Os
'microtrabalhos' exaustivos na internet que atraem mulheres com promessa de
renda sem sair de casa
Flávia
começou a trabalhar como camelô aos 20 anos e, até hoje, aos 32, nunca teve um
emprego formal.
Mãe
solo de três filhos — de 15, 13 e 8 anos —, viu a responsabilidade de sustentar
a casa sozinha se tornar ainda mais penosa com a crise econômica gerada pela
pandemia de covid-19. Foi nesse período que encontrou uma promessa tentadora:
trabalhar de sua casa, em São Gonçalo (RJ), fazendo uma série de pequenas
tarefas em sequência em plataformas digitais em troca de uma remuneração por
cada uma delas.
É o que
se chama de microtrabalho e pode envolver desde a participação em pesquisas de
mercado e testes de produto a treinar sistemas de inteligência artificial ou
simplesmente acessar sites, dar curtidas em postagens e assistir a vídeos e
outros conteúdos para gerar audiência para eles.
Flávia,
por exemplo, trabalha cerca de 14 horas diárias se alternando entre o
aplicativo PiniOn — onde realiza avaliações de plataformas de transporte — e o
Kwai, onde assiste a vídeos repetidamente em troca de alguns centavos por cada
visualização.
"Eu
começo umas 9 horas, tem dia que começo umas 10 horas. Se não bater a meta,
fico até 23h. Aí, tem que esperar virar o dia para poder começar de novo",
explica Flávia, que pediu para ter nome real preservado nesta reportagem por
temer retaliações das plataformas.
Depois
de um mês de trabalho e 420 horas diante da tela do computador ou do celular,
ela diz que consegue juntar em média pouco menos R$ 700, que ela usa para
sustentar cinco pessoas — ela, os filhos e o irmão, que tem deficiência.
Na
tentativa de aumentar os ganhos, Flávia conta que, nas últimas semanas, passou
a trabalhar para uma terceira plataforma: a varejista digital Shopee.
"Eu
tenho que compartilhar os links dos produtos. Se alguém comprar, eu ganho 1%,
3%. Mas já é uma plataforma em que eu não consigo fazer dinheiro fácil, pois
tenho que torcer para o povo comprar", diz.
Mas o
trabalho não para por aí: ela cuida sozinha de todas as tarefas domésticas.
"Não
tem horário [certo para trabalhar]. Como as atividades de casa sou eu que faço,
eu faço uma atividade, entro um pouquinho [nas plataformas]. Faço outra
atividade, paro e entro mais um pouquinho", explica.
Ela diz
que, entre vassouras e cliques, seus dias são longos e exaustivos, o que já tem
reflexos na sua saúde.
"Os
meus olhos ficam ardendo. Sinto o ombro queimar", diz ela, acrescentando
que tenta driblar o cansaço como pode, com estratégias improvisadas.
"Deito
na cama, boto os vídeos para tocar e deixo rolando [automaticamente], já dá
para descansar um pouco."
O Kwai
disse em nota à BBC News Brasil que, apesar de usuários criarem conteúdo para
ganhar dinheiro, "não incentiva nem promove a visualização contínua de
vídeos como forma de monetização".
Também
"repudia qualquer forma de exploração ou comportamento que coloque em
risco a integridade física, emocional ou psicológica dos usuários" e
"segue aprimorando suas políticas" junto com especialistas e órgãos
reguladores.
O
PiniOn afirmou os usuários participam voluntariamente em "missões",
como pesquisas de opinião e coleta de dados, em troca de recompensas em
dinheiro como uma forma de renda extra e não sua fonte principal, fixa ou
significativa.
A
empresa também disse em nota que "nunca recebeu qualquer crítica
relacionada a jornadas excessivas e insegurança financeira".
A
Shopee disse que seu programa de afiliados "é uma iniciativa
gratuita" que permite aos consumidores indicarem produtos
"voluntariamente" em troca de uma comissão pelas vendas e que oferece
aos participantes apoio para ampliar seu alcance e ganhos.
• No Brasil, o microtrabalho é feminino
Mulheres
como Flávia são a maioria dos microtrabalhadores no Brasil.
Essa é
uma característica particular desse mercado por aqui, segundo o estudo Fabricar
os dados: o trabalho por trás da Inteligência Artificial, do Laboratório de
Trabalho, Plataformização e Saúde (LATRAPS), vinculado à Universidade Estadual
de Minas Gerais (UEMG), que tem como um dos autores o pesquisador e psicólogo
Matheus Viana Braz.
Enquanto
as mulheres respondem por 63% da mão de obra por trás das microtarefas, em
outros países, o quadro praticamente se inverte, e os homens são 70% dos
trabalhadores das plataformas.
Braz
explica que não há um cálculo exato do número de microtrabalhadores no Brasil,
porque a maioria das plataformas não divulga essa informação.
Mas, em
sua pesquisa, uma delas, a Microworkers, forneceu esses dados. A plataforma
tinha 300 mil perfis brasileiros registrados em 2023.
O
estudo de Braz aponta que, em linhas gerais, a informalidade que atinge 40% da
população brasileira cria o campo fértil para o microtrabalho, porque a
incerteza sobre o dinheiro que entra todo mês faz com quem as pessoas busquem
qualquer atividade que ofereça o mínimo de renda.
Mas, no
caso das mulheres, existem elementos adicionais que tornam esse tipo de
trabalho especialmente atrativo.
O
primeiro aspecto, segundo a pesquisa sobre microtrabalho no Brasil, é a
dificuldade de conseguir um emprego: 73,7% estão desempregadas e 38,7% dependem
exclusivamente das plataformas.
Destas
mulheres, 40% dizem que, embora tenham se formado na faculdade, não encontram
uma oportunidade onde moram.
O
estudo também mostra que 62,6% são mães ou responsáveis pelos cuidados de
outras pessoas da família, como deficientes, idosos ou parentes mais novos.
Não à
toa, "o maior benefício apontado por elas é a suposta conciliação entre o
trabalho digital e o trabalho do cuidado", diz Matheus Viana Braz, que
hoje é professor do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de
Maringá (UEM).
"Essas
mulheres são as principais responsáveis pelos cuidados domésticos e
familiares."
Novas
configurações de trabalho também representam novos impactos à saúde física e
psicológica, ressalta o pesquisador.
"Embora
faltem pesquisas sobre os efeitos a longo prazo, sabemos que são trabalhos
penosos, repetitivos, que produzem fadiga", diz Braz.
"As
queixas mais comuns são de isolamento e falta de sentido. É uma condição
extremamente inadequada de trabalho. 'Eu trabalho na cama, amamentando, na
festa de família. Onde der, eu trabalho'."
Essa
dinâmica também gera ansiedade. "Você tem que ficar disponível 24 horas
por dia nos grupos, perde o direito à desconexão para buscar boas
tarefas", explica o pesquisador.
Há um
padrão distinto na forma como homens e mulheres se relacionam com as
plataformas digitais de microtrabalho, de acordo com Braz.
Enquanto
eles tendem a acessar menos vezes, mas permanecem conectados por longos
períodos ininterruptos, elas entram mais vezes ao longo do dia, em sessões
curtas e fragmentadas.
"As
mulheres usam qualquer tempo livre, entre uma atividade de cuidado e outra,
para realizar um microtrabalho. O pouco tempo que essa mulher tem livre dentro
de casa agora passa a ser usado a serviço de uma possível rentabilidade",
diz Braz
• Alternativa ao desemprego
A
promessa de flexibilidade e renda extra foi o que atraiu Juliana. Há seis meses
desempregada, após anos trabalhando como operadora de caixa em supermercados de
Camaragibe (PE), no Grande Recife, ela viu as contas não pararem de chegar.
Foi em
um grupo do aplicativo de mensagens Telegram que surgiu o que parecia ser uma
luz no fim do túnel: uma oportunidade de ganhar dinheiro usando apenas o
celular e sem sair de casa.
A
missão parecia simples: curtir postagens de produtos vendidos pelo Magazine
Luiza em seu site, fazer capturas de tela para comprovar que havia feito isso e
enviá-las a um contato específico. Ganharia entre R$ 5 e R$ 10 por cada
curtida.
Há
pouco mais de um mês, o celular, que antes era usado por ela para se comunicar
e se divertir, virou um instrumento de trabalho no qual Juliana mexe quase o
dia inteiro. Das 9h às 21h, ela cumpre uma jornada silenciosa de cliques.
Em sua
casa, o salário mínimo do marido não cobre as despesas da família: só de
aluguel, pagam R$ 350. Ainda há água, luz, gás — contas que, somadas,
ultrapassam um salário mínimo.
Com a
renda das microtarefas, Juliana tenta aliviar o peso financeiro sobre o
companheiro.
"[O
dinheiro] está dando para eu ajudar nas continhas da casa e comprar as minhas
coisinhas de limpeza, meus shampoos", explica Juliana, que teve sua
verdadeira identidade preservada a seu pedido. "Espero que dê certo, que
tenha o meu salário."
O
Magazine Luiza disse em nota que "não faz nenhum tipo de recrutamento de
pessoas para atuarem em qualquer plataforma ou serviço por meio de convites
enviados via Telegram, WhatsApp ou outro aplicativo de comunicação", e que
essas ações "não têm aval ou vínculo formal com o Magalu ou qualquer marca
do grupo".
A
empresa afirmou que o caso de Juliana é exemplo "uma de diversas táticas
usadas por golpistas que utilizam, indevidamente e sem qualquer autorização, o
nome da companhia e de outras empresas para ações criminosas", informou
que toma medidas para coibir isso e pede que os consumidores denunciem
abordagens suspeitas.
O
problema na visão de quem estuda o mercado de trabalho é que as funções
exercidas por Flávia e Juliana não têm caráter didático ou informativo, mas
repetitivo. Elas não sairão dessas experiências com novos conhecimentos ou
habilidades que contribuirão para outros mercados de trabalho.
Outra
questão apontada por especialistas é que a maior participação das mulheres
nestas funções não se repete em cargos bem remunerados e de prestígio nas
grandes empresas de tecnologia, as big techs.
Em
muitas destas companhias e na formulação de políticas públicas digitais,
mulheres sequer são levadas em consideração, aponta Luiza Corrêa de Magalhães
Dutra, pesquisadora e líder de projeto do Instituto de Referência em Internet e
Sociedade e doutoranda da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS).
"Em
muitos países da América Latina e Caribe, o marcador de gênero ainda não é
central nas políticas públicas para o ambiente digital. Nem nas big techs. As
mulheres não são incluídas para pensar essas políticas", explica Dutra.
"Como
consequência, enfrentam mais barreiras, mais violência e menos oportunidades
nos espaços digitais."
Essa
ausência se reflete diretamente no tipo de trabalho ofertado a elas, ressalta a
pesquisadora. Em vez de corrigir desigualdades históricas, o mercado digital
reproduz — e, muitas vezes, aprofunda — hierarquias já estabelecidas.
O
espaço online, visto muitas vezes como moderno e inovador, pode acabar
reencenando papéis antigos: as mulheres ocupam as funções mais precarizadas,
repetitivas e mal remuneradas.
"Há
uma reprodução de violências e de locais de uma hierarquia, quando a gente está
falando de uma pirâmide de gênero, de locais de ocupação, de trabalho, de
renda", observa Dutra.
"Isso
é reproduzido e utilizado pelas grandes empresas no online para captar
mulheres, por exemplo, para aceitar subempregos."
Para
muitas mulheres, ingressar no microtrabalho digital não representa então uma
emancipação ou um progresso — mas a perpetuação de situações de precariedade e
violência.
A
promessa de flexibilidade e autonomia, diz Dutra, esconde uma realidade de
jornadas invisíveis, insegurança e desgaste físico e emocional.
"Quando
sou mulher e vou trabalhar no ambiente digital, já carrego uma carga de
violências que são sofridas nesse ambiente em que estou tentando
trabalhar", afirma a pesquisadora.
• Faltam leis trabalhistas
O
microtrabalho no Brasil ainda não é contemplado pelas leis trabalhistas
brasileiras — ou de outros países, ressalta Matheus Viana Braz.
"Não
houve nenhum país que regularizou o microtrabalho. Existem várias iniciativas
em curso, que tudo indica que essa regulamentação vai começar pela
Europa", diz Braz.
Mas o
pesquisador aponta que as empresas deste mercado têm sido pressionadas a
oferecerem melhores condições de trabalho.
A
última edição do relatório do projeto Fairwork, que estuda a economia de
mercado em torno de novas plataformas digitais, analisou a atuação dessas
empresas em cem países para verificar, por exemplo, se o pagamento, as
condições de trabalho e o gerenciamento destas tarefas são feitos de forma
justa.
"Com
isso, eles conseguem fazer com que as empresas implementem melhorias, mas são
coisas pontuais. Regulamentação, em si, ainda não houve."
Segundo
o pesquisador Renan Kalil, professor de direito no Instituto de Ensino e
Pesquisa (Insper) e procurador do trabalho de São Paulo, a regulamentação das
relações de trabalho no campo das microtarefas ainda estão na fase de estudo.
Em
2025, o Ministério Público do Trabalho (MPT) criou o Crowdworking, um grupo de
trabalho ligado à Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de
Trabalho (Conafret), para debater sobre o microtrabalho no Brasil.
Kalil
aponta que um dos desafios para a Justiça atuar nesta área é que muitas dessas
plataformas não têm sede física ou representação judicial no Brasil.
Isso é
um obstáculo, por exemplo, para que a empresa seja notificada para responder um
processo na Justiça ou para atender requisições feitas pelo Ministério Público
do Trabalho em investigações.
O
procurador diz que os microtrabalhadores estão em uma situação de
vulnerabilidade maior, por exemplo, do que a dos entregadores de comida, graças
à sua "completa invisibilidade".
"Você
sai na rua e vê um entregador trabalhando, mas, na microtarefa, o trabalhador é
invisível, ele simplesmente executa e entrega o produto e ninguém vê. Isso o
deixa ainda mais vulnerável", observa Kalil.
Um dos
poucos exemplos de ação trabalhista envolvendo o microtrabalho se deu em maio
de 2022, quando o MPT de São Paulo instaurou uma ação civil pública contra a
Ixia Gerenciamento de Negócios.
Essa
empresa contratava trabalhadores para realizar acompanhamento de atendimento
virtual realizado por robôs para a operadora de telecomunicações Sky. Os
profissionais cumpriam escalas de plantões corrigindo possíveis erros cometidos
pela inteligência artificial e eram pagos como se realizassem microtarefas.
Em
depoimento, um trabalhador afirmou receber R$ 0,11 centavos por minuto,
remuneração que o levava a trabalhar o máximo de tempo possível para atingir a
meta.
A BBC
News Brasil teve acesso ao processo em primeira instância e à revisão do caso
feita pelo Tribunal do Trabalho da 2ª Região com um resumo da sentença que
condenou a empresa na segunda instância.
Segundo
a ação civil, para ingressar no trabalho, os profissionais tinham que se tornar
microempreendedores individuais (MEIs). O contrato firmado entre a Ixia e os
trabalhadores dava a ideia de que eles estariam "empreendendo" com a
realização deste trabalho.
A Ixia
reforçou nos autos do processo que "assim como os demais trabalhadores, o
trabalhador que depôs é um empreendedor, tanto que constitui pessoa jurídica, e
trabalhava sob sua conta e risco, e que não existia pessoalidade na prestação
de serviços ou subordinação".
Mas a
Justiça disse que se tratava de uma forma de "trabalho terceirizado
online" em que "o cumprimento das atividades em tempo hábil e sem
erros, era a condição para evitar a quebra do contrato".
A Ixia
foi condenada em segunda instância a reconhecer vínculo empregatício, pagar uma
indenização de R$ 1,3 milhão por danos morais coletivos. Também foi proibida de
contratar novos profissionais na modalidade de microtarefas — terá de fazer
isso conforme as regras da CLT.
A
empresa recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho, que ainda não julgou o caso.
A Ixia foi procurada pela reportagem para comentar sobre o assunto, mas não
respondeu.
"Por
trás de toda a tecnologia criada — algoritmo, inteligência artificial — tem um
ser humano. Um ser humano que criou a tecnologia e que de alguma forma está
auxiliando a tecnologia a ser utilizada", pondera Luiza Dutra, da PUC-RS.
Essa
criação, no entanto, não é neutra, ressalta a pesquisadora: "Somos criados
dentro de um ambiente extremamente racista e machista".
"Ao
mesmo tempo que eu coloco mulheres em locais que deveriam ser extremamente
importantes para a luta contra a violência de gênero, eu pago muito pouco para
que elas ocupem esses espaços", denuncia Dutra.
A
revolução tecnológica avança. Mas, por trás da promessa de um futuro digital,
persistem abusos e a desigualdade — atualizados para a era dos algoritmos.
Fonte:
BBC News Brasil

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