terça-feira, 30 de abril de 2024

Terra, Tempo e Luta: Declaração Urgente dos Povos Indígenas do Brasil

Carta Final do 20º Acampamento Terra Livre (ATL)

Nós, povos indígenas, somos o próprio tempo. Somos encantadores desse tempo que é como uma serpente, com muitas curvas, uma história que não pode ser simplificada como uma linha reta. Quem poderia imaginar que, após mais de cinco séculos de colonização e extermínio, estaríamos aqui, firmes como nossas florestas, entoando nossos cantos e tocando nossos maracás, em resistência pela vida e pelo bem viver de toda a sociedade. 20 anos de Acampamento Terra Livre! O primeiro, realizado em 2004, reuniu 240 indígenas. Hoje, em Brasília, estamos aqui com cerca de 9 mil pessoas, representando mais de 200 povos, que vieram de todas as regiões e biomas desse território brasileiro para dizer: ‘NOSSO MARCO É ANCESTRAL! SEMPRE ESTIVEMOS AQUI!’

Entre os dias 22 e 26 de abril, estivemos na capital federal mobilizados para reivindicar nossos direitos! Nós da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em conjunto com todas as nossas organizações regionais de base, Apoinme, Arpinsul, Arpinsudeste, Aty Guasu, Comissão Guarani Yvyrupa, Coiab e o Conselho do Povo Terena, buscamos medidas efetivas que assegurem a proteção e o fortalecimento dos direitos indígenas, alinhadas com a dignidade e a justiça reivindicadas por nossos povos.

Começamos nossa mobilização histórica reivindicando 25 pontos, que estão na ‘Carta dos Povos Indígenas do Brasil aos Três Poderes do Estado’, com exigências para medidas urgentes. E finalizamos nossa mobilização reafirmando essas urgências!  NOSSO TEMPO É AGORA! Já não podemos esperar mais tempo e precisamos de respostas concretas!

A decisão deliberada dos poderes do Estado de suspender a demarcação das terras indígenas e de aplicar a Lei 14.701 (Lei do Genocídio Indígena) equivale a uma DECLARAÇÃO DE GUERRA contra nossos povos e territórios. Isso representa uma quebra no pacto estabelecido entre o Estado brasileiro e nossos povos desde a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu exclusivamente nossos direitos originários, anteriores à própria formação do Estado brasileiro.

Alertamos que essa ruptura intencional resultará no aumento das violências e das políticas e práticas de genocídio historicamente promovidas tanto pela sociedade quanto pelo próprio Estado contra os povos indígenas. Desde os períodos mais remotos da história até os dias atuais, incluindo o legado sombrio da ditadura militar, cujas consequências ainda ecoam em nossas vidas.

Também ressaltamos que, assim como fizeram nossos ancestrais, resistiremos até o fim, mesmo que isso signifique colocar em jogo nossas próprias vidas, para proteger o que é mais sagrado para nós: nossa Mãe Terra. Estamos comprometidos com o direito de viver com dignidade e liberdade, buscando o bem viver das gerações atuais e futuras dos nossos povos e da humanidade.

O que nos preocupa não é a morte. Esta, nós conhecemos de perto. Morte e vida são parte dessa serpente do tempo que transita sobre a terra, dentro das águas e na copa das árvores mais altas. O que nos preocupa é a covardia de quem tenta dominar o tempo indomável e busca lucrar com as nossas mortes. Nesta declaração afirmamos: NÃO HÁ MAIS TEMPO PARA VOCÊS!

Rejeitamos veementemente qualquer tentativa do governo federal de retomar políticas públicas sem garantir o essencial: a demarcação, proteção e sustentabilidade dos territórios indígenas em primeiro lugar. Qualquer iniciativa que não priorize esses aspectos será apenas uma medida paliativa e insuficiente. É fundamental que a demarcação de terras seja respeitada e protegida, sem desvios ou manipulações, incluindo ações que visem desvirtuar esse processo, como as declarações recentes do presidente Lula. Os direitos territoriais dos povos indígenas são INEGOCIÁVEIS e devem ser preservados a todo custo.

No primeiro dia de mobilização do ATL, uma decisão do Ministro Gilmar Mendes, relator de ações sobre a Lei do Genocídio Indígena (14.701), evidenciou mais uma vez sua parcialidade favorável aos ruralistas e historicamente anti-indígena. Apesar de reconhecer que a Lei contraria decisões feitas pelo STF sobre terras indígenas, Mendes, ao invés de anular a Lei, ele suspendeu todas as ações que visam garantir a manutenção dos direitos indígenas. Além disso, ele submeteu ao núcleo de conciliação do Tribunal a questão dos direitos fundamentais dos povos indígenas e mais uma vez afirmamos:

NOSSOS DIREITOS NÃO SE NEGOCIAM! O ministro quer assim dar sinal verde para os que querem invadir nossas terras passarem a boiada sobre nossas vidas. Diante dessa decisão anti-indígena que foi feita por um único ministro, RESTA SABER SE TODOS OS DEMAIS MINISTROS E MINISTRAS DO STF IRÃO SE ACOVARDAR OU IRÃO SER CONTRÁRIOS A ESSA DECISÃO DE MORTE!

Jamais aceitaremos a legalização do genocídio contínuo de nossos povos. Da mesma forma, repudiamos veementemente a abertura de nossos territórios a empreendimentos que contrariam a urgência da crise climática e do aquecimento global. Tais empreendimentos representam uma ameaça direta à mãe natureza, às florestas, aos nossos rios, à biodiversidade, à fauna e à flora, assim como a todas as riquezas e formas de vida que preservamos ao longo de milênios. Se há recursos disponíveis para compensar invasores, por que não utilizá-los para demarcar as Terras Indígenas? Se houver necessidade de comprar terras, que seja para reassentar os invasores, e não deslocar nossos povos de suas terras originárias. PRESIDENTE LULA, NÃO QUEREMOS VIVER EM FAZENDAS! É preciso impedir que Rui Costa, Ministro Chefe da Casa Civil, siga “mandando” sobre as homologações de Terras Indígenas.

Não admitimos esta situação. Estaremos vigilantes para que o Presidente Lula cumpra o compromisso de instalar, em um período de 15 dias, uma Força-Tarefa, composta por Ministério da Justiça, Ministério dos Povos Indígenas, Secretaria-Geral da Presidência e Advocacia Geral da União (AGU), para dialogar com os Três Poderes e demarcar definitivamente todas as nossas terras. Esperamos, ainda, que essa Força-Tarefa conte com participação efetiva de nossos povos e organizações.

Lutamos pela terra, porque é nela que cultivamos nossas culturas, nossa organização social, nossas línguas, costumes e tradições. E, principalmente, está nas nossas terras e territórios o nosso direito de permanecermos indígenas. Somos cidadãos de direitos, somos nossos próprios representantes, aldeamos a política e continuaremos a demarcar o Brasil.

NOSSO MARCO É ANCESTRAL. SEMPRE ESTIVEMOS AQUI. E SEMPRE ESTAREMOS AQUI! SEM DEMARCAÇÃO NÃO HÁ DEMOCRACIA!

Acampamento Terra Livre, Brasília, 26 de abril de 2024

Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)

Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme)

Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul)

Articulação dos Povos Indígenas da Região Sudeste (Arpinsudeste)

Assembleia Geral do Povo Kaiowá e Guarani (Aty Guasu)

Comissão Guarani Yvyrupa

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) 

Conselho do Povo Terena

 

¨      MPF defende criação de fórum sobre violações a indígenas durante ditadura militar

 

Durante mesa ocorrida nesta sexta-feira (26), dia do encerramento da 20ª edição Acampamento Território Livre (ATL), em Brasília (DF), o Ministério Público Federal (MPF) defendeu a necessidade de reparação aos povos indígenas por violações a direitos humanos cometidos contra eles durante o período da ditadura militar. O tema foi debatido na plenária “Justiça de Transição, por reparação e não repetição dos crimes cometidos pela ditadura contra os povos indígenas”.

Na ocasião, os procuradores da República Edmundo Dias e Marco [Antonio] Delfino, e o procurador regional da República Marlon Alberto Weichert falaram da decisão inédita que concedeu recentemente anistia política coletiva aos povos Krenak, de Minas Gerais, e Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, por danos causados durante a ditadura militar. Os pedidos de anistia coletiva foram apresentados pelo MPF em 2015. Na decisão, ocorrida no início deste mês de abril, a Comissão da Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, realizou pedido público de desculpas aos povos originários e encaminhou recomendações a diversos órgãos da União para reconhecimento e reparação, como a conclusão de processos de demarcação de terras, o fornecimento de serviços e a garantia do acesso à saúde e educação às comunidades.

Edmundo Dias, autor do pedido em relação ao povo Krenak, destacou episódios que marcaram as graves violações a direitos humanos ocorridas no período, incluindo crimes como tortura e o deslocamento forçado do povo Krenak de seu território:

“Além de terem sofrido toda a violência que representa a instalação de um presídio em seu território, o Reformatório Krenak, que trancafiou indígenas de etnias de todas as regiões do país, e de terem tido suas formas de auto-organização subvertidas pela insidiosa criação de uma Guarda Rural Indígena, os Krenak sofreram o deslocamento forçado para uma outra região, distante de seu território tradicional, fazendo também com que perdessem contato com o Rio Doce, o Watu, que é uma entidade sagrada para os Krenak”.

O procurador enfatizou ainda que

“o histórico de violações aos direitos humanos dos povos indígenas segue uma mesma linha de continuidade que perdura até hoje, voltada a tornar inefetivos seus direitos. Exemplo disso é a tese do marco temporal, que nada mais é do que mais uma contribuição para a desterritorialização dos povos indígenas. Essa similaridade de propósitos se evidencia no objetivo principal do deslocamento forçado do Povo Krenak, em 1972, para a Fazenda Guarani, promovido pela ditadura militar: liberar o território ancestral Krenak para os posseiros que haviam se apropriado de suas terras, estimulando a implantação de uma determinada visão míope de um desenvolvimento raso, que não é o da sustentabilidade que defendem nossos povos originários.”

O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, estimou em pelo menos 8.350 mil o número indígenas mortos durante o período da ditadura militar. “Essas histórias estão aí, nunca foram contadas, nunca foram visibilizadas e nem reparadas”, complementou Marco [Antonio] Delfino. Na ocasião, o procurador da República também abordou o tema do deslocamento forçado de guaranis-kaiowás no Centro-Oeste.

·        Comissão Indígena

Entre os eixos prioritários levantados pelo MPF, está a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV), para apuração e reparação das violações aos direitos indígenas durante a ditadura militar no Brasil. Ressaltando barreiras políticas, o procurador regional da República Marlon Weichert defendeu a necessidade de ampliação das discussões e o fortalecimento do tema por meio da criação de um Fórum pela revelação da verdade. “A revelação da verdade vai nos permitir ter processos reparatórios de diversas naturezas aos povos indígenas e de garantia da memória e das histórias de resistência”, enfatizou.

Além dos indígenas, o grupo seria formado por órgãos públicos vinculados ao tema, como o Ministério Público, a Funai e outros órgãos, além de organizações da sociedade civil. Seu objetivo seria desenvolver uma metodologia que demonstre ao governo e a toda sociedade brasileira que a criação da CNIV é oportuna e necessária. “Assim poderemos construir uma pauta inafastável a fim de avançar a garantia de um processo de recuperação da proteção dos direitos dos povos indígenas em relação às violações cometidas durante o período da ditadura militar”, defendeu Weichert.

“A Comissão deve ser criada para permitir que histórias sejam contadas e que os povos indígenas sejam reparados. Estamos aqui para que isso saia do porão e venha para a luz”, concluiu Marco [Antonio] Delfino.

·        Evento

Ao longo dos debates, os procuradores destacaram ainda a importância do Acampamento Território Livre (ATL) para ampliar o alcance da voz dos indígenas perante a sociedade. Durante cinco dias, o evento reuniu povos indígenas e representantes do Poder Público e da sociedade civil para compartilhamento de demandas das comunidades e definição de estratégias para fomento de políticas públicas.

“Encontros como esse são importantes para dar visibilidade às reivindicações dos povos indígenas. Há várias pautas: saúde, demarcação, de reparação. E todas se reúnem aqui”, afirmou Marco [Antonio] Delfino. Para ele, o evento também é simbólico ao apresentar a diversidade das comunidades a força de suas tradições.

Edmundo Dias ressaltou a importância do ATL “como espaço para construção, pelos povos indígenas, de estratégias de resistência e luta por direitos, a partir da troca de experiências e vivencias, inclusive no contexto das seguidas violações a direitos que enfrentam.”

 

Fonte: Cimi/Secom PGR

 

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