
400°C durante o dia até -170°C, à noite.
O planeta também tem a
menor órbita de qualquer planeta do Sistema Solar. O ano de Mercúrio dura
apenas o equivalente a 88 dias na Terra.
Os cientistas têm
muita dificuldade para estudar Mercúrio devido à sua localização.
Um dos motivos é o
calor. Para se aproximar do planeta, as espaçonaves precisam suportar
temperaturas escaldantes, devido à sua proximidade com o Sol.
O outro motivo é a
gravidade. Quanto mais perto você chega do Sol, maior é a sua força de atração,
o que aumenta a velocidade da espaçonave. Com isso, manobras delicadas passam a
ser muito mais difíceis.
Para evitar viajar
rápido demais, a espaçonave pode seguir uma rota mais complexa, fazendo uma
série de desvios em torno de outros planetas, o que ajuda a reduzir a
velocidade. Mas ela ainda precisa de muito combustível para desacelerar e
manter o controle dos seus movimentos.
"Do ponto de
vista da trajetória, provavelmente é mais difícil chegar lá do que em
Júpiter", afirma Ignacio Clerigo, gerente de operações de espaçonaves da
BepiColombo, a atual missão da Agência Espacial Europeia para Mercúrio. O
trabalho de Mari vem ao encontro deste projeto.
Todas estas
dificuldades fizeram com que Mercúrio tenha sido menos estudado do que os
outros planetas vizinhos.
Mas duas missões
anteriores – a Mariner 10 e a Messenger – chegaram suficientemente perto do
planeta para mapear sua superfície, pontilhada de crateras. Elas revelaram
grandes surpresas sobre sua estrutura.
Uma dessas surpresas
foi o núcleo do planeta. Todos os outros planetas rochosos – Vênus, Terra e
Marte – possuem um núcleo relativamente pequeno, rodeado por um espesso manto
composto de magma e uma crosta endurecida.
Mas a crosta de
Mercúrio parece ser surpreendentemente fina, enquanto seu núcleo é
inesperadamente grande em comparação com o manto. "É absurdo",
segundo Mari.
Outra descoberta ainda
mais inesperada trazida pelas missões é que Mercúrio é rodeado por um campo
magnético.
Combinado com sua
densidade, ele sugere que o planeta tem um núcleo de ferro – que pode ser
parcialmente líquido, como o núcleo da Terra.
Para aumentar ainda
mais o mistério, a proporção de substâncias químicas na superfície de Mercúrio
é altamente incomum.
Usando uma técnica
conhecida como espectrometria para analisar a composição química do planeta à
distância, os cientistas descobriram que Mercúrio possui concentração de tório
muito mais alta que os seus vizinhos mais próximos.
O tório deveria ter
evaporado no calor extremo do início do Sistema Solar. Mas o teor de tório de
Mercúrio é mais próximo do nível de Marte (a três planetas de distância), que
teria se formado sob temperaturas mais baixas, devido à sua distância do Sol.
Essas anomalias
levaram alguns cientistas planetários a imaginar que Mercúrio tenha se formado
originalmente em um ponto mais distante do Sol, perto de Marte.
E que teria começado
com uma massa muito maior, aproximadamente do tamanho da Terra, o que
justificaria seu grande núcleo.
Mas a hipótese é que,
em algum ponto da história, Mercúrio tenha colidido com outro corpo planetário
que o deslocou, fazendo com que ele girasse em direção ao Sol. Esta colisão
pode ter arrancado sua crosta e boa parte do seu manto, deixando o enorme núcleo
líquido do planeta.
"O Mercúrio que
vemos hoje pode ser apenas a semente do planeta que ele foi um dia",
segundo Mari.
• Rochas alienígenas
A melhor forma de
pesquisar esta teoria seria analisar amostras de rochas da crosta de Mercúrio
ou perfurar seu manto. Mas nenhuma sonda conseguiu pousar na superfície do
planeta até hoje, o que leva os cientistas na Terra a buscarem outras fontes de
informação.
Algumas indicações
podem vir de uma classe de meteoritos conhecidos como aubrites. Seu nome vem da
comuna francesa de Aubres, onde eles foram encontrados pela primeira vez.
Estas rochas têm
composição química similar à de Mercúrio e alguns cientistas chegaram a
imaginar que elas podem ser fragmentos da colisão que levou o planeta à sua
posição atual no Sistema Solar.
A ideia é tentadora,
mas Mari é cético. Ele conta que as evidências já descobertas indicam que os
aubrites vêm de asteroides que se formaram na mesma região da nebulosa solar
que Mercúrio, mas que nunca fizeram parte do planeta.
Uma linha alternativa
de evidências pode vir dos "análogos geoquímicos", que são rochas
formadas na Terra que apresentam boa semelhança com as estruturas encontradas
em outros planetas.
Afinal, nosso
conhecimento dos processos geológicos da Terra é muito melhor e podemos usar
esse conhecimento para desenvolver teorias sobre a formação dos nossos
parceiros do Sistema Solar.
Este foi o objetivo da
missão de Mari para Chipre. Segundo os dados geológicos disponíveis, aquele
local era o mais viável para encontrar a composição específica que ele estava
buscando.
Quando saiu na sua
jornada pelas montanhas desertas, Mari se sentiu um "Indiana Jones
moderno", conta.
Chipre é um pedaço de
crosta formado sob o Mar de Tétis, mais de 90 milhões de anos atrás. Com a
colisão das placas tectônicas, ele acabou sendo lançado à superfície, onde se
transformou na ilha que conhecemos hoje em dia.
O cenário traz uma
sensação de outro planeta até hoje, segundo Mari, com suas rochas esverdeadas e
ricas em minerais.
"Em certas
regiões das montanhas de Chipre, é como se você ainda estivesse andando sobre
um leito de oceano antigo", afirma ele.
Durante sua busca,
Mari encontrou os pedaços de lava específicos que procurava, conhecidos como
boninitas.
Ele voltou para casa
e, trabalhando com seus colegas da Nasa e do Museu de Ciências Planetárias da
Itália, ele analisou a composição das rochas, comparando com as medições de
Mercúrio. Os resultados o deixaram perplexo.
"Eles não eram
apenas similares; eram idênticos."
A mistura de elementos
como magnésio, alumínio e ferro era a mesma observada no misterioso planeta com
seu enorme núcleo.
A única diferença era
que as rochas de Chipre haviam se oxidado – o que é inevitável, considerando a
atmosfera da Terra, rica em oxigênio.
As rochas de boninita
são o primeiro análogo terrestre verdadeiro de Mercúrio, segundo Mari. Elas
fornecem dados adicionais preciosos para nossa compreensão daquele planeta. E
estudos adicionais podem revelar indicações sobre a atividade geológica do passado
de Mercúrio.
Sabemos que as
boninitas cipriotas se formaram com a lava de erupções em um ponto raso da
crosta da Terra. Por isso, sua semelhança quase perfeita com as rochas de
Mercúrio sustenta a ideia de que o manto daquele planeta fica anormalmente
perto da superfície, segundo Mari.
E esta conclusão é
consistente com uma origem violenta que tenha soprado para longe boa parte da
crosta original de Mercúrio.
• Viagens futuras
As descobertas de Mari
são uma peça de um quebra-cabeça muito grande.
Muitos outros
conhecimentos podem vir da missão BepiColombo, realizada em colaboração entre o
Japão e a Agência Espacial Europeia, que foi lançada em outubro de 2018.
Seu nome é uma
homenagem ao matemático e engenheiro italiano Giuseppe (Bepi) Colombo
(1920-1984). Entre outras coisas, ele ajudou a planejar o complicado trajeto da
espaçonave Marine 10.
Cumprindo sua rota
sinuosa até Mercúrio, a BepiColombo já se aproximou três vezes do planeta.
Estas aproximações fazem parte da estratégia de reduzir sua velocidade.
A espaçonave fará sua
última aproximação em 2025, quando irá se dividir em dois veículos orbitais. Um
deles irá medir o campo magnético e o outro irá estudar a superfície e a
composição interna de Mercúrio.
Mari afirma que sua
pesquisa sobre análogos geoquímicos pode ser relevante para estes estudos, pois
ela poderá servir de referência para algumas dessas medições.
"As medições de
laboratório de análogos a Mercúrio nos ajudam a interpretar melhor os
resultados das medições que obtivemos com nossos espectrômetros infravermelhos
e infravermelhos térmicos, além de algum tipo de espectrômetro de raio X",
explica Johannes Benkhoff, cientista de projetos da BepiColombo.
Por um ano após a
chegada, os veículos orbitais tomarão medições mais precisas da composição
mineral de Mercúrio, sua topografia e sua estrutura interna.
Comparando esses dados
com as missões passadas, os cientistas poderão até determinar se o planeta
ainda está geologicamente "vivo".
Existem depressões na
superfície que parecem ter sido formadas pela evaporação de material do
interior de Mercúrio, mas não sabemos ao certo se este processo ainda está
ativo.
Tomadas em conjunto,
essas medições podem finalmente nos permitir chegar ao fundo das misteriosas
origens de Mercúrio – e, por extensão, elas podem nos ensinar muito mais sobre
o nosso próprio lugar no cosmos.
"As questões
sobre a alta densidade de Mercúrio e por que o seu núcleo é tão grande são
muito importantes para entendermos a formação e a história do nosso Sistema
Solar", explica Benkhoff.
"A espaçonave tem
um conjunto completo de carga e instrumentos e esperamos que eles realmente
façam avançar o nosso conhecimento científico."
Antes mesmo da chegada
da missão, muitas das nossas impressões sobre o primeiro planeta a partir do
Sol já foram alteradas.
"Quinze anos
atrás, Mercúrio era considerado um planeta monótono", afirma Benkhoff.
"Mas espero encontrar muitas outras surpresas."
Para Nicola Mari,
Mercúrio é apenas o princípio.
"Em Lanzarote
[ilhas Canárias], encontramos lava similar ao manto de Marte. E, para encontrar
traços de Vênus, estamos pesquisando a Sicília [Itália], o Havaí, a Indonésia e
Kamchatka, na Rússia."
Quando a BepiColombo
iniciar plenamente suas operações científicas, o que está previsto para ocorrer
em 2026, poderemos entender melhor o quanto essas rochas da Terra podem nos
contar sobre os nossos vizinhos do Sistema Solar.
Fonte: BBC Future
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