terça-feira, 30 de abril de 2024

Movimento indígena com novo alvo: derrubar decisão de Gilmar Mendes

O movimento indígena elegeu um desafio no encerramento da 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), a maior assembleia dos povos originários no Brasil: derrubar a mais recente decisão de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre o marco temporal.

Em 22 de abril, durante o primeiro dia do acampamento, Mendes suspendeu todas as ações sob sua relatoria que tratam da lei que valida o marco temporal. Ela propõe que só sejam demarcadas terras ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. A lei, aprovada no Congresso Nacional em 2023, foi patrocinada pela bancada ruralista.

Gilmar Mendes é relator de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que pedem a derrubada da lei do marco temporal. Uma delas foi proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do ATL, junto a partidos políticos. As lideranças esperavam que Mendes desse um parecer rejeitando o marco, já que o próprio STF havia declarado, em setembro do ano passado, que a tese é inconstitucional, num ato considerado como uma conquista histórica dos indígenas.

Contudo, Mendes não só manteve a vigência da lei, como determinou a criação de uma câmara de conciliação para discutir a tese. Essa câmara será formada por entidades de defesa dos direitos indígenas e do agronegócio, partidos políticos, poderes Executivo e Legislativo, Procuradoria-Geral da República (PGR) e Advocacia-Geral da União (AGU). Cada uma das partes tem 30 dias para apresentar propostas para alcançar um consenso sobre o tema.

>>>>  que isso importa?

•        A ação do ministro Gilmar Mendes contrariou decisão do próprio STF do ano passado e, segundo as lideranças indígenas, fortalece a tese do marco temporal. O marco é o maior obstáculo à demarcação de novas terras atualmente

Agora, segundo a Apib, uma das prioridades do movimento nos próximos meses é trabalhar para tentar reverter a medida tomada por Mendes.

Há dois caminhos para isso, segundo Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib. Um deles é convencer outros ministros da Corte a rechaçarem a decisão monocrática de Mendes. Ela foi encaminhada para apreciação dos demais via julgamento virtual. A carta final do ATL cobra que os juízes “não se acovardem” e “sejam contrários a essa decisão de morte”.

A segunda alternativa depende do ministro Edson Fachin decidir pela inconstitucionalidade da lei em uma ação que pede sua derrubada, da qual ele é relator.

•        Indígenas avaliam que decisão de Gilmar Mendes é retrocesso

“O ministro Gilmar Mendes, acima de tudo, desprestigia o entendimento do colegiado do Supremo que já decidiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal”, destaca Terena, da Apib. “Isso traz uma insegurança jurídica enorme para os povos indígenas. A lei ainda está em vigência; os povos indígenas, no limbo jurídico; e a violência nos territórios, aumentando.”

A Apib avaliou a decisão de Mendes como um retrocesso que adiará ainda mais o já prolongado debate em torno do marco temporal, encarado pelos indígenas como a maior ameaça às demarcações. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, relatou em entrevista à Agência Pública no começo do mês que a lei tem atrapalhado a efetivação de novas demarcações pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Enquanto isso, o presidente da bancada ruralista no Congresso, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), classificou a decisão de Mendes como “uma vitória”. “Se a Funai a partir de agora quiser demarcar, vai ter que cumprir a lei que nós aprovamos no Congresso”, disse em vídeo postado em suas redes sociais.

O avanço no reconhecimento dos territórios tradicionais pelo Estado é a pauta central do movimento indígena e do Acampamento Terra Livre desde o seu surgimento, em 2003. Embora seja um direito garantido pela Constituição, a demanda segue longe de ser plenamente atendida.

“No ano passado, em setembro, quando o Supremo declarou a inconstitucionalidade da tese, não achamos que não estaríamos aqui, no dia de hoje, novamente falando sobre esse assunto”, afirmou Terena no fim do acampamento.

Em plenária na última manhã do ATL, Sonia Guajajara lamentou que a relatoria das ADIs contra a lei do marco temporal tenha ficado sob a relatoria de Mendes. “A decisão do marco temporal infelizmente caiu na mão do ministro Gilmar Mendes, que é declaradamente anti-indígena, embora, na hora do julgamento [em setembro], tenha votado contra [a tese]”, afirmou a ministra a uma plateia de indígenas de todos as regiões do país, na tenda principal do acampamento.

A Pública solicitou um posicionamento de Mendes, mas não recebeu resposta até a publicação da reportagem.

•        Tensão com governo diminui após Lula sinalizar avanço nas demarcações

Se por um lado os indígenas veem a decisão de Gilmar Mendes como um obstáculo, a avaliação da Apib sobre o governo federal é de que o diálogo deve prosseguir, com demandas pelo avanço das demarcações e pelo fortalecimento do Ministério dos Povos Indígenas e da Funai, comandados por lideranças indígenas.

O movimento pretende manter sua independência em relação à gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Ajudamos a eleger esse governo e estamos com ele porque, em relação ao governo anterior, é muito melhor o processo de diálogo e de participação, de retomada das nossas pautas”, apontou Kleber Karipuna, coordenador executivo da organização representando a Amazônia. “Mas seguimos com o tom de cobrança que o movimento indígena sempre teve ao longo dessa caminhada de 524 anos de luta e resistência e dos 20 anos do acampamento.”

A tensão entre os indígenas e Lula diminuiu depois que cerca de 40 representantes do movimento participaram de um encontro com o presidente no Palácio do Planalto, no dia 25 de abril. Neste ano, a Apib pediu para ser recebida pelo petista em vez de convidá-lo para o ATL, como ocorreu em 2022 e 2023.

A mudança de postura se deu após o governo recuar da homologação – a etapa final do processo de demarcação, que depende da assinatura presidencial – de quatro terras indígenas durante o encerramento da reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), em 18 de abril. Elas estão entre os 14 processos apontados como prontos para conclusão pelo governo de transição ainda em 2022.

Minutos antes do evento começar, Lula decidiu homologar apenas dois dos seis territórios, sob a justificativa de que os governadores dos estados onde se localizam – Alagoas, Paraíba e Santa Catarina – precisam de tempo para analisar que medidas tomar em relação aos ocupantes não indígenas. O argumento foi criticado pelo movimento indígena, já que, pela lei, a consulta aos governos estaduais não constitui etapa do rito de demarcação. A preocupação é a de que se crie um novo entrave ao processo de reconhecimento dos territórios.

Na reunião desta semana, que durou aproximadamente duas horas e meia, o presidente ouviu falas de várias das lideranças presentes e respondeu aos seus questionamentos, enquanto cerca de oito mil indígenas e apoiadores se manifestavam em frente ao palácio após terem marchado pelo Eixo Monumental. O presidente determinou a criação de uma força-tarefa, constituída pelos Ministérios da Justiça e Segurança Pública e dos Povos Indígenas, Secretaria-Geral da Presidência e AGU, para resolver os obstáculos existentes às quatro homologações.

Em entrevista a jornalistas no Planalto depois do encontro, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Márcio Macêdo, disse que há “problemas políticos” para a finalização da demarcação das Terras Indígenas (TIs) Potiguara de Monte-Mor, na Paraíba, e Xukuru Kariri, em Alagoas, e questões de “ordem jurídica” para a homologação das TIs de Santa Catarina, Morro dos Cavalos e Toldo Imbu.

Dinamam Tuxá, coordenador da Apib pela região Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, avaliou a força-tarefa como sinal de comprometimento de Lula com as demarcações. Contudo, ele faz uma ressalva.

“Estamos nos propondo a compor essa força-tarefa com os órgãos do governo, mas sem nos comprometer a conversar com ninguém fora do que prevê o decreto 1.775 [que regulamento o processo demarcatório]. Não vamos conversar com governador ou parlamentar para destravar a demarcação”, assinalou. “O decreto é claro, tem um rito, e esse rito tem que ser seguido.”

•        Batalha continua no Congresso

Para além da batalha em torno do marco temporal no STF, a Apib considera que a conjuntura atual de ataque aos direitos indígenas é resultado, em boa parte, do Congresso Nacional.

Tramitam no Legislativo quatro Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que buscam alterar o artigo 231 da Constituição Federal, que trata sobre os povos indígenas. Todas são patrocinadas pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a chamada bancada ruralista, que busca incluir o marco temporal na Carta Magna e transferir para o Legislativo a atribuição de novas demarcação e a ratificação das já realizadas, entre outros pontos.

Para fazer frente à força do agro na Câmara e Senado, a Apib pediu, na carta-manifesto lançada no primeiro dia do ATL, que o governo Lula se empenhe mais em impedir o avanço dessas projetos no Parlamento. O movimento analisa que o MPI frequentemente atua de maneira isolada para frear a agenda anti-indígena e que, para que haja chance disso ocorrer, é necessário que ministérios mais robustos, como a Casa Civil e a Secretaria de Relações Institucionais, também entrem no jogo.

 

•        Povo Kariri Xocó denuncia novas ameaças em Terra Indígena homologada, mas tomada por posseiros

 

Em 28 de abril de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou, durante a 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), seis terras indígenas, entre elas a TI Kariri Xocó, em Alagoas, com população de 4 mil indígenas e portaria declaratória publicada em 2006. Mesmo com parte da etapa final do procedimento administrativo concluída, a permanência de invasores no território leva ameaças aos ocupantes tradicionais.

Um ano depois, agora durante a 20ª edição do ATL, ocorreram novas ameaças contra a vida dos Kariri Xocó que ocupam áreas da TI tratadas como propriedade privada por posseiros. Vídeos e relatos dos próprios Kariri Xokó mostram um posseiro, e o que parece ser seu capanga, ameaçando um grupo de indígenas. Desde pelo menos 2020, os indígenas convivem com ameaças físicas dos posseiros que se recusam a deixar a TI.

A delegação Kariri Xocó presente no ATL, em Brasília, se reuniu nesta semana com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para denunciar as novas ameaças. O órgão indigenista alegou que não há recursos disponíveis neste momento para realizar a desintrusão dos invasores.

Como eles seguem ocupando a TI, localizada no município de Porto Real do Colégio, há um conflito inerente ao litígio pela posse e um outro ligado ao uso cotidiano da terra. Uma questão permanente é que os invasores liberam a criação de gado para pastar nas plantações das aldeias. Os Kariri Xocó denunciam que um posseiro chegou a vender a área que julgava ser sua a outro posseiro, que agora desfere as ameaças e pratica violências variadas.

No decorrer das duas últimas décadas, houve um aumento substancial de invasores na TI. Ocorreu um desenfreado loteamento do território por imóveis rurais que teriam se dividido em pequenas frações, o que aumentou significativamente o número de imóveis.

Conforme a Funai, há aproximadamente 200 ocupantes não indígenas na área homologada. No Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (RCID), publicado em 2001, constavam 100 ocupações do tipo. Uma outra dificuldade encontrada pela Funai para realizar a desintrusão, que envolve o levantamento fundiário para a identificação de benfeitorias de boa-fé ou má-fé, é a falta de corpo técnico para ir a campo.

•        Sem espaço, sem autodeterminação

O espaço da TI se encontra reduzido com a presença não indígena. O que tem levado dificuldades à autodeterminação dos Kariri Xocó. As aldeias possuem pouco espaço para plantar, criar animais e a parte do Rio São Francisco a que têm acesso está comprometida com empreendimentos de natureza diversificada e com a poluição das águas, minguando a atividade de pesca para a subsistência.

Cacique Reginaldo Kariri Xocó afirma que são 4 mil indígenas vivendo em apenas 600 hectares – a TI foi homologada com 5 mil hectares. “Por isso é essencial avançar com a demarcação completa, a retirada dos não indígenas”. Só na área da aldeia do cacique existem mais de 20 construções de não indígenas. Outras pessoas seguem construindo e “parecem não acreditar na demarcação e seguem invadindo o território”, disse.

Entre 2013 e 2018, técnicos da Funai estiveram na Terra Indígena para fazer o levantamento fundiário das ocupações. Foram barrados em muitas delas. O que levou o órgão indigenista à Justiça Federal para conseguir autorização de entrada. O pedido foi deferido após o término da pandemia, mas coincidiu com a defasagem acumulada de pessoal no órgão em todo o país.

Para os Kariri Xocó, o problema maior é que a ação de posseiros não cessou, somando-se aos que já estavam na TI. Ainda há compra e venda de áreas, novas construções e um ambiente de que o território não foi demarcado. De modo que uma das reivindicações do povo é que o Estado se faça mais presente na TI para desencorajar o comércio de terras que fazem parte do patrimônio público da União e de usufruto exclusivo dos Kariri Xocó.

Os indígenas solicitaram que a partir de um levantamento prévio do Cadastro Ambiental Rural (CAR) se chegue a essas áreas de invasão incidentes no território e em parceria com o Poder Público local se faça uma campanha alertando os riscos e consequências de tais ocupações irregulares e que devem se caracterizar como ocupações de má-fé, ou seja, aquelas sem direito a indenização.

•        Autoridades acompanham a situação

Ocorre que a situação está amplamente comunicada às autoridades competentes desde 2020, conforme o Ministério Público Federal (MPF) informou durante reunião, em setembro de 2023, com o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). O encontro foi solicitado pela Defensoria Pública da União (DPU) e teve ainda a participação da Funai.

Sobre as ameaças de morte e físicas contra os Kariri Xocó, tramita Notícia de Fato Criminal no 10º Ofício do MPF na capital Maceió referente aos episódios de ameaça de morte relatados ainda em 2023. O posseiro citado herdou a terra que julga ser sua e é um dos cinco autores que constam no polo ativo de uma ação de reintegração de posse que se refere à “Fazenda São Bento”.

Essa ação de reintegração de posse foi impetrada em 2017 e transitada em julgado a favor do posseiro (na iminência de execução). A DPU, em 2023, pediu habilitação nos autos para informar acerca da homologação da Terra Indígena e a consequente perda superveniente do objeto. A ação foi movida contra a União e a Funai. O MPF e a Procuradoria da Funai peticionaram na ação contrários à reintegração.

Outra ação movida pelo mesmo autointitulado proprietário da área pretende impugnar a demarcação da terra e teve sentença improcedente. Um recurso foi levado ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), que determinou a suspensão do feito para realização de uma perícia. A ação ainda está em curso.

 

Fonte: Por Anna Beatriz Anjos, da Agencia Pública/Cimi-NE

 

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