Terra, Tempo e Luta: Declaração Urgente dos
Povos Indígenas do Brasil
Carta
Final do 20º Acampamento Terra Livre (ATL)
Nós, povos indígenas,
somos o próprio tempo. Somos encantadores desse tempo que é como uma serpente,
com muitas curvas, uma história que não pode ser simplificada como uma linha
reta. Quem poderia imaginar que, após mais de cinco séculos de colonização e
extermínio, estaríamos aqui, firmes como nossas florestas, entoando nossos
cantos e tocando nossos maracás, em resistência pela vida e pelo bem viver de
toda a sociedade. 20 anos de Acampamento Terra Livre! O primeiro, realizado em 2004, reuniu 240 indígenas. Hoje, em
Brasília, estamos aqui com cerca de 9 mil pessoas, representando mais de 200
povos, que vieram de todas as regiões e biomas desse território brasileiro para
dizer: ‘NOSSO MARCO É ANCESTRAL! SEMPRE ESTIVEMOS AQUI!’
Entre os dias 22 e 26
de abril, estivemos na capital federal mobilizados para reivindicar nossos
direitos! Nós da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em conjunto
com todas as nossas organizações regionais de base, Apoinme, Arpinsul, Arpinsudeste,
Aty Guasu, Comissão Guarani Yvyrupa, Coiab e o Conselho do Povo Terena,
buscamos medidas efetivas que assegurem a proteção e o fortalecimento dos
direitos indígenas, alinhadas com a dignidade e a justiça reivindicadas por
nossos povos.
Começamos nossa
mobilização histórica reivindicando 25 pontos, que estão na ‘Carta dos Povos
Indígenas do Brasil aos Três Poderes do Estado’, com exigências para
medidas urgentes. E finalizamos nossa mobilização reafirmando essas
urgências! NOSSO TEMPO É AGORA! Já não podemos esperar mais tempo e
precisamos de respostas concretas!
A decisão deliberada
dos poderes do Estado de suspender a demarcação das terras indígenas e de
aplicar a Lei 14.701 (Lei do Genocídio Indígena) equivale a uma DECLARAÇÃO DE
GUERRA contra nossos povos e territórios. Isso representa uma quebra no pacto
estabelecido entre o Estado brasileiro e nossos povos desde a promulgação da
Constituição de 1988, que reconheceu exclusivamente nossos direitos
originários, anteriores à própria formação do Estado brasileiro.
Alertamos que essa
ruptura intencional resultará no aumento das violências e das políticas e
práticas de genocídio historicamente promovidas tanto pela sociedade quanto
pelo próprio Estado contra os povos indígenas. Desde os períodos mais remotos
da história até os dias atuais, incluindo o legado sombrio da ditadura militar,
cujas consequências ainda ecoam em nossas vidas.
Também ressaltamos
que, assim como fizeram nossos ancestrais, resistiremos até o fim, mesmo que
isso signifique colocar em jogo nossas próprias vidas, para proteger o que é
mais sagrado para nós: nossa Mãe Terra. Estamos comprometidos com o direito de
viver com dignidade e liberdade, buscando o bem viver das gerações atuais e
futuras dos nossos povos e da humanidade.
O que nos preocupa não
é a morte. Esta, nós conhecemos de perto. Morte e vida são parte dessa serpente
do tempo que transita sobre a terra, dentro das águas e na copa das árvores
mais altas. O que nos preocupa é a covardia de quem tenta dominar o tempo indomável
e busca lucrar com as nossas mortes. Nesta declaração afirmamos: NÃO HÁ MAIS
TEMPO PARA VOCÊS!
Rejeitamos
veementemente qualquer tentativa do governo federal de retomar políticas
públicas sem garantir o essencial: a demarcação, proteção e sustentabilidade
dos territórios indígenas em primeiro lugar. Qualquer iniciativa que não
priorize esses aspectos será apenas uma medida paliativa e insuficiente. É
fundamental que a demarcação de terras seja respeitada e protegida, sem desvios
ou manipulações, incluindo ações que visem desvirtuar esse processo, como as
declarações recentes do presidente Lula. Os direitos territoriais dos povos
indígenas são INEGOCIÁVEIS e devem ser preservados a todo custo.
No primeiro dia de
mobilização do ATL, uma decisão do Ministro Gilmar Mendes, relator de ações
sobre a Lei do Genocídio Indígena (14.701), evidenciou mais uma vez sua
parcialidade favorável aos ruralistas e historicamente anti-indígena. Apesar de
reconhecer que a Lei contraria decisões feitas pelo STF sobre terras indígenas,
Mendes, ao invés de anular a Lei, ele suspendeu todas as ações que visam
garantir a manutenção dos direitos indígenas. Além disso, ele submeteu ao
núcleo de conciliação do Tribunal a questão dos direitos fundamentais dos povos
indígenas e mais uma vez afirmamos:
NOSSOS DIREITOS NÃO SE
NEGOCIAM! O ministro quer assim dar sinal verde para os que querem invadir
nossas terras passarem a boiada sobre nossas vidas. Diante dessa decisão
anti-indígena que foi feita por um único ministro, RESTA SABER SE TODOS OS
DEMAIS MINISTROS E MINISTRAS DO STF IRÃO SE ACOVARDAR OU IRÃO SER CONTRÁRIOS A
ESSA DECISÃO DE MORTE!
Jamais aceitaremos a
legalização do genocídio contínuo de nossos povos. Da mesma forma, repudiamos
veementemente a abertura de nossos territórios a empreendimentos que contrariam
a urgência da crise climática e do aquecimento global. Tais empreendimentos
representam uma ameaça direta à mãe natureza, às florestas, aos nossos rios, à
biodiversidade, à fauna e à flora, assim como a todas as riquezas e formas de
vida que preservamos ao longo de milênios. Se há recursos disponíveis para
compensar invasores, por que não utilizá-los para demarcar as Terras Indígenas?
Se houver necessidade de comprar terras, que seja para reassentar os invasores,
e não deslocar nossos povos de suas terras originárias. PRESIDENTE LULA,
NÃO QUEREMOS VIVER EM FAZENDAS! É preciso impedir que Rui Costa, Ministro
Chefe da Casa Civil, siga “mandando” sobre as homologações de Terras Indígenas.
Não admitimos esta
situação. Estaremos vigilantes para que o Presidente Lula cumpra o compromisso
de instalar, em um período de 15 dias, uma Força-Tarefa, composta por
Ministério da Justiça, Ministério dos Povos Indígenas, Secretaria-Geral da
Presidência e Advocacia Geral da União (AGU), para dialogar com os Três Poderes
e demarcar definitivamente todas as nossas terras. Esperamos, ainda, que essa
Força-Tarefa conte com participação efetiva de nossos povos e organizações.
Lutamos pela terra,
porque é nela que cultivamos nossas culturas, nossa organização social, nossas
línguas, costumes e tradições. E, principalmente, está nas nossas terras e
territórios o nosso direito de permanecermos indígenas. Somos cidadãos de
direitos, somos nossos próprios representantes, aldeamos a política e
continuaremos a demarcar o Brasil.
NOSSO
MARCO É ANCESTRAL. SEMPRE ESTIVEMOS AQUI. E SEMPRE ESTAREMOS AQUI! SEM
DEMARCAÇÃO NÃO HÁ DEMOCRACIA!
Acampamento Terra
Livre, Brasília, 26 de abril de 2024
Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Articulação
dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo
(Apoinme)
Articulação
dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul)
Articulação
dos Povos Indígenas da Região Sudeste (Arpinsudeste)
Assembleia
Geral do Povo Kaiowá e Guarani (Aty Guasu)
Comissão
Guarani Yvyrupa
Coordenação
das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab)
Conselho
do Povo Terena
¨
MPF defende criação de
fórum sobre violações a indígenas durante ditadura militar
Durante mesa ocorrida
nesta sexta-feira (26), dia do encerramento da 20ª edição Acampamento
Território Livre (ATL), em Brasília (DF), o Ministério Público Federal (MPF)
defendeu a necessidade de reparação aos povos indígenas por violações a
direitos humanos cometidos contra eles durante o período da ditadura militar. O
tema foi debatido na plenária “Justiça de Transição, por reparação e não
repetição dos crimes cometidos pela ditadura contra os povos indígenas”.
Na ocasião, os
procuradores da República Edmundo Dias e Marco [Antonio] Delfino, e o
procurador regional da República Marlon Alberto Weichert falaram da decisão inédita que concedeu recentemente
anistia política coletiva aos povos
Krenak, de Minas Gerais, e Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, por danos
causados durante a ditadura militar. Os pedidos de anistia coletiva foram
apresentados pelo MPF em 2015. Na decisão, ocorrida no início deste mês de
abril, a Comissão da Anistia, vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos,
realizou pedido público de desculpas aos povos originários e encaminhou
recomendações a diversos órgãos da União para reconhecimento e reparação, como
a conclusão de processos de demarcação de terras, o fornecimento de serviços e
a garantia do acesso à saúde e educação às comunidades.
Edmundo Dias, autor do
pedido em relação ao povo Krenak, destacou episódios que marcaram as graves
violações a direitos humanos ocorridas no período, incluindo crimes como
tortura e o deslocamento forçado do povo Krenak de seu território:
“Além de
terem sofrido toda a violência que representa a instalação de um presídio em
seu território, o Reformatório Krenak, que trancafiou indígenas de etnias de
todas as regiões do país, e de terem tido suas formas de auto-organização
subvertidas pela insidiosa criação de uma Guarda Rural Indígena, os Krenak
sofreram o deslocamento forçado para uma outra região, distante de seu
território tradicional, fazendo também com que perdessem contato com o Rio
Doce, o Watu, que é uma entidade sagrada para os Krenak”.
O procurador enfatizou
ainda que
“o
histórico de violações aos direitos humanos dos povos indígenas segue uma mesma
linha de continuidade que perdura até hoje, voltada a tornar inefetivos seus
direitos. Exemplo disso é a tese do marco temporal, que nada mais é do que mais
uma contribuição para a desterritorialização dos povos indígenas. Essa
similaridade de propósitos se evidencia no objetivo principal do deslocamento
forçado do Povo Krenak, em 1972, para a Fazenda Guarani, promovido pela
ditadura militar: liberar o território ancestral Krenak para os posseiros que
haviam se apropriado de suas terras, estimulando a implantação de uma
determinada visão míope de um desenvolvimento raso, que não é o da
sustentabilidade que defendem nossos povos originários.”
O relatório final da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014, estimou em pelo menos 8.350 mil o
número indígenas mortos durante o período da ditadura militar. “Essas histórias
estão aí, nunca foram contadas, nunca foram visibilizadas e nem reparadas”,
complementou Marco [Antonio] Delfino. Na ocasião, o procurador da República
também abordou o tema do deslocamento forçado de guaranis-kaiowás no
Centro-Oeste.
·
Comissão Indígena
Entre os eixos
prioritários levantados pelo MPF, está a criação da Comissão Nacional Indígena
da Verdade (CNIV), para apuração e reparação das violações aos direitos
indígenas durante a ditadura militar no Brasil. Ressaltando barreiras
políticas, o procurador regional da República Marlon Weichert defendeu a
necessidade de ampliação das discussões e o fortalecimento do tema por meio da
criação de um Fórum pela revelação da verdade. “A revelação da verdade vai nos
permitir ter processos reparatórios de diversas naturezas aos povos indígenas e
de garantia da memória e das histórias de resistência”, enfatizou.
Além dos indígenas, o
grupo seria formado por órgãos públicos vinculados ao tema, como o Ministério
Público, a Funai e outros órgãos, além de organizações da sociedade civil. Seu
objetivo seria desenvolver uma metodologia que demonstre ao governo e a toda
sociedade brasileira que a criação da CNIV é oportuna e necessária. “Assim
poderemos construir uma pauta inafastável a fim de avançar a garantia de um
processo de recuperação da proteção dos direitos dos povos indígenas em relação
às violações cometidas durante o período da ditadura militar”, defendeu
Weichert.
“A Comissão deve ser
criada para permitir que histórias sejam contadas e que os povos indígenas
sejam reparados. Estamos aqui para que isso saia do porão e venha para a luz”,
concluiu Marco [Antonio] Delfino.
·
Evento
Ao longo dos debates,
os procuradores destacaram ainda a importância do Acampamento Território Livre
(ATL) para ampliar o alcance da voz dos indígenas perante a sociedade. Durante
cinco dias, o evento reuniu povos indígenas e representantes do Poder Público e
da sociedade civil para compartilhamento de demandas das comunidades e
definição de estratégias para fomento de políticas públicas.
“Encontros como esse
são importantes para dar visibilidade às reivindicações dos povos indígenas. Há
várias pautas: saúde, demarcação, de reparação. E todas se reúnem aqui”,
afirmou Marco [Antonio] Delfino. Para ele, o evento também é simbólico ao
apresentar a diversidade das comunidades a força de suas tradições.
Edmundo Dias ressaltou
a importância do ATL “como espaço para construção, pelos povos indígenas, de
estratégias de resistência e luta por direitos, a partir da troca de
experiências e vivencias, inclusive no contexto das seguidas violações a
direitos que enfrentam.”
Fonte: Cimi/Secom PGR
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