Movimento indígena com novo alvo: derrubar
decisão de Gilmar Mendes
O movimento indígena
elegeu um desafio no encerramento da 20ª edição do Acampamento Terra Livre
(ATL), a maior assembleia dos povos originários no Brasil: derrubar a mais
recente decisão de Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF),
sobre o marco temporal.
Em 22 de abril,
durante o primeiro dia do acampamento, Mendes suspendeu todas as ações sob sua
relatoria que tratam da lei que valida o marco temporal. Ela propõe que só
sejam demarcadas terras ocupadas pelos indígenas na data de promulgação da
Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. A lei, aprovada no Congresso
Nacional em 2023, foi patrocinada pela bancada ruralista.
Gilmar Mendes é
relator de três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) que pedem a
derrubada da lei do marco temporal. Uma delas foi proposta pela Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do ATL, junto a partidos
políticos. As lideranças esperavam que Mendes desse um parecer rejeitando o
marco, já que o próprio STF havia declarado, em setembro do ano passado, que a
tese é inconstitucional, num ato considerado como uma conquista histórica dos
indígenas.
Contudo, Mendes não só
manteve a vigência da lei, como determinou a criação de uma câmara de
conciliação para discutir a tese. Essa câmara será formada por entidades de
defesa dos direitos indígenas e do agronegócio, partidos políticos, poderes
Executivo e Legislativo, Procuradoria-Geral da República (PGR) e
Advocacia-Geral da União (AGU). Cada uma das partes tem 30 dias para apresentar
propostas para alcançar um consenso sobre o tema.
>>>> que isso importa?
• A ação do ministro Gilmar Mendes
contrariou decisão do próprio STF do ano passado e, segundo as lideranças
indígenas, fortalece a tese do marco temporal. O marco é o maior obstáculo à
demarcação de novas terras atualmente
Agora, segundo a Apib,
uma das prioridades do movimento nos próximos meses é trabalhar para tentar
reverter a medida tomada por Mendes.
Há dois caminhos para
isso, segundo Maurício Terena, coordenador jurídico da Apib. Um deles é
convencer outros ministros da Corte a rechaçarem a decisão monocrática de
Mendes. Ela foi encaminhada para apreciação dos demais via julgamento virtual.
A carta final do ATL cobra que os juízes “não se acovardem” e “sejam contrários
a essa decisão de morte”.
A segunda alternativa
depende do ministro Edson Fachin decidir pela inconstitucionalidade da lei em
uma ação que pede sua derrubada, da qual ele é relator.
• Indígenas avaliam que decisão de Gilmar
Mendes é retrocesso
“O ministro Gilmar
Mendes, acima de tudo, desprestigia o entendimento do colegiado do Supremo que
já decidiu pela inconstitucionalidade da tese do marco temporal”, destaca
Terena, da Apib. “Isso traz uma insegurança jurídica enorme para os povos
indígenas. A lei ainda está em vigência; os povos indígenas, no limbo jurídico;
e a violência nos territórios, aumentando.”
A Apib avaliou a
decisão de Mendes como um retrocesso que adiará ainda mais o já prolongado
debate em torno do marco temporal, encarado pelos indígenas como a maior ameaça
às demarcações. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, relatou em
entrevista à Agência Pública no começo do mês que a lei tem atrapalhado a
efetivação de novas demarcações pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas
(Funai).
Enquanto isso, o
presidente da bancada ruralista no Congresso, deputado federal Pedro Lupion
(PP-PR), classificou a decisão de Mendes como “uma vitória”. “Se a Funai a
partir de agora quiser demarcar, vai ter que cumprir a lei que nós aprovamos no
Congresso”, disse em vídeo postado em suas redes sociais.
O avanço no
reconhecimento dos territórios tradicionais pelo Estado é a pauta central do
movimento indígena e do Acampamento Terra Livre desde o seu surgimento, em
2003. Embora seja um direito garantido pela Constituição, a demanda segue longe
de ser plenamente atendida.
“No ano passado, em
setembro, quando o Supremo declarou a inconstitucionalidade da tese, não
achamos que não estaríamos aqui, no dia de hoje, novamente falando sobre esse
assunto”, afirmou Terena no fim do acampamento.
Em plenária na última
manhã do ATL, Sonia Guajajara lamentou que a relatoria das ADIs contra a lei do
marco temporal tenha ficado sob a relatoria de Mendes. “A decisão do marco
temporal infelizmente caiu na mão do ministro Gilmar Mendes, que é declaradamente
anti-indígena, embora, na hora do julgamento [em setembro], tenha votado contra
[a tese]”, afirmou a ministra a uma plateia de indígenas de todos as regiões do
país, na tenda principal do acampamento.
A Pública solicitou um
posicionamento de Mendes, mas não recebeu resposta até a publicação da
reportagem.
• Tensão com governo diminui após Lula
sinalizar avanço nas demarcações
Se por um lado os
indígenas veem a decisão de Gilmar Mendes como um obstáculo, a avaliação da
Apib sobre o governo federal é de que o diálogo deve prosseguir, com demandas
pelo avanço das demarcações e pelo fortalecimento do Ministério dos Povos
Indígenas e da Funai, comandados por lideranças indígenas.
O movimento pretende
manter sua independência em relação à gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Ajudamos a eleger esse governo e estamos com ele porque, em relação ao governo
anterior, é muito melhor o processo de diálogo e de participação, de retomada
das nossas pautas”, apontou Kleber Karipuna, coordenador executivo da
organização representando a Amazônia. “Mas seguimos com o tom de cobrança que o
movimento indígena sempre teve ao longo dessa caminhada de 524 anos de luta e
resistência e dos 20 anos do acampamento.”
A tensão entre os
indígenas e Lula diminuiu depois que cerca de 40 representantes do movimento
participaram de um encontro com o presidente no Palácio do Planalto, no dia 25
de abril. Neste ano, a Apib pediu para ser recebida pelo petista em vez de
convidá-lo para o ATL, como ocorreu em 2022 e 2023.
A mudança de postura
se deu após o governo recuar da homologação – a etapa final do processo de
demarcação, que depende da assinatura presidencial – de quatro terras indígenas
durante o encerramento da reunião do Conselho Nacional de Política Indigenista
(CNPI), em 18 de abril. Elas estão entre os 14 processos apontados como prontos
para conclusão pelo governo de transição ainda em 2022.
Minutos antes do
evento começar, Lula decidiu homologar apenas dois dos seis territórios, sob a
justificativa de que os governadores dos estados onde se localizam – Alagoas,
Paraíba e Santa Catarina – precisam de tempo para analisar que medidas tomar em
relação aos ocupantes não indígenas. O argumento foi criticado pelo movimento
indígena, já que, pela lei, a consulta aos governos estaduais não constitui
etapa do rito de demarcação. A preocupação é a de que se crie um novo entrave
ao processo de reconhecimento dos territórios.
Na reunião desta
semana, que durou aproximadamente duas horas e meia, o presidente ouviu falas
de várias das lideranças presentes e respondeu aos seus questionamentos,
enquanto cerca de oito mil indígenas e apoiadores se manifestavam em frente ao
palácio após terem marchado pelo Eixo Monumental. O presidente determinou a
criação de uma força-tarefa, constituída pelos Ministérios da Justiça e
Segurança Pública e dos Povos Indígenas, Secretaria-Geral da Presidência e AGU,
para resolver os obstáculos existentes às quatro homologações.
Em entrevista a
jornalistas no Planalto depois do encontro, o ministro da Secretaria-Geral da
Presidência, Márcio Macêdo, disse que há “problemas políticos” para a
finalização da demarcação das Terras Indígenas (TIs) Potiguara de Monte-Mor, na
Paraíba, e Xukuru Kariri, em Alagoas, e questões de “ordem jurídica” para a
homologação das TIs de Santa Catarina, Morro dos Cavalos e Toldo Imbu.
Dinamam Tuxá,
coordenador da Apib pela região Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo,
avaliou a força-tarefa como sinal de comprometimento de Lula com as
demarcações. Contudo, ele faz uma ressalva.
“Estamos nos propondo
a compor essa força-tarefa com os órgãos do governo, mas sem nos comprometer a
conversar com ninguém fora do que prevê o decreto 1.775 [que regulamento o
processo demarcatório]. Não vamos conversar com governador ou parlamentar para
destravar a demarcação”, assinalou. “O decreto é claro, tem um rito, e esse
rito tem que ser seguido.”
• Batalha continua no Congresso
Para além da batalha
em torno do marco temporal no STF, a Apib considera que a conjuntura atual de
ataque aos direitos indígenas é resultado, em boa parte, do Congresso Nacional.
Tramitam no
Legislativo quatro Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que buscam alterar
o artigo 231 da Constituição Federal, que trata sobre os povos indígenas. Todas
são patrocinadas pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a chamada
bancada ruralista, que busca incluir o marco temporal na Carta Magna e
transferir para o Legislativo a atribuição de novas demarcação e a ratificação
das já realizadas, entre outros pontos.
Para fazer frente à
força do agro na Câmara e Senado, a Apib pediu, na carta-manifesto lançada no
primeiro dia do ATL, que o governo Lula se empenhe mais em impedir o avanço
dessas projetos no Parlamento. O movimento analisa que o MPI frequentemente
atua de maneira isolada para frear a agenda anti-indígena e que, para que haja
chance disso ocorrer, é necessário que ministérios mais robustos, como a Casa
Civil e a Secretaria de Relações Institucionais, também entrem no jogo.
• Povo Kariri Xocó denuncia novas ameaças
em Terra Indígena homologada, mas tomada por posseiros
Em 28 de abril de
2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou, durante a 19ª edição do
Acampamento Terra Livre (ATL), seis terras indígenas, entre elas a TI Kariri
Xocó, em Alagoas, com população de 4 mil indígenas e portaria declaratória publicada
em 2006. Mesmo com parte da etapa final do procedimento administrativo
concluída, a permanência de invasores no território leva ameaças aos ocupantes
tradicionais.
Um ano depois, agora
durante a 20ª edição do ATL, ocorreram novas ameaças contra a vida dos Kariri
Xocó que ocupam áreas da TI tratadas como propriedade privada por posseiros.
Vídeos e relatos dos próprios Kariri Xokó mostram um posseiro, e o que parece ser
seu capanga, ameaçando um grupo de indígenas. Desde pelo menos 2020, os
indígenas convivem com ameaças físicas dos posseiros que se recusam a deixar a
TI.
A delegação Kariri
Xocó presente no ATL, em Brasília, se reuniu nesta semana com a Fundação
Nacional do Índio (Funai) para denunciar as novas ameaças. O órgão indigenista
alegou que não há recursos disponíveis neste momento para realizar a
desintrusão dos invasores.
Como eles seguem
ocupando a TI, localizada no município de Porto Real do Colégio, há um conflito
inerente ao litígio pela posse e um outro ligado ao uso cotidiano da terra. Uma
questão permanente é que os invasores liberam a criação de gado para pastar nas
plantações das aldeias. Os Kariri Xocó denunciam que um posseiro chegou a
vender a área que julgava ser sua a outro posseiro, que agora desfere as
ameaças e pratica violências variadas.
No decorrer das duas
últimas décadas, houve um aumento substancial de invasores na TI. Ocorreu um
desenfreado loteamento do território por imóveis rurais que teriam se dividido
em pequenas frações, o que aumentou significativamente o número de imóveis.
Conforme a Funai, há
aproximadamente 200 ocupantes não indígenas na área homologada. No Relatório
Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (RCID),
publicado em 2001, constavam 100 ocupações do tipo. Uma outra dificuldade
encontrada pela Funai para realizar a desintrusão, que envolve o levantamento
fundiário para a identificação de benfeitorias de boa-fé ou má-fé, é a falta de
corpo técnico para ir a campo.
• Sem espaço, sem autodeterminação
O espaço da TI se
encontra reduzido com a presença não indígena. O que tem levado dificuldades à
autodeterminação dos Kariri Xocó. As aldeias possuem pouco espaço para plantar,
criar animais e a parte do Rio São Francisco a que têm acesso está comprometida
com empreendimentos de natureza diversificada e com a poluição das águas,
minguando a atividade de pesca para a subsistência.
Cacique Reginaldo
Kariri Xocó afirma que são 4 mil indígenas vivendo em apenas 600 hectares – a
TI foi homologada com 5 mil hectares. “Por isso é essencial avançar com a
demarcação completa, a retirada dos não indígenas”. Só na área da aldeia do
cacique existem mais de 20 construções de não indígenas. Outras pessoas seguem
construindo e “parecem não acreditar na demarcação e seguem invadindo o
território”, disse.
Entre 2013 e 2018,
técnicos da Funai estiveram na Terra Indígena para fazer o levantamento
fundiário das ocupações. Foram barrados em muitas delas. O que levou o órgão
indigenista à Justiça Federal para conseguir autorização de entrada. O pedido
foi deferido após o término da pandemia, mas coincidiu com a defasagem
acumulada de pessoal no órgão em todo o país.
Para os Kariri Xocó, o
problema maior é que a ação de posseiros não cessou, somando-se aos que já
estavam na TI. Ainda há compra e venda de áreas, novas construções e um
ambiente de que o território não foi demarcado. De modo que uma das
reivindicações do povo é que o Estado se faça mais presente na TI para
desencorajar o comércio de terras que fazem parte do patrimônio público da
União e de usufruto exclusivo dos Kariri Xocó.
Os indígenas
solicitaram que a partir de um levantamento prévio do Cadastro Ambiental Rural
(CAR) se chegue a essas áreas de invasão incidentes no território e em parceria
com o Poder Público local se faça uma campanha alertando os riscos e
consequências de tais ocupações irregulares e que devem se caracterizar como
ocupações de má-fé, ou seja, aquelas sem direito a indenização.
• Autoridades acompanham a situação
Ocorre que a situação
está amplamente comunicada às autoridades competentes desde 2020, conforme o
Ministério Público Federal (MPF) informou durante reunião, em setembro de 2023,
com o Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas
do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). O encontro foi solicitado pela
Defensoria Pública da União (DPU) e teve ainda a participação da Funai.
Sobre as ameaças de
morte e físicas contra os Kariri Xocó, tramita Notícia de Fato Criminal no 10º
Ofício do MPF na capital Maceió referente aos episódios de ameaça de morte
relatados ainda em 2023. O posseiro citado herdou a terra que julga ser sua e é
um dos cinco autores que constam no polo ativo de uma ação de reintegração de
posse que se refere à “Fazenda São Bento”.
Essa ação de
reintegração de posse foi impetrada em 2017 e transitada em julgado a favor do
posseiro (na iminência de execução). A DPU, em 2023, pediu habilitação nos
autos para informar acerca da homologação da Terra Indígena e a consequente
perda superveniente do objeto. A ação foi movida contra a União e a Funai. O
MPF e a Procuradoria da Funai peticionaram na ação contrários à reintegração.
Outra ação movida pelo
mesmo autointitulado proprietário da área pretende impugnar a demarcação da
terra e teve sentença improcedente. Um recurso foi levado ao Tribunal Regional
Federal da 5ª Região (TRF-5), que determinou a suspensão do feito para realização
de uma perícia. A ação ainda está em curso.
Fonte: Por Anna
Beatriz Anjos, da Agencia Pública/Cimi-NE
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