segunda-feira, 29 de abril de 2024

Rubens Pinto Lyra: Autoritarismo de esquerda e socialismo

A nossa esquerda endossou, durante muito tempo, com ou sem restrições, regimes supostamente socialistas – boa parte continua a fazê-lo – e copiou algumas de suas práticas autoritárias. Já é tempo de cessar o que resta de incoerência nessa matéria.

Não pretendo, nessas linhas, desenvolver teses sobre a matéria, mas abordá-la em alguns tópicos, apresentando exemplos que respaldam minha argumentação, tendo em vista à inibição da esquerda de por o dedo na ferida.

Este é o país do voto obrigatório, justificado pela maior parte dos progressistas, mesmo se viola a autonomia individual, conditio sine qua non para o livre exercício do sufrágio universal. País em que as decisões de cima para baixo são moeda corrente, mesmo em partidos democráticos e de esquerda, como o PT, onde o candidato (a) à Presidência da República tem sido, de fato, designado pelo seu presidente honorário. Candidatos à Prefeito, ainda que escolhidos por votação interna, em prévias, têm, não raro, seus nomes rejeitados pela direção nacional do partido, assumindo ela própria a escolha.

Sendo um dos fundadores do PT na Paraíba e ex-integrante do seu Diretório Regional, dele desliguei-me após dez anos de filiação, por ter sido frustrada minha expectativa de uma democracia interna que funcionasse com participação regular, efetiva e decisória, das bases.

Promessa ilusória, como às referentes à democracia participativa, que o PT pretendia disseminar mediante os chamados espaços públicos não estatais, lócus por excelência da participação direta e soberana de todos os cidadãos.

Com efeito, essas veleidades foram abandonadas e mesmo a ouvidoria pública, autônoma e democrática, que não dispõe de nenhum poderdecisório, nunca foi adotada. Não existe, no meu conhecimento, nenhuma ouvidoria com essas características na administração pública federal, sendo todas obedientes.

Assim denomino aquelas cujos titulares são escolhidos pelo gestor, quase sempre, com critério político. A eficácia dessas ouvidorias é duvidosa, visto que o usuário, através do ouvidor, não pode reclamar do gestor, ou, se necessário, denunciá-lo, sob pena de provável demissão. Não é por acaso que a Ouvidoria de Polícia de São Paulo, criada pelo governador Mário Covas e estudada em outro capítulo desse livro, é uma das poucas dotadas de plena autonomia, tendo sua atuação reconhecida e divulgada em todo o país (LYRA: 2012).

Confirmam o acerto desses comentários reportagem do dia 29 de marco de 2004, no portal UOL: “a ausência de uma ouvidoria independente da Secretária de Administração Penitenciária de São Paulo acentua a insegurança dos familiares na hora de denunciar”, afirmam advogados que acompanham os casos.“Falta uma ouvidoria nos moldes da polícia de São Paulo”, diz Ariel de Castro Alves, Secretário Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente” (PEREZ: 2024).

Outro exemplo. Em artigo veiculado, em 2012, na revista Política e Trabalho “A conferência de segurança pública e a participação tutelada”, também publicado pela ANPOCS, analisei os mecanismos de participação da sociedade civil e de órgãos governamentais na IX Conferência Nacional de Segurança Pública, convocada, no ano 2010, pelo governo petista.

Os resultados desse trabalho evidenciaram a existência de critérios de representação e metodologia de discussão e votação, que restringiram o potencial democrático dessa conferência, configurando participação tutelada da sociedade pelo governo (LYRA:2012, 317-334).

No campo político-partidário, os posicionamentos de petistas e do presidente Lula em relação a países que transitam entre o autoritarismo e a ditadura, a exemplo de Coreia do Norte, Cuba, Nicarágua e Venezuela, sempre se revelaram complacentes. Nunca denunciam o verdadeiro caráter desses regimes, limitando-se, regra geral, a apontar a existência de “erros”, “desvios” e de aspectos negativos.

Como o fez Lula, qualificando de “grave” o impedimento da candidata de oposição à Presidência da Venezuela para inscrever sua candidatura, mas poupando o regime venezuelano. Tudo indica que suas críticas a Nicolas Maduro se explicam mais por pressões externas e internas de que por vontade própria.

Em janeiro de 2021, em live no Instagram, o atual Presidente da República afirmou que os grandes protestos ocorridos em Havana “foram uma mera passeata”. Nem uma palavra foi dita sobre a repressão aos manifestantes. Já o PT divulgou nota na qual comunicou seu “apoio ao povo e ao governo cubano” (COMUNICADO DE APOIO: 1921).

A complacência – ou mesmo a cumplicidade – da esquerda em relação a países que não respeitam o voto livre e soberano, nem as liberdades democráticas, também se manifestam no âmbito da sociedade civil. Foi o que ocorreu na calorosa recepção dada a Fidel Castro pelos participantes do Conselho Nacional das Associações Docentes (CONAD).

Hospedados no mesmo hotel do líder cubano, este aceitou discursar para uma “platéia atenta e emocionada” – e o fez durante uma hora – “sob o argumento de que a totalidade dos professores apoiava a causa cubana” e a resistência do povo latino-americano ao imperialismo” (FIDEL NO CONAD:1999). O problema é que o apoio acrítico “à causa cubana” significa endossar uma ditadura.

A história mostrou a fragilidade dos regimes ditos socialistas, liquidando-os em poucos dias, como ocorreu na Europa Oriental. O de Cuba claudica: dificilmente realizará os ideais de progresso, igualdade e liberdade, características inerentes ao socialismo concebido por Karl Marx.

Eugênio Bucci, petista, professor da USP e ex-integrante do governo Lula, em recentíssima análise da realidade social e política no A Terra é Redonda conclui que “Quase tudo se esvai. Da Revolução resta pouco, além de repartições burocráticas e gabinetes de vigilância política”. Nas palavras de Mário Sérgio Conti “Cuba está sem futuro à vista. A derrota que se expressa agora é a calcinação de um sonho”. Por sua vez, Frei Beto, entusiasta do regime cubano, declarou: “é desesperador, ninguém em Havana aponta saídas” (2024).

Poucos, no interior da esquerda marxista, negaram o caráter socialista aos regimes existentes no Leste Europeu, até 1989, ao de Cuba e ao da Coréia do Norte. Todavia, muitos o teriam feito se tivessem tomado conhecimento da obra de Karl Kautsky, principal teórico marxista da II Internacional, de igual ou maior envergadura que a do fundador do Estado Soviético. Obra que permaneceu no limbo, nos países “socialistas”, et pour cause, durante todo o período de sua existência.

Karl Kautsky passou a ser considerado “renegado” por Vladímir Lênin, a partir de sua discordância a respeito do caráter da Revolução Russa e da “ditadura do proletariado” que a regia.

O conhecimento das teses de quem, até polemizar com Lênin, era considerado o “Papa do marxismo”, é indispensável para o entendimento da derrocada dos antigos regimes do Leste Europeu e assemelhados, e para a compreensão das características de um regime socialista, do qual a democracia é indissociável.

débâcle da União Soviética, ocorrida em 1989, já havia sido anunciada como inevitável por Karl Kautsky desde 1919, pouco depois da vitória da Revolução Russa, portanto, há setenta anos. Mas em 1930 foi enfático: “Essa louca experiência vai terminar em estrondoso fracasso. Nem mesmo o maior dos gênios poderá evitá-lo. Ela resulta naturalmente do caráter irrealizável da empreitada, nas condições dadas, com os meios utilizados” (1931, p. 21).

Na esteira do pensamento de Marx, Karl Kautsky acreditava que somente seria possível efetuar a transição para o socialismo onde o modo de produção capitalista já fosse dominante. Portanto, onde o nível de desenvolvimento das forças produtivas pudesse garantir riquezas a serem repartidas com a população, e este não era o caso da Rússia Soviética.

O “socialismo de penúria”, intentado na Rússia, expressa uma contradição em termos, um contra-senso para quem defende a concepção marxiana de socialismo. Para Karl Kautsky, o modo de produção construído pelos bolcheviques (comunistas), não era socialista, e sim “capitalismo de Estado”, o qual “se limita a substituir os patrões privados – expropriados da propriedade do seu capital – por funcionários que, no essencial, conservam as antigas relações de produção, fundadas sobre o poder absoluto da empresa e da classe dominante do Estado”. Entenda-se, a nomenclatura, dominada pelo Partido Comunista da União Soviética (1931: p.74).

A nossa esquerda endossou, durante muito tempo, com ou sem restrições, regimes supostamente socialistas – boa parte continua a fazê-lo – e copiou algumas de suas práticas autoritárias. Já é tempo de cessar o que resta de incoerência nessa matéria. Tomo emprestado análise de Quiniou: “A democracia deve, pois, aparecer, ao mesmo tempo, como o ponto de partida, forma constante e objetivo último do socialismo. Longe de poder definir a democracia como uma simples exigência deste, devemos considerá-la a essência do socialismo. É o socialismo que deve ser considerado, no sentido inverso, uma exigência da democracia” (1992: p. 135).

Minha geração, na sua juventude, acreditou que a revolução estivesse batendo à porta, ao alcance da mão. O advento da ditadura militar de 1964, implantada sem nenhuma resistência, fez com que esse sonho desmoronasse. Passou então a crer que seria possível alcançar, ainda que por etapas, o socialismo, sendo o PT o principal instrumento dessa transição.

Mas a “correlação de forças” não evoluiu linearmente – longe disso – como durante muito tempo se acreditou – em favor das “forças progressistas”. Poder-se-ia até dizer que se deu o contrário. Primeiramente, com a derrocada dos países supostamente socialistas, gerando desmobilização e desilusão em relação ao futuro, por parte dos adversários do capitalismo. Em seguida, com o crescimento exponencial da direita, tanto no Brasil quanto nas democracias mais avançadas, sendo o resultado das eleições legislativas de março de 2023 em Portugal a última amostra.

O entendimento hoje dominante dos que apostam nas possibilidades de avanço social e democrático é de que se impõe, antes de tudo, a busca da consolidação e o aperfeiçoamento da democracia representativa, paradoxalmente desqualificada por parte significativa das esquerdas.

Com efeito, no Brasil a valorizam, quando mostram a necessidade de preservá-la, face ao crescimento do bolsonarismo e de outras variantes neofascistas. Mas a depreciam alhures, como nos Estados Unidos e nas demais democracias ocidentais. Não apontam suas importantes limitações, intrínsecas à democracia no capitalismo, mas praticamente a desconsideram, a ponto de não verem diferenças significativas em relação entre ela e regimes como o russo, que transitam entre o autoritarismo e a ditadura tout court.

Entendo que a democracia no capitalismo, mesmo com deformações, é qualitativamente distinta de um regime como o da Rússia, e isto tem consequências práticas de monta. Vladimir Putin ameaça com uma guerra nuclear as potências ocidentais, caso contrariem suas políticas – e ninguém pode garantir que não seja uma bravata.

Nas democracias ocidentais o risco de um indivíduo comprometer a paz mundial em razão de suas posturas voluntaristas é certamente muito menor. O peso da opinião pública, a possibilidade de expressá-la em protestos e manifestações de massa, o pluralismo da mídia (mesmo longe do ideal), a força da sociedade civil independente e – last not but least – o exercício soberano do sufrágio universal – são fatores inibidores de aventuras.

Muitos esquerdistas não entendem tão significativa diferença por acreditarem que a democracia somente se edifica a partir da implantação do socialismo, quando, na realidade, sua construção, difícil e paulatina, se dá ainda sob a égide do capital.

Mesmo diante de tantas dificuldades, avançar é possível, tendo o socialismo como inspiração, na medida em que a democracia seja valorizada na teoria e na prática política. E sempre que estratégias anticapitalistas possam ter em conta as limitações atualmente existentes, sem abrir mão de um projeto que, a médio e longo prazo, aponte para uma alternativa socialista.

Possam a atual e as novas gerações, assim procedendo, palmilharem o caminho em direção a uma nova sociedade “em que a vida não carecerá de nenhuma justificativa, dada pelo sucesso ou por qualquer outra coisa, em que o indivíduo não será manipulado por nenhuma força alheia, que seja o Estado, o sistema econômico ou interesses materiais espúrios. Uma sociedade em que os interesses materiais do homem não se limitem à interiorização de exigências externas, mas que provenham realmente deles e exprimam objetivos oriundos do seu próprio ego” (FROMM: 1970, p, 130).

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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