Marcus Cremonese: Uma faca e a liberdade de
expressão
Já há alguns anos
venho desenvolvendo uma atividade – talvez até uma forma de entretenimento –
que envolve dois aspectos principais: o primeiro é a minha observação da
gradual extinção do jornalismo como ocupação profissional; e o segundo é o
gosto que tenho pelas obras do realismo fantástico – este talvez seja o meu
maior incentivo.
Em outras palavras,
ultimamente, para cada notícia que leio, saio logo à procura de outros veículos
que cobriram o mesmo fato ou assunto. Nos últimos dias nem me foi preciso
vasculhar muito as redes sociais com relação a um episódio de facadas ocorrido
dentro de um shopping center em Bondi Junction, Sydney, Austrália.
No sábado, 13 de
abril, cerca de três horas da tarde, um homem de 40 anos, Joel Cauchi, natural
do estado de Queensland e sofrendo de um transtorno mental, esfaqueou várias
pessoas, matando seis e ferindo 12 – entre estes um bebê de nove meses.
Seguranças e polícia agiram imediatamente. O agressor acabou abatido por um
tiro da policial Amy Scott. Ele avançou sobre ela quando se recusou a largar a
faca. Karen Webb, comissária de polícia de Sydney, informou logo a seguir que
entre os mortos cinco eram mulheres e o único homem foi um segurança, em seu
primeiro dia de trabalho.
Cerca de uma hora
depois do atentado, o subcomissário Anthony Cooke afirmou que não houve nenhuma
informação, evidência nem inteligência coletada que indicasse que o que ocorreu
fosse um ato de terrorismo ou motivado por qualquer tipo de ideologia. O assassino
estava acometido de uma crise da sua condição mental. Na manhã seguinte, sua
família fez circular uma nota revelando sua surpresa, desolação e
constrangimento pelo ato, oferecendo pêsames às famílias dos mortos e se
desculpando com os feridos. Até aqui os fatos.
• Em cena, a “liberdade de expressão”
Na segunda-feira à
noite, Paul Barry, âncora do programa Media Watch da TV ABC e notável
jornalista investigativo, mostrou um pouco do tratamento que foi dado ao fato –
e não apenas nas redes sociais. Pego aqui uma carona.
No X, o site
@visegrad24 postou para seu quase um milhão de seguidores uma foto com a
legenda: “Primeira foto do terrorista que matou algumas pessoas em Sydney. Ele
esfaqueou numa área de judeus bem próxima a um restaurante israelense”. Outros
disseram que ele se parecia com um árabe (embora ele estivesse vestindo um
short e uma camiseta com um canguru, símbolo de um time de rugby local). Outras
postagens no X e no Facebook também trataram o fato como um ato terrorista.
Na Inglaterra, a
âncora Julia Hartley-Brewer, da Talk TV, postou em seu canal do X (@JuliaHB1)
para seu meio milhão de seguidores: “… outro ataque de terror por outro
terrorista islâmico… Hoje foi a vez da Austrália. Por quanto tempo nossos
governos pensam que nós vamos ter que aturar isso?”. De volta às postagens na Austrália,
@AussieCossack, duas horas depois do evento escreveu: “Relatos não confirmados
identificam o infrator como sendo Benjamin Cohen. Cohen? De fato? Pensávamos
que muita gente inicialmente tentou culpar os muçulmanos”.
Até agora tratei de
postagens por indivíduos, desses que publicam o que querem, quando e como
querem – para eles a grande dádiva da internet, ou seja, um palco para seus
narcisismos.
No entanto, o Canal 7,
um dos cinco maiores canais abertos da Austrália, cuja audiência atinge a casa
dos milhões – e que emprega jornalistas profissionais –, embarcou na mesma
canoa. Noticiou que “Benjamin Cohen é o assassino e que ele já era conhecido da
polícia”. Seis horas depois o canal colocou no ar um pedido de desculpas pelo
engano. Mas o verdadeiro Benjamin Cohen, um jovem estudante de Sydney, sofreu
os esperados milhares de ataques, coisa facilmente imaginável, uma
característica do reino das redes sociais. Em entrevista ao jornal The
Australian, Benjamin falou dos abusos e de sua experiência traumática. Lamentou
também que um canal de grande porte e audiência tenha publicado uma notícia
dessa relevância sem verificar sua procedência nem mesmo com a polícia.
No mesmo sábado foi
decretado luto oficial no país, bandeiras a meio mastro, e, cinco dias depois,
o shopping center foi reaberto para receber os milhares de buquês de flores que
para lá foram levados. Nesta mesma noite, a ABC-TV, o canal estatal, me fez
meditar e rever como “a gradual extinção” que citei acima vem sendo – heróica e
bravamente – estendida.
O 7:30 Report da ABC
fez o que nenhum outro canal, internauta ou influencer se incomodou em fazer.
Seus repórteres em Queensland apuraram que Joel já fora diagnosticado com
esquizofrenia há algum tempo. Ele vinha sendo medicado e observado por
profissionais de saúde até que abandonou a medicação e os cuidados. Começou a
viajar de uma pequena cidade para outra e assim passou a viver como um
sem-teto. Enquanto a polícia e profissionais de saúde prosseguem investigando
as possíveis razões do evento, o Governo do Estado recomendou a todos que não
se limitem a ver apenas as notícias nas redes sociais. Em reunião marcada para
amanhã ele irá discutir com os representantes das redes os mecanismos de bloqueio ou retirada de vídeos sobre esse
tipo de evento.
Fonte: Observatório da
Imprensa
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