Milei 'foi amador' ao subestimar
importância do Brasil e agora Lula 'cobra o preço', diz analista
A reação do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva ao envio de uma carta do seu homólogo argentino
Javier Milei revelou mais uma vez a falta de harmonia entre os governos dos
dois maiores países da América do Sul, cuja relação comercial é de vital
importância para ambas as economias.
Durante entrevista
coletiva na quarta-feira (24), Lula confirmou que a chanceler da Argentina,
Diana Mondino, entregou a Mauro Vieira uma carta escrita por Milei.
"Eu sei que o meu
chanceler recebeu uma carta do presidente Milei, mas acontece que meu chanceler
viajou e ainda não vi a carta. Quando ele regressar agora eu verei a carta. Não
sei o que Milei está dizendo na carta, por isso não posso responder. A única
coisa que eu posso adiantar é que depois que eu ler eu tenho interesse em
informar à imprensa o que a Argentina pretende discutir com o Brasil",
afirmou.
Na visão do analista
internacional da Universidade Nacional de La Plata, Juan Alberto Rial, "a
declaração de Lula não é inocente, tendo em conta as coisas que o presidente
argentino disse durante a campanha sobre Lula e o Brasil".
Para Rial, o fato de o
líder brasileiro não ter lido a carta é um gesto "intencional que não
busca agravar a natureza do vínculo interpessoal, mas cobra seu preço pelas
queixas recebidas durante a campanha". Nesse sentido, Lula "é um
veterano da política" que tem "clareza da consequência de cada uma
das mensagens e o objetivo que persegue", afirmou Rial em entrevista à
Sputnik.
Embora o petista tenha
dito desconhecer o conteúdo da carta, a mídia argentina noticiou que nela Milei
propôs a Lula marcar um encontro entre os dois. Segundo o especialista, a
mudança de posição do presidente argentino pode ser explicada pelas necessidades
dos setores econômicos que o apoiam no seu país.
"Não estou
convencido de que o presidente argentino esteja buscando uma aproximação com o
Brasil, mas o que está claro é que o establishment econômico e financeiro
argentino precisa estar em sintonia com o establishment econômico e financeiro
brasileiro", disse.
O analista também
sublinhou que o presidente argentino "peca pelo amadorismo" por não
ter levado em conta a importância do comércio com o Brasil, principal parceiro
comercial de Buenos Aires, superando a China e os Estados Unidos.
Nesse sentido, Rial
destacou a importância da Argentina manter "relações maduras" com
estes três países, além das posições pessoais dos líderes no poder.
"Se Milei não
gosta de Lula, é problema de Milei e não precisa ser problema do governo
argentino. No momento em que um presidente começa a cumprir um papel, suas
divergências pessoais devem ficar em segundo plano", sublinhou.
O especialista
argentino também relativizou o efeito concreto que essa "rusga" entre
os líderes pode ter no comércio bilateral. Embora reconheça que a falta de
harmonia entre Lula e Milei "não ajuda", garantiu que a
complementaridade das economias faz com que o comércio entre Brasil e Argentina
flua de qualquer maneira.
"Existem muitas
indústrias brasileiras que estão integradas em cadeias produtivas com a
indústria argentina. A mais emblemática é a indústria automobilística, onde
Argentina e Brasil produzem componentes recíprocos de sua produção de
automóveis e caminhões. Há uma integração que vai além do circunstancial e de
quem é o presidente de cada país", explicou.
Rial lembrou, por
exemplo, que os líderes anteriores, Alberto Fernández (2019-2023) e Jair
Bolsonaro (2019-2022) "disseram coisas atrozes" um ao outro e mesmo
assim o intercâmbio comercial permaneceu "normal": "É provável
que a mesma coisa aconteça agora", previu.
Contudo, o analista
abordou outro assunto que, segundo ele nesse, a diferença de gestão e diretriz
entre Lula e Milei em seus respectivos governos devem pesar mais: o Mercosul.
"Milei não tem a
mesma visão do Mercosul que Lula tem. Nesse aspecto, é mais provável que Milei
esteja muito mais próximo do presidente uruguaio, Luis Lacalle Pou, ou do
paraguaio, Santiago Peña", complementou.
Segundo dados do
último relatório de comércio bilateral elaborado pela Câmara Argentina de
Comércio e Serviços (CAC), o comércio bilateral entre Argentina e Brasil foi de
US$ 2,324 milhões (R$ 11,94 milhões) no terceiro mês do ano, 14,5% inferior ao
valor obtido no mesmo período de 2023, quando havia sido de US$ 2,719 milhões
(R$ 13,97 milhões).
Da mesma forma, o
câmbio melhorou 40,4% em relação a fevereiro passado, devido ao forte aumento
das exportações em 69,7% e das importações em 17,9%, relatou a CAC.
¨ Como a crise econômica fez disparar o uso das criptomoedas na
Argentina
Passaram-se 15 anos
desde o surgimento das criptomoedas, com a invenção do
bitcoin, mas em grande parte do mundo ainda há desconfiança em relação a esses
ativos virtuais, que continuam a se multiplicar.
No entanto, há um
punhado de países onde, por diferentes motivos, uma parcela significativa da
população adotou essas novas ferramentas financeiras. Um desses países é
a Argentina.
Embora seja difícil
quantificar o fenômeno, uma vez que se trata de atividades não regulamentadas e
descentralizadas, e, portanto, não há uma entidade que as reúna, há evidências
claras de que muitos argentinos adotaram as criptomoedas.
Uma primeira pista
está claramente visível: cidades como Buenos Aires estão repletas de
publicidades nas ruas que promovem sites de troca de criptomoedas. Mas também
há diversos dados do setor que confirmam sua popularidade entre os argentinos.
Em 2023, o país
apareceu em 15º lugar no Índice Global de Adoção de Criptomoedas, compilado
pela empresa americana Chainalysis, que analisa a indústria com base no volume
de transações relatado pelos diversos provedores de serviços.
A Argentina foi o
segundo maior mercado da América Latina, depois
do Brasil. Enquanto isso, uma das plataformas de compra e venda mais populares
do país, Lemon, relatou que 4 em cada 10 pessoas que baixaram um aplicativo de
criptomoedas na América Latina em 2023 o fizeram a partir da Argentina.
A empresa argentina,
que juntamente com a Binance - a maior plataforma de moedas digitais do mundo -
domina o mercado local, estima que cerca de 3 milhões de pessoas usem
plataformas de criptomoedas no país.
Isso colocaria os
investimentos em criptomoedas quase ao mesmo nível do mercado de capitais
tradicionais, onde são comprados e vendidos títulos negociáveis como ações e
títulos.
De acordo com dados
fornecidos à BBC Mundo pela Bolsas y Mercados Argentinos (BYMA), que reúne os
principais atores do mercado de valores, em 2023 houve 3.647.912 contas com
operações.
·
Primeiro registro de
criptomoedas
Outro sinal do
crescimento das criptomoedas na Argentina foi a abertura, no final de março, do
Registro de Provedores de Serviços de Ativos Virtuais, criado pela Comissão
Nacional de Valores (CNV).
O presidente da CNV,
Roberto Silva, afirmou a este veículo de comunicação que o registro foi
estabelecido por lei, seguindo as recomendações do Grupo de Ação Financeira
Internacional (GAFI) para prevenir a lavagem de dinheiro e o financiamento do
terrorismo.
"O objetivo do
registro é identificar os provedores, uma vez que eles passaram a ser sujeitos
obrigados", explicou, referindo-se às pessoas físicas ou jurídicas que têm
a obrigação legal de relatar à Unidade de Informação Financeira (UIF) sobre a
existência de transações suspeitas.
Silva afirmou que
devem se registrar tanto as empresas de criptoserviços argentinas quanto as de
origem estrangeira que direcionam
suas operações a residentes argentinos, fazem publicidade no país, usam um
domínio '.ar', têm subsidiárias locais ou geram mais de 20% de seu
negócio na Argentina.
Embora o organismo só
divulgue a lista de plataformas de criptomoedas quando o período de convocação,
que era de 45 dias, terminar, fontes do setor disseram à BBC Mundo que várias
dezenas de empresas já apresentaram sua solicitação.
A criação do registro
visa evitar que a Argentina entre na "lista cinza" de países com
risco de lavagem de dinheiro, o que complicaria as chances do país de
renegociar financiamento externo. Mas por que o negócio de criptomoedas
se expandiu tanto na Argentina?
·
Um "combo
explosivo"
O especialista em
criptoativos e professor de Tecnologia e Negócios, Rodrigo Civiello, afirma que
a Argentina enfrenta um "combo explosivo" de quatro fatores que
explicam por que muitos cidadãos decidiram adotar essa nova ferramenta
financeira.
#### 1.
Inflação de quase 300%
A rápida perda de
valor do peso, superior a dois dígitos por mês, leva os argentinos a buscar
outra moeda de reserva.
#### 2.
Restrições cambiais
As restrições à compra
de dólares - a forma mais tradicional de poupança dos argentinos - levam muitos
a buscar moedas alternativas.
#### 3.
Alta informalidade no trabalho
Os trabalhadores não
registrados representam cerca de 50% do mercado de trabalho e não podem receber
através de uma conta bancária, pois não conseguem justificar seus rendimentos.
#### 4.
Insegurança
"É um fator que
não é muito levado em consideração", diz Civiello. "Mas muitas
pessoas que compram dólares não querem tê-los em casa. Com as criptomoedas,
mesmo que o celular seja roubado, se você tiver a senha da sua conta, pode
recuperá-la".
"Devido a todos
esses fatores, a Argentina está na vanguarda", destaca à BBC Mundo.
Segundo a Bloomberg,
em fevereiro e março, a compra de criptomoedas na Argentina aumentou tanto que
até substituiu a compra de dólares como forma de poupança.
"A troca de pesos
por dólares, o principal refúgio seguro há décadas, perdeu parte de seu
atrativo nos últimos dois meses, já que a taxa de câmbio paralela comumente
usada fortaleceu-se em 10% em relação ao dólar, enquanto o Bitcoin disparou
quase 60% em relação ao dólar durante o mesmo período", informou a
Bloomberg.
Embora o Bitcoin - que
continua sendo a criptomoeda mais popular do mundo - esteja ganhando adeptos na
Argentina, não é a mais usada no país.
De acordo com um
relatório da exchange mexicana Bitso, 60% dos argentinos preferem as stablecoins,
outro tipo de criptoativo considerado mais seguro, pois seu valor está
vinculado a outro ativo, como o dólar, tornando-os menos voláteis.
·
Quem utiliza as
criptomoedas?
Embora os números
claramente mostrem que a Argentina é um dos países que mais está adotando
criptomoedas no mundo, a verdade é que, para a maioria dos argentinos, elas
ainda são algo desconhecido.
Civiello explica que
seu uso, por enquanto, parece estar principalmente em alguns setores da
população. Mas não são os grupos que se poderia pensar.
"Muitos imaginam
que aqueles que usam criptomoedas são pessoas especializadas em finanças e
mercados, mas a realidade é que, embora esses tenham sido os primeiros a usar
essa tecnologia disruptiva, agora qualquer pessoa pode abrir uma conta, o que leva
apenas cinco minutos", diz ele.
Os jovens, especialmente aqueles com empregos
informais, são um dos grupos que mais as usam. Outro conjunto que as adotou são
os freelancers, trabalhadores sem vínculo empregatício que oferecem serviços
para o exterior, afirma o especialista.
Dessa forma, conseguem
contornar a restrição que impede receber dólares em contas bancárias argentinas
(só é possível receber em pesos, e todo dinheiro recebido do exterior é
"pesificado" à taxa oficial, que é menor que a do mercado). Um terceiro grupo
que usa criptomoedas são os imigrantes.
"Temos muita
imigração de países vizinhos. Para enviar ou receber dinheiro de seus países de
origem, até recentemente, tinham que recorrer a um serviço de transferência de
divisas, que cobrava uma taxa de pelo menos 5% e a transferência levava entre
dois e cinco dias úteis. Com as criptomoedas, é imediato", diz Civiello.
Mas o setor talvez menos pensado que abraçou os ativos virtuais é um dos mais
tradicionais do país, e um emblema da Argentina: o campo.
Os produtores rurais,
os principais geradores de dólares na Argentina, não
apenas adotaram as criptomoedas como uma forma alternativa de comprar a moeda
verde no mercado paralelo (aqui chamado de "dólar blue").
Uma produtora rural,
que preferiu não revelar seu nome, explicou à BBC Mundo que essas novas
tecnologias até permitiram eliminar o dólar da equação, usando as próprias
colheitas - especialmente a soja - como "moeda" de troca.
"No setor
agrícola, usamos um aplicativo chamado Agrotoken, que nos dá um token para cada
tonelada de soja", disse.
"Tradicionalmente,
a unidade de medida no campo é um caminhão, que são 30 toneladas de soja.
Antes, se precisasse comprar um insumo que valesse o mesmo que uma tonelada e
meia de soja, tinha que vender um caminhão inteiro".
"Agora, apenas
verificando quantas toneladas de soja tenho armazenadas em bolsas de silo em
meu campo, posso 'tokenizar' a quantidade de soja que desejo e usar esses
agrotokens para comprar o que preciso, através de um cartão associado à minha
conta".
O sistema não apenas
permite vender apenas a quantidade necessária de cultivo. Além disso, evita ter
que transportar os caminhões até as empresas de grãos, já que esse processo caro só é realizado
no final, uma vez que os tokens são resgatados.
Os tokens até podem
ser usados como garantia para solicitar empréstimos em alguns bancos.
·
Regulamentações
O que acontecerá agora
que foi criado um registro de provedores? Isso poderia desencorajar o uso de
criptomoedas? E o que acontecerá com as plataformas que não se registrarem?
Segundo a CNV, os
provedores que atendem aos requisitos para se registrarem e não o fazem não
poderão mais operar legalmente na Argentina.
Para a Câmara
Argentina Fintech, que reúne empresas de tecnologia que oferecem
serviços financeiros, ter "um quadro normativo correto, que promova a
inovação e estabeleça os incentivos adequados, ao mesmo tempo em que protege as
pessoas que investem neles, é uma grande oportunidade" para o país.
"Hoje, a
Argentina lidera a indústria de criptomoedas regionalmente, em termos de
desenvolvimento tecnológico, empresas e adoção. Acreditamos que essa
regulamentação dos Provedores de Serviços de Ativos Virtuais pode ajudar a
complementar e consolidar esse processo, com um quadro normativo adequado, e
estamos trabalhando nisso", disse à BBC Mundo o diretor executivo da
Câmara, Mariano Biocca.
Em fevereiro passado,
quando a compra de Bitcoin disparou, a ONG Bitcoin Argentina alertou que as
denúncias de golpes com criptomoedas quintuplicaram,
um problema difícil de combater em um mercado desregulado.
Tanto a Câmara Fintech
quanto a CNV enfatizam que o registro regula os provedores, mas não os
clientes, nem os ativos em si.
No entanto, a lei que
criou o registro concede à CNV autoridade para regular e supervisionar o mundo
das criptomoedas, e espera-se que o órgão convoque futuramente uma consulta
pública antes de decidir como avançar.
Enquanto isso, o
crescimento das criptomoedas na Argentina pode depender da capacidade do
governo de Javier Milei de reduzir a
inflação, suspender as restrições sobre o dólar, reduzir a informalidade no
mercado de trabalho e melhorar a
segurança, os quatro principais fatores que atualmente impulsionam a
popularidade do dinheiro digital.
Fonte: BBC News Brasil
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