quarta-feira, 25 de junho de 2025

OAB e Uber: Parceria contra os direitos?

A atriz Denise Fraga aparece, em vídeo, entrevistando algumas pessoas. Pergunta se gostam de “contemplar”. Uma resposta: — contemplar? o que é contemplar? Convida a sentar no banco e olhar em volta, observar as pessoas, o entorno, detalhes que a pessoa nem havia notado antes em sua passagem diária apressada; e olhar para as pessoas que passam… Enfim, um chamado para a realidade, usar os sentidos e ligar as conexões reais, afastar-se da telinha na palma das mãos. (“A vida convida” websérie da Vivo, em parceria com a atriz Denise Fraga). Contemplar quer dizer olhar, admirar, analisar, meditar, imaginar… Olhar, ver e observar.

Nosso ritmo de vida nos afasta das sensações naturais tão necessárias, independente de classe social e de formação escolar. Os sentidos podem ser desenvolvidos pelo hábito. Ampliar a referência ao entorno, localização no território, conhecer as ruas mais próximas do local de trabalho. Automatização das pessoas, restritas ao ponto de partida-chegada diária, casa-trabalho-casa, aplicativo do ônibus, do waze ou do uber, olhos no celular dentro dos veículos. Existe ainda a janela, ou a paisagem cansou? Esta muda com as pessoas, que lhe dão vida… Teria o trajeto perdido sua importância em relação com os pontos partida-chegada? O próprio caminho pode conter alternativa de escolhas.

O foco no celular e dependência dos aplicativos afastaria o uso dos sentidos, observar, se localizar e escolher direções? Uma perda de celular revela essa dependência, a sensação de falta de apoio, referência e contato com amigos e família. Já não existem telefones fixo, nem os antigos orelhões; temos poucos números de telefone na memória e sem o celular nem temos como achar e acessar. Nossa vida diária é impactada pela tecnologia.

Tive possibilidades de assimilar várias mudanças tecnológicas sem abandonar alguns hábitos anteriores. Imagino, porém, o grau de dependência tecnológica no presente e no futuro sobre a pessoa que nasceu, foi e vai crescendo neste contexto sem ter criado outras referências de observação anteriores.

Acresce, ainda, que somos vigiados por meio da tecnologia, cada pagamento com cartão, acesso à internet vai parar na tal “nuvem tecnológica” que tudo registra e nos devolve informações não solicitadas e novos contatos. Quanto mais buscamos tecnologia de informação, que embora nos tragam benefícios, iremos depender cada vez mais desse sistema de geração, utilização, desenvolvimento e de usurpação de nossos dados, cujo uso indevido não conseguimos evitar. Esses dados passaram a ser commodities monetizados para publicidade de produtos, no mínimo, ou para outras utilidades ainda piores, que não cabem neste texto.

Nestes dias, recebi por email minha habitual newsletter com uma notícia, que estranhei, “reunião entre CAASP, OAB SP e Uber fortalece parceria voltada à mobilidade da advocacia”, de 29/5, tendo relação direta com a classe dos advogados no Estado de São Paulo.

A questão da mobilidade está prevista na Política Nacional de Mobilidade Urbana, cujas diretrizes foram instituídas pela lei federal 12.587/2012, ao dispor: “transporte público individual é o serviço remunerado de transporte de passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a realização de viagens individualizadas” (art. 4º, inciso VIII).  Este serviço é exercido pelos táxis, como alternativa ao transporte público coletivo. A lei federal 12.468/2011 havia regulamentado a profissão de taxista, atribuindo a esses profissionais a utilização de veículo automotor para o referido transporte.

Já são reconhecidas as precárias condições de trabalho dos motoristas do aplicativo Uber, objeto da notícia mencionada, gerando uma denominação pejorativa à precarização similar de trabalho – uberização. Numa definição mais neutra:

“Uberização é um neologismo que descreve contratos independentes de trabalhadores que utilizam uma plataforma online como intermédio para realizar atividades econômicas baseadas na prestação serviços. Assenta-se no processo de transformação do trabalho, pelo qual os trabalhadores usam bens privados — como um carro — para oferecer serviços por meio de uma plataforma digital. Também chamada de economia de compartilhamento, essa modalidade de trabalho é pautada pelo trabalho por demanda” (Wikipedia).

Reflito sobre essa parceria entre a OAB – autarquia, cuja finalidade contempla as garantias constitucionais e trabalhistas — e o Uber — detentora do aplicativo, uma corporação internacional de enorme poder econômico (tendo como sócios, inclusive, a Arábia Saudita) — que explora a força de trabalho de seus motoristas, sem oferecer qualquer segurança socioeconômica. A somatória do percentual de 30% bruto do movimento gerado por esses motoristas — que arcam com todos os riscos e custos de seu trabalho – é imediatamente retida pelo aplicativo Uber, para ser remetida para a sede da corporação no exterior, em São Francisco, Califórnia, EUA. E essa quantidade imensa de dados pessoais, que são armazenados nesse aplicativo Uber pelos clientes que baixam o aplicativo de transporte individual podem ser monetizados também por meio de outras formas de uso sem qualquer consulta aos usuários?

Na cidade de São Paulo, o prefeito Fernando Haddad autorizou, por decreto, o funcionamento do aplicativo Uber para intermediar transporte de passageiros em maio de 2016, após faltar quórum no embate entre os representantes favoráveis ao Uber e aqueles favoráveis aos profissionais taxistas, na Câmara Municipal de São Paulo, para a aprovação, em segunda votação, do projeto de lei que visava, precisamente, proibir o aplicativo Uber no transporte de passageiros. Esse decreto gerou contínua insatisfação para os taxistas, que viram nessa concorrência por aplicativo queda na demanda por seus serviços.

A cidade de São Paulo oferece condições para esta forma de exploração do trabalho, considerando as imperfeições na política de mobilidade urbana e pela grande quantidade de postos de trabalho que foram fechados no decorrer de sucessivas crises de geração de emprego, formando um contingente de reserva de mão de obra, grande parte da qual buscou solução de renda em serviços controlados por aplicativos diversos, desde motoristas, entregadores por motos ou por bicicleta, estes últimos potencializados durante a pandemia, quando as pessoas que podiam ficar em confinamento faziam seus pedidos de entrega.

Associei à notícia anterior uma outra “crise faz advogados virarem motoristas de Uber e vendedores”, de 12/04/2022, que informa: “dois terços da classe atuam de forma autônoma, sem vínculo formal com escritórios ou empresas, de acordo com a pesquisa Datafolha”. Já na segunda metade dos anos 1990, eu observara a prática generalizada de terceirização do trabalho dos advogados, numa desvinculação da relação de emprego nos escritórios de advocacia, como em outras atividades econômicas.

Esta notícia de 2022 foi baseada em pesquisa realizada pela Datafolha em 2021, ainda no período da pandemia, embora enfatizando que o “empobrecimento que já era realidade na área se agravou durante o período”. Portanto, o nível de redução da relação de emprego que eu observara cerca de 25 anos atrás foi sendo potencializado até chegar a abranger 2/3 da classe da advocacia no Estado de São Paulo em 2021. Estes dados apontam que a renda individual mensal média era de R$ 5.855, sendo que 44% dos profissionais estão na faixa até R$ 2.500. A matéria relata que o “fechamento de fóruns e tribunais impediu o trabalho de correspondência jurídica, pelo qual o advogado é contratado para fazer audiência, diligências, despachos e obter cópia de processos”. Percebe-se o efeito positivo da tecnologia de digitalização no sistema do Judiciário, para regularizar o controle dos processos e de seu andamento, mas também dificulta a atuação de certa camada dos profissionais do direito, inclusive daqueles mais antigos e menos atualizados com os processos digitalizados, mesmo com algum apoio tecnológico da Ordem. A notícia traz ainda que, em 2020, a CAASP (Caixa de Assistência dos Advogados de São Paulo) pagou mais de 33 mil parcelas do benefício de 3 parcelas de 100 reais a cerca de 15 mil advogados de baixa renda, no contexto de quase 355 mil inscritos no estado. Em acréscimo, registro em 2020 de 1.508 cursos de Direito no país, segundo dados do Censo da Educação Superior (Censo da Educação Superior do Inep-MEC). Um quadro bastante desanimador para uma profissão que antes era chamada de “profissão liberal”.

Poderia comentar uma terceira notícia que se refere à parceria com a rede de hotéis Intercity, em vários países, propícia para viagens ao exterior. Esta parceria indica o grau de desigualdades que existe na advocacia no estado de São Paulo.

Algumas perguntas cabem sobre a parceria entre a OAB, CAASP e a Uber. Seria este um caminho eficiente e adequado para melhorar as condições de trabalho dos profissionais advogados, enquanto se deveria considerar a precariedade do próprio trabalho dos motoristas do aplicativo Uber? Os possíveis benefícios imediatos para os advogados iriam onerar quem, os motoristas do Uber, já bastante sacrificados, ou o Uber arcaria com esse ônus? Neste último caso, serviria ao aplicativo ganhar apoio da OAB/SP em eventual demanda sobre melhores condições de trabalho aos motoristas do aplicativo? Por outro lado, importa refletir no transporte mediante uso de aplicativo como forma de diminuir a pressão social contra o inadequado atendimento do transporte público municipal e intermunicipal. A OAB poderia considerar de forma abrangente as políticas públicas de mobilidade urbana, pelo fato de ser uma autarquia pública com dever político-social.

Apontar soluções individuais para questões coletivas nunca chega a ser solução efetiva. A própria desigualdade de oportunidades na profissão da advocacia deveria ser objeto de melhores soluções pela OAB e não por métodos paliativos, enquanto essas questões encontram paralelo com outras desigualdades, como na forma da mobilidade urbana. A busca de melhorar essa mobilidade com transporte via aplicativo Uber apenas estratifica os problemas existentes sem solucioná-los. A condição dos motoristas submetidos a um trabalho precarizado (longas horas de trabalho com remuneração inadequada, com ônus de gasolina, desgaste, aluguel de carro, riscos de acidentes) em confronto com a receita fixa recolhida pela corporação (longos tentáculos em vários países do mundo) soma-se ao rol de situações de exploração social no contexto do transporte público e de empregos.

Estimular o ato de observar, raciocinar e gerar senso crítico, esquecer um pouco da telinha do computador. A contemplação e a observação se interligam com o senso crítico. Uma demora no trânsito; olhar em volta; registrar imagens na memória ou em foto e compartilhar por meio da tecnologia. Podem ser bonitas ou feias, mas são reais e podem promover o despertar da crítica, para contribuir para algum benefício coletivo. Saber dosar a tecnologia com medidas que ultrapassem o imediatismo das técnicas sempre em evolução, mas que devem ter seus resultados distribuídos, ao invés de concentrar suas vantagens em poucos. As soluções individuais e imediatas são pouco duradouras e não trarão a recompensa maior de soluções coletivas e de visão de conjunto necessária para o equilíbrio das condições de vida social.

¨      Doméstica desde os 12 foi ‘escravizada por três gerações de família’ no Amazonas, diz fiscalização

UMA TRABALHADORA DOMÉSTICA de 34 anos foi resgatada de condições análogas às de escravo em Ponta Negra, bairro nobre de Manaus (AM), por uma força-tarefa conduzida por quatro órgãos federais, na última semana de maio. De acordo com documentos da operação, obtidos pela Repórter Brasil, ela teria sido submetida desde os 12 a “situação de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições degradantes”, por três gerações de uma mesma família.

O caso veio à tona após uma denúncia encaminhada a auditores fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). Depois de ler reportagens sobre episódios semelhantes, o responsável pelo alerta identificou sinais: a mulher estava sem documentos, não tinha sandálias e pedia itens básicos de higiene aos vizinhos.

“A trabalhadora começou a prestação dos serviços para a matriarca da família inquirida quando ainda era criança. A empregada era vulnerável e foi levada para trabalhar e morar nessa residência com esperança de ter uma vida melhor e poder estudar. Desde então, passou a residir no local e a fazer serviços na casa”, diz o relatório da força-tarefa, de autoria do MPT (Ministério Público do Trabalho). 

“Apesar da exploração sofrida, a família repetia que [a trabalhadora] era como se fosse da família”, prossegue o documento sobre a operação, que também contou com servidores do MTE, da Polícia Federal e da Defensoria Pública da União.

Quando foi resgatada pelas autoridades, a trabalhadora encontrava-se na casa do neto da matriarca, onde não só realizaria as tarefas domésticas, mas também atuaria em uma fábrica de brownies, segundo o relatório. Ainda de acordo com o documento, a trabalhadora não teria carteira assinada e nem salário fixo, e seria submetida a violência psicológica. “Certa vez disseram que ela não merecia ganhar nada porque já tinha comida e casa para morar”, contou uma testemunha ouvida pelo MPT.

Parte inferior do formulário

Em ofício encaminhado ao governo estadual do Amazonas no início de junho, quatro auditores fiscais do MTE solicitam “abrigamento”, “alimentação” e “acompanhamento psicossocial” para a trabalhadora. “Entendemos que há riscos associados à permanência na residência onde a empregada doméstica foi encontrada”, justificam. Após o resgate, ela restabeleceu contato com a família biológica e manifestou interesse em retomar os estudos.

Também no começo de junho, o Ministério Público do Trabalho firmou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com os empregadores Thiago Trindade de Assis e sua mãe, Maria Leda Ferreira Trindade. Por meio do acordo, eles se comprometeram a assinar a carteira de trabalho e a quitar as verbas rescisórias referentes ao período entre fevereiro de 2020 e junho de 2025, além de pagar uma indenização por danos morais à trabalhadora. 

Em nota à Repórter Brasil, o advogado dos empregadores afirma que seus clientes, “de forma espontânea e colaborativa”, assinaram o acordo com o MPT, “o que demonstra seu compromisso com a regularização das questões apontadas e respeito às normas vigentes”.

Ainda segundo o posicionamento, “cabe destacar que a assinatura do TAC não configura reconhecimento de culpa ou confissão de qualquer prática ilícita, mas sim uma medida de caráter preventivo e de cooperação com os órgãos competentes”.

<><> Entenda o caso

De acordo com o relatório da força-tarefa, a trabalhadora nasceu no interior do Pará. Aos 12 anos, teria passado a morar na casa da avó de Thiago, com a expectativa de que pudesse ampliar sua formação e melhorar de vida. 

“A fraude e o engano ficam evidentes em algumas condutas da família [dos empregadores]. Quando não foi dado o direito de estudar, mantendo [a trabalhadora] apenas com ensino fundamental incompleto, enquanto todos os demais membros da família puderam estudar, constituir família, relações e constituir patrimônio”, afirma o documento do MPT. 

Ainda de acordo com os relatos colhidos pelo órgão, a trabalhadora teria sido levada a acreditar que havia sido abandonada. Segundo o relatório, ela “necessitava de autorização dos donos da casa para sair, e quando o fazia restringia-se a locais próximos”. Não costumava visitar seus familiares biológicos, não tinha amigos ou qualquer rede de apoio fora da casa dos empregadores”, diz o texto.

Ela teria permanecido na casa da avó de Thiago por cerca de 20 anos. Com o falecimento da patroa, teria passado a viver na residência da filha e do neto da empregadora, no bairro da Ponta Negra. Lá, faria tarefas domésticas e também atuaria nos negócios de Thiago: primeiro uma pizzaria e depois uma fábrica de brownies. 

Nas palavras de uma testemunha ouvida pelo MPT, a trabalhadora tinha de “limpar fezes dos 3 cachorros da casa antes de iniciar os trabalhos com brownie, varrer as escadas e descer para ajudar na produção”. Segundo o depoimento, ela era muito cobrada — “oprimiam muito a mente dela com gritos e grosserias”.

Ainda segundo o relatório, os pagamentos eram esporádicos – variavam de R$ 100 a R$ 400, quando ocorriam. Não havia registro em carteira, nem para ela, nem para os demais funcionários da empresa, que operava em um terreno ao lado da residência.

<><> Trabalho escravo doméstico no Brasil

Casos como o resgate ocorrido em Manaus não são isolados: o trabalho escravo doméstico é uma realidade no país, marcada por histórias que, muitas vezes, começam na infância e se estendem por décadas. 

Apesar de resgates de trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravos acontecerem desde a década de 1990, o foco das autoridades sobre o ambiente doméstico é recente. Segundo informações sistematizadas pela Repórter Brasil, com base em dados do Ministério do Trabalho e Emprego, desde 2017 foram resgatadas 125 pessoas submetidas a trabalho escravo doméstico. A maior parte das vítimas são mulheres negras, com baixa escolaridade.

A informalidade e a dificuldade de fiscalização em residências privadas tornam ainda mais difícil a identificação de irregularidades. Muitas dessas mulheres são impedidas de estudar, criar vínculos sociais ou buscar outra forma de sustento, permanecendo dependentes dos empregadores.

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ou pelo Disque 100, um canal de denúncias de violações de direitos humanos.

 

Fonte: Por Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima, em Outras Palavras/Repórter Brasil

 

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