O apelo indígena contra os combustíveis
fósseis e a inoportuna surdez do governo
“Enquanto o mundo
discute caminhos para viabilizar a transição energética e a redução urgente de
gases do efeito estufa, o avanço das atividades extrativas da indústria de
petróleo e gás no Brasil nos deixa em alerta. Certamente não será abrindo novas
frentes de exploração que iremos protagonizar os esforços mundiais de
enfrentamento da crise climática e promover a transição energética justa e
popular.”
Este é um trecho da
“Carta dos Povos Indígenas por uma Transição Energética Justa”. O manifesto foi
organizado pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
(COIAB) e a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste e Minas
Gerais (APOINME), e lançado após dois debates, realizados na quarta-feira
(24/4) no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, sobre os impactos da
extração de petróleo e gás nos Territórios Indígenas e as perspectivas dos
Povos Originários sobre a transição energética na Amazônia.
O apelo indígena é
claro: o governo brasileiro precisa ser proativo na eliminação dos combustíveis
fósseis, condição sine qua non para tentarmos frear os efeitos cada vez mais
frequentes e intensos das mudanças climáticas. Para isso, o país deve interromper
imediatamente a exploração de combustíveis fósseis, sobretudo na Amazônia. E,
simultaneamente, adotar estratégias que garantam uma transição energética justa
e inclusiva, que de fato não deixe ninguém para trás.
Contudo, nenhum
representante dos Povos Indígenas foi convidado para o seminário “Transição
energética justa, inclusiva e equilibrada: caminhos para o setor de óleo e gás
viabilizar a nova economia verde”, promovido no mesmo dia pelo Ministério de
Minas e Energia (MME) a alguns poucos quilômetros do local onde se realiza o
ATL. Na mesa, apenas gente do próprio MME, da Petrobras e da EPE. A escolha
tinha uma razão óbvia: apresentar argumentos supostamente “técnicos” para
justificar o aumento da exploração de combustíveis fósseis – inclusive na foz
do Amazonas e nao interior da floresta – como passo necessário para a
transição.
Nas últimas semanas, a
ala pró-petróleo do governo federal adicionou uma camada na sua narrativa em
defesa da exploração “até a última gota”: a “ameaça” de voltar aos tempos da
importação do combustível se não abrirmos novas frentes de exploração. Acontece
que, segundo dados da ANP – agência reguladora que também integra o grupo
defensor da energia suja –, as reservas brasileiras provadas de petróleo no ano
passado foram as maiores desde 2014. Estas garantem o atual nível de produção
por 13 anos, até 2037. Se consideradas as reservas prováveis, com menor grau de
certeza, essa autossuficiência chega a 18 anos – até 2042, portanto.
Claro que esse cálculo
não considera o provável aumento da eletrificação do transporte, principalmente
de carros e ônibus, que, obviamente, reduzirá a demanda por combustíveis
fósseis. Sem falar no avanço dos biocombustíveis, como etanol e biodiesel, que
também contribuirão para essa queda.
• Royalties não cobrem a conta dos eventos
climáticos extremos
Mas, no seminário,
coube à EPE adicionar um argumento alarmista – e fake – para defender o
indefensável aumento da exploração de combustíveis fósseis: as supostas
“perdas” de tributos e royalties que teríamos se não extrairmos “até a última
gota”. Pelos cálculos da estatal de planejamento, o país deixaria de ganhar [o
que, claro, é diferente de “perder”] R$ 3,7 trilhões em 23 anos, no período
entre 2032 e 2055, na forma de royalties e arrecadação de impostos.
Não sabemos qual preço
do petróleo e cotação do dólar a EPE utilizou para fazer tal projeção. Mas o
primeiro fator deve cair com o tempo, já que há uma tendência de queda
progressiva da demanda por combustíveis fósseis a partir de 2030, segundo as
projeções da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em Inglês). Sem
falar que, no Brasil, a tributação costuma mudar ao bel-prazer dos governantes
da ocasião. A própria ANP, vez ou outra, defende a redução da alíquota dos
royalties para “viabilizar a produção”.
Mas podemos fazer
contas bem simples para mostrar os equívocos da EPE:
1. O PIB anual brasileiro hoje é da ordem de
R$ 10 trilhões. Supondo um crescimento muito pífio, de 2% ao ano, o PIB do
período 2032-2055 somará cerca de R$ 360 trilhões. Ou seja, a tal perda
representaria pouco mais de 1% do PIB. É sério, mas nada alarmante.
2. No ano passado, a arrecadação de impostos
da produção de combustíveis fósseis e de royalties somou cerca de R$ 100
bilhões. Sem aumentar a produção, e mantidas as regras atuais de tributação,
seriam arrecadados R$ 2,2 trilhões entre 2032 e 2055. Ou seja, a suposta
“perda” de novas explorações seria de R$ 1,5 trilhão, ou 0,4% do PIB do
período.
3. Os R$ 100 bilhões arrecadados ano passado
correspondem à extração de 3 milhões de barris por dia. Assim, os R$ 1,5
trilhão “perdidos” correspondem à produção de outros 2 milhões de barris por
dia. Ou seja, a EPE supõe que seja possível duplicar a produção a partir de
2032 – daqui a 8 anos. Sem o conhecimento das reservas da margem equatorial,
miragem que se tornou o “eldorado” dos defensores dos combustíveis fósseis, tal
esperança nada mais é que um tremendo chute. E isto sem contar que é impossível
elevar a produção neste nível até 2032, já que o tempo que se leva desde o
início da atividade de exploração até o começo da produção é da ordem de 10
anos.
4. Por fim, o INESC estimou que o país
deixou de arrecadar R$ 80 bilhões na forma de subsídios ao setor. Se mantidos,
o país deixaria de arrecadar R$ 1,8 trilhão em subsídios no período usado nas
contas da EPE. Ou seja, a perda estimada pela EPE foi – talvez desonestamente –
superestimada.
Há, porém, outros
dados ignorados pela estatal de planejamento. Uma pesquisa feita pelo Potsdam
Institute for Climate Research Impact (PIK, da Alemanha) e publicada
recentemente, mostrou que, mesmo que o planeta zerasse hoje as emissões de
gases-estufa, a humanidade perderá renda equivalente a nada menos que US$ 38
trilhões anuais – isso mesmo, em dólares, e por ano, não em 23 anos – até 2049.
Vale lembrar que pela dependência da economia do país de um clima adequado à
produção agrícola, o Brasil é dos países com maior prejuízo econômico potencial
por conta da crise climática. Os tributos e os royalties do petróleo certamente
não cobrirão essa conta.
O ano de 2023 foi o
mais quente da história, e tudo leva a crer que 2024 o superará. Mas a EPE, ao
calcular “perdas” com a não exploração de combustíveis fósseis, esqueceu de
considerar os prejuízos de R$ 401,3 bilhões, entre janeiro de 2013 e fevereiro de
2023, decorrente de desastres climáticos, valor (este, sim) que pode ser
calculado como perda, de acordo com informação levantada pela Confederação
Nacional dos Municípios (CNM). E perda esta que não vai parar de subir, pelas
razões já expostas anteriormente.
• Se é necessário reduzir a demanda, por
que então aumentar a produção?
Ainda no seminário
pró-combustíveis fósseis, o secretário de petróleo e gás do MME, Pietro Mendes,
disse que o Brasil precisa buscar a redução da demanda por petróleo e seus
derivados, em vez de optar por reduzir a produção no processo de transição
energética. Brilhante, não?
De fato, Mendes está
certo em apontar a necessidade de se trabalhar pela redução da demanda. Por
isso se fala tanto na eletrificação dos transportes. As próprias montadoras
brasileiras anunciaram altos investimentos na produção de veículos elétricos e
híbridos flex, que, além de eletricidade, podem usar gasolina e etanol.
É o caso da Noruega,
que também costuma ser usada pelos defensores dos combustíveis fósseis no
Brasil como “exemplo” por ter criado um fundo com recursos do petróleo e gás
fóssil. No país nórdico, a demanda por veículos a combustão está despencando
rapidamente: cerca de 82% dos novos carros lá vendidos são elétricos.
Mas fica uma pergunta:
se estamos agindo para reduzir a demanda, e há de fato uma projeção de queda
desta nos próximos anos, há algum sentido econômico em se aumentar a produção
de combustíveis fósseis? A resposta parece óbvia. Mas o secretário ignorou e
preferiu repetir o mantra da “importação” para mais uma vez defender o
indefensável.
Nada como encerrar
esta análise com outro trecho da própria “Carta dos Povos Indígenas por uma
Transição Energética Justa” para resumir esse falso debate: “As atividades da
indústria fóssil acumulam violações gravíssimas de Direitos Humanos, com um
histórico de acidentes e impactos socioambientais e climáticos devastadores. O
avanço da exploração de petróleo e gás no país nos coloca na contramão dos
esforços globais de combate às mudanças climáticas. Se o Brasil quer liderar
pelo exemplo, precisa fazer a lição de casa.”
Como se diz nas redes
sociais, “fica a dica”. E não apenas para o Brasil, mas para todo o mundo: ou eliminamos
os combustíveis fósseis já, ou a conta a ser paga será cada vez mais alta. E
principalmente para os países do Sul Global, como o nosso.
• Estados da Amazônia negociam créditos de
carbono e se antecipam a Congresso e críticas do agro
Convidado pela
Associação Comercial de São Paulo a palestrar para um grupo de políticos
próximos ao MDB, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), contava para os
colegas, nesta segunda-feira (22), a nova forma que seu estado encontrou para
arrecadar bilhões de reais nos próximos anos: os mercados jurisdicionais de
carbono.
Nesse modelo, os
estados geram créditos de carbono a partir da variação positiva na taxa de
desmatamento em relação a anos anteriores considerando todo o território, inclusive áreas privadas. Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser
emitida devido à queda no
desmatamento.
"A redução de
ferramentas que acabam gerando uma concorrência federativa vai cada vez mais
necessitar que os estados possam ativar suas vocações que os diferenciam na
criação de novas economias", disse Barbalho ao responder uma pergunta
sobre trecho da Reforma Tributária que dificulta incentivos fiscais estaduais.
Ouviam o governador,
por exemplo, o ex-governador do Rio Grande do Sul Germano Rigotto, o ex-senador
Heráclito Fortes e os deputados federais Baleia Rossi (MDB-SP) e Newton Cardoso
Jr. (MDB-MG).
Hoje, esse modelo é
estruturado principalmente pela Coalizão Leaf, que reúne 25 grandes empresas,
como Amazon, Unilever e Nestlé, e quatro países desenvolvidos: Noruega, Reino
Unido, Estados Unidos e Coreia do Sul. Esse grupo negocia com os estados a compra
futura de créditos gerados até 2026.
Entre os estados
amazônicos, Pará e Acre estão na frente das discussões com a coalizão.
O Pará pretende
assinar o contrato de intenção de venda de um milhão de créditos no final deste
semestre prazo ambicioso,
segundo quem acompanha as discussões. Ao todo, Barbalho estima que até 2026 o estado vai gerar 153 milhões de créditos de carbono.
"O Pará está
vendendo a US$ 15 o que a Costa Rica vendeu a US$ 10. Isso porque o sistema
jurisdicional do Pará gera maior integridade do que o sistema jurisdicional
operado na Costa Rica", afirmou Barbalho na segunda. A Coalizão também
negocia com Gana, Equador, Quênia, Vietnã e Nepal.
Se os 153 milhões de
créditos forem vendidos por esse preço, o Pará poderá arrecadar quase US$ 2,3
bilhões (R$ 12 bi). A ideia do estado é que 40% desse valor vá para políticas
ambientais. Os outros 60% serão repartidos entre comunidades indígenas, quilombolas
e produtores rurais.
No final do ano
passado, o Acre assinou com a Emergent, braço coordenador da coalizão, um termo
que dá início às negociações da venda de 10 milhões de créditos gerados entre
2023 e 2026 para as empresas da coalizão. A Emergent atua como intermediadora
entre os estados e as multinacionais, e o governo do Acre também espera assinar
o contrato de venda até o final de junho.
As partes fixaram uma
linha de base que considera a média anual de desmatamento entre 2018 e 2022 (no
caso do Pará, é de 2017 a 2021). A partir dela, o estado fará a comparação da
variação do desmatamento a cada ano. Caso se constate queda do desflorestamento,
o governo estadual registra seus créditos em uma certificadora e conclui a
venda para a Emergent.
Exemplo: se em 2024, o
Acre constatar que emitiu 1 milhão toneladas a menos de carbono em relação à
média anual entre 2018 e 2022, ele conseguirá vender até 1 milhão de créditos
para Emergent naquele ano.
A venda de créditos
jurisdicionais, porém, não é exclusiva para a coalizão. O próprio Acre tentou
no ano passado vender créditos de carbono gerados entre 2005 e 2015 para uma
empresa americana, mas o negócio emperrou. Além disso, apesar de negociar a venda
de 10 milhões de créditos para as empresas da coalizão, o Acre estima que
produzirá entre 30 e 50 milhões de créditos até 2027 o restante poderá ser vendido para outras companhias.
Já o Tocantins, que
também tem seu mercado jurisdicional, vendeu no ano passado seus créditos para
a suíça Mercuria, que não faz parte da Coalizão Leaf.
No negócio com a
coalizão, os recursos só serão depositados na conta dos estados após geração
dos créditos e transferência deles para as empresas. Ou seja, por mais que os
estados anunciem a venda em junho, o dinheiro só deve cair, de forma
escalonada, no meio do ano que vem tempo que se leva, geralmente, para a certificação e registro dos créditos. Os estados negociam um adiantamento
de 10% dos recursos para poder viabilizar as políticas ambientais.
Mas muito pode
acontecer nesse período, inclusive a judicialização do tema. Isso porque o
Congresso debate desde o ano passado a viabilidade dos mercados jurisdicionais o tema foi inserido no projeto de lei que
regula o mercado de carbono, hoje parado no Senado.
Em Brasília, os
governadores precisarão enfrentar a influência do agronegócio, que teme que os
mercados jurisdicionais impeçam o desenvolvimento de projetos de créditos de
carbono em áreas privadas. Esse, aliás, foi um dos motivos que atrasaram a
aprovação do PL na Câmara, no final de 2023 o texto aprovado na Casa define que aqueles produtores que
quiserem desenvolver seus próprios projetos precisam avisar aos governos estaduais.
Segundo Nelson
Ananias, coordenador de sustentabilidade da CNA (Confederação da Agricultura e
Pecuária do Brasil), o agro vai pedir aos senadores para que tirem o mercado
jurisdicional do projeto. "Há dúvidas da falta de clareza que esses
mercados jurisdicionais apresentam e isso nos coloca contra esse
processo", diz.
Mas para quem defende
os mercados jurisdicionais, a possível retirada do tema do PL não afetará a
venda dos créditos dos estados. Isso porque, na visão deles, a falta de
regulamentação não inviabiliza a existência desse mercado. O próprio governo
federal, a favor da existência desse sistema, defende que o assunto seja
tratado em outro projeto.
"O mercado
jurisdicional nunca foi proibido. A tentativa de regular é para poder dar mais
segurança aos investidores", diz Leonardo Carvalho, presidente do
Instituto de Mudanças Climáticas do Acre, técnico que está à frente das
discussões pelo estado.
Mas Ananias, da CNA,
rebate: "Como não é um mercado regulado, [a insegurança jurídica] cabe à
negociação de quem compra e quem vende. Eles estão sujeitos a que isso não se
realize, até por questão de contestação, inclusive judicial."
Caso o mercado não vá
para frente, seja por aumento da taxa de desmatamento ou problemas legais, o
risco fica com todos os atores envolvidos.
"É um risco
assumido por todos: estado que se comprometeu a vender com a Emergent e
empresas que se comprometeram a comprar em detrimento de alocar para outros.
Então, existe um risco inerente, mas, obviamente, a gente também está
acompanhando os resultados, as políticas públicas, os compromissos
institucionais, para a gente ver se, de fato, a expectativa é de resultados
positivos", diz Juliana Santiago, vice-presidente-executiva da Emergent.
Fonte:
ClimaInfo/FolhaPress
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