Feminicídio infantil, um mal endêmico na
América Latina
Apesar da maior
conscientização sobre igualdade de gênero, feminicídios persistem no
continente, vitimando também adolescentes.Há alguns dias, a sociedade mexicana
foi abalada pelo esfaqueamento de uma estudante de 13 anos no distrito de
Iztapalapa, na capital do país. As autoridades classificaram o caso como
tentativa de feminicídio, depois que a menina sobreviveu ao ataque do
ex-namorado, também adolescente, segundo informado pela família da vítima nas
redes sociais. O garoto de 14 anos, que havia sido detido, foi liberado sob a
tutela dos pais, conforme prevê a lei mexicana.
Assim como ocorre com
mulheres adultas, meninas e adolescentes que são assassinadas por motivações
misóginas também têm seus casos classificados como feminicídio. “Na verdade, o
feminicídio infantil é frequentemente tido como o assassinato de meninas menores
de idade por causa de seu gênero”, afirma Daniela Castro, acadêmica da Unidade
de Economia Política do Desenvolvimento da Universidade Nacional Autônoma do
México (UNAM).
Diretora da fundação
colombiana Justiça Para Todas, María Vega explica que o feminicídio é uma
“forma extrema de violência” e “dominação”, perpetrada em “violação flagrante
dos direitos das mulheres e meninas”.
• Fenômeno persiste, mas faltam dados
precisos
Os casos de violência
contra o gênero feminino não são isolados, mas existem aos milhares na América
Latina.
“As informações
disponíveis mostram a persistência do feminicídio, apesar da maior
conscientização pública, dos avanços na medição dos casos e da resposta do
Estado”, diz o último boletim publicado pela Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (Cepal).
Segundo o relatório,
em 2022, pelo menos 4.050 mulheres (4.004 na América Latina e 46 no Caribe) de
26 países da região foram vítimas de feminicídio. O Brasil lidera a lista em
números absolutos (ver gráfico), mas é Honduras que tem a taxa mais alta. Esses
números, no entanto, não são comparáveis com os dos outros anos devido a
mudanças no registro de casos em alguns países, alerta a Cepal, o que afeta a
interpretação do número real de feminicídios. O mesmo acontece com os números
sobre o feminicídio infantil.
“Nem todos os países
informam o número de vítimas de feminicídio desagregado por faixa etária, o que
impede uma análise exaustiva desse fenômeno”, disse Ana Güezmes, diretora da
Divisão de Assuntos de Gênero da Cepal.
Com base nesse estudo,
oito países (El Salvador, Panamá, Nicarágua, Costa Rica, Paraguai, Guatemala,
Chile e Uruguai) contabilizaram 310 vítimas de feminicídio, 13 das quais tinham
entre 0 e 14 anos de idade. A Guatemala registrou 6 vítimas nessa faixa etária,
seguida pelo Uruguai, com 4, e pelo Panamá, com 2.
Por outro lado,
destaca-se a faixa etária de 15 a 29 anos, com 107 vítimas entre esses oito
países, sendo Guatemala, Paraguai, El Salvador e Chile as nações com o maior
número de vítimas.
No grupo formado por
Argentina, Colômbia, Equador e Peru – que utilizam uma faixa etária diferente
para medir os feminicídios – 41 meninas e adolescentes entre 0 e 18 anos foram
vítimas desse tipo de homicídio em 2022.
Prisão preventiva como
último recurso para menores infratores
O caso da estudante de
Iztapalapa, assim como outros na região, despertou atenção para o arcabouço
legal aplicado a casos de menores de idade culpados de feminicídio.
De acordo com a Corte
Interamericana de Direitos Humanos e o próprio marco da ONU sobre Direitos da
Criança, menores de 18 anos devem ser considerados inimputáveis – isentos de
penas de prisão. Assim, mesmo após um crime de feminicídio, esse jovens devem
receber medidas alternativas, como a custódia permanente ou a alocação do menor
com uma família.
“Somente como último
recurso, e a curto prazo, a prisão preventiva seria aplicada”, disse à DW
Miguel Barboza, pesquisador sênior do Programa de Estado de Direito da Fundação
Konrad Adenauer para a América Latina.
Barboza pondera,
porém, que nem todos os sistemas de justiça criminal da América Latina operam
segundo esse entendimento – algo que ele considera “bastante problemático”.
Crítica semelhante é
feita por Amalia Alarcón, gerente regional da ONG Plan International: “A teoria
diz que a justiça juvenil deve ter um enfoque de reabilitação, com foco na
reintegração da criança que comete o crime, mas isso não acontece nos sistemas
juvenis na região.”
“Mesmo assim, houve um
progresso muito grande, como medidas alternativas à prisão preventiva,
determinação de padrões de comportamento e fornecimento de serviços
psicológicos”, pondera Barboza.
Segundo o pesquisador,
o problema é que nem todos os países tipificam o feminicídio da mesma forma e
que há, inclusive, “resistências” e “desconhecimento” por parte das
instituições.
De acordo com a Cepal,
o crime de feminicídio é previsto por lei em 18 países da América Latina, dos
quais 13 têm leis abrangentes para lidar com esse tipo de violência.
No Brasil, a lei
13.104/15, também conhecida como Lei do Feminicídio, foi publicada em 9 de
março de 2015, incluindo no Código Penal o feminicídio como uma nova modalidade
de homicídio qualificado. Além disso, esse tipo de crime foi incluído na Lei
dos Crimes Hediondos. Já a Lei Maria da Penha, de 2006, prevê punição para atos
de violência doméstica contra a mulher e cria mecanismos para coibir esse tipo
de crime.
• Ação precoce
Para Castro, da UNAM,
o combate ao feminicídio passa necessariamente pela prevenção, “com políticas
para erradicar a violência de gênero, incluindo programas educacionais e
campanhas de conscientização”.
“O feminicídio é um
crime cuja frequência vai aumentar, especialmente levando-se em conta as
características das novas gerações, com as novas tecnologias”, avalia Barboza,
da Fundação Konrad Adenauer. “É um crime que não é menos grave, mas também não
é um crime que faz menos parte do acervo de crimes tipificados em nível
regional.”
• Pais e mães tóxicos usam manipulação
emocional e depreciação com filhos
Ao mesmo tempo em que
se populariza a educação positiva entre novos pais e mães nas redes sociais,
mais filhos relatam que tiveram familiares "tóxicos" durante sua
criação.
O termo
"tóxico", que foi escolhido como palavra do ano pelo dicionário
Oxford em 2018, é usado de forma popular para identificar situações de
violência psicológica em diversos relacionamentos, inclusive o parental.
Nele, xingamentos,
gritos, manipulação emocional, falas depreciativas e chantagens são comuns,
segundo a psicóloga da família Manuela Moura, professora do Cefac Bahia (Centro
de Estudos da Família da Bahia).
"Durante muito
tempo a gente encarou agressão familiar como algo que tinha cunho físico.
Depois a gente percebeu que existem outras modalidades de violência que não
deixam marcas visíveis", diz a psicóloga.
Segundo ela, muitas
vezes as crianças submetidas a esse tipo de criação se tornam adultos que não
acreditam que podem ser amados.
Ainda na infância, há
relatos de depressão desenvolvida em meio à violência familiar, afirma a
psicóloga Belinda Mandelbaum, coordenadora do Lefam (Laboratório de Estudos da
Família), da USP (Universidade de São Paulo).
A criança não
identifica a violência psicológica por não ser explícita, diz Moura. "O
problema é que o sujeito realmente acredita que ele vale pouco. Ele só vai
perceber [a violência] quando tiver condição de enxergar os pais como pessoas
com qualidades e defeitos, o que geralmente ocorre na adolescência".
COMO IDENTIFICAR UM
PAI OU MÃE TÓXICOS
Nem toda desavença se
enquadra como violência familiar. Alguns casos podem ser mal-estar provocados
pelas diferenças entre as pessoas, como é comum em todos os tipos de
relacionamento.
Um alerta que pode
diferenciar algo natural de um ambiente tóxico, porém, é o medo, diz a
psicóloga Moura.
"Medo de falar,
de dizer o que pensa, de sustentar suas opiniões, de se vestir como quer",
afirma. "Ou quando você se vê induzido a fazer algo que não quer, em nome
da garantia do amor da figura parental".
A OMS (Organização
Mundial da Saúde) define violência intrafamiliar como "toda ação ou
omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a
liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outra pessoa da
família".
Já a violência
psicológica é definida como "toda forma de rejeição, depreciação,
discriminação, desrespeito, cobrança exagerada, punições humilhantes e
utilização da pessoa para atender às necessidades psíquicas de outrem".
QUAL A HORA DE SE
AFASTAR?
Antes de pensar em
cortar relações, as especialistas recomendam que seja avaliado se a situação
familiar é uma dinâmica constante ou um momento específico que ela está
atravessando -como luto ou separação. No segundo caso, aconselham esperar o
período passar.
Caso seja constante e
os pais não estejam abertos a uma reparação, pode ser a hora de se afastar, diz
Moura. "Em alguns momentos, a gente precisa entender que não dá. O amor
não é garantido só porque é pai ou mãe".
Ela alerta, porém, que
muitas vezes a pessoa pode até mudar de país, mas a dinâmica familiar continua
com ela. "Não necessariamente a distância física garante proteção, porque
você passou anos da sua vida se relacionando dessa maneira", diz a professora
do CEFAC.
Segundo ela, a ruptura
com o ambiente familiar tóxico está mais no processo de autoconhecimento do que
no afastamento físico, apesar de a distância diminuir o contato com o
sofrimento.
É POSSÍVEL HAVER
RECONCILIAÇÃO?
Depois de afastamento
e processo de autoconhecimento, é possível se reaproximar de pais considerados
"tóxicos", mas isso não depende apenas do filho.
"Isso está muito
direcionado à capacidade de reparação da família, do familiar perceber e
refazer sua posição. Essa pessoa também precisa mudar. O filho se reaproxima se
aquele outro não for o mesmo que era", diz Moura.
Mandelbaum afirma que
os agressores também precisam de tratamento, porque muitas vezes foram vítimas
na infância, e não devem ser demonizados.
Fonte: Revista Planeta
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