OAB
e Uber: Parceria contra os direitos?
A atriz
Denise Fraga aparece, em vídeo, entrevistando algumas pessoas. Pergunta se
gostam de “contemplar”. Uma resposta: — contemplar? o que é contemplar? Convida
a sentar no banco e olhar em volta, observar as pessoas, o entorno, detalhes
que a pessoa nem havia notado antes em sua passagem diária apressada; e olhar
para as pessoas que passam… Enfim, um chamado para a realidade, usar os
sentidos e ligar as conexões reais, afastar-se da telinha na palma das mãos.
(“A vida convida” websérie da Vivo, em parceria com a atriz Denise Fraga).
Contemplar quer dizer olhar, admirar, analisar, meditar, imaginar… Olhar, ver e
observar.
Nosso
ritmo de vida nos afasta das sensações naturais tão necessárias, independente
de classe social e de formação escolar. Os sentidos podem ser desenvolvidos
pelo hábito. Ampliar a referência ao entorno, localização no território,
conhecer as ruas mais próximas do local de trabalho. Automatização das pessoas,
restritas ao ponto de partida-chegada diária, casa-trabalho-casa, aplicativo do
ônibus, do waze ou do uber, olhos no celular dentro dos veículos. Existe ainda
a janela, ou a paisagem cansou? Esta muda com as pessoas, que lhe dão vida…
Teria o trajeto perdido sua importância em relação com os pontos
partida-chegada? O próprio caminho pode conter alternativa de escolhas.
O foco
no celular e dependência dos aplicativos afastaria o uso dos sentidos,
observar, se localizar e escolher direções? Uma perda de celular revela essa
dependência, a sensação de falta de apoio, referência e contato com amigos e
família. Já não existem telefones fixo, nem os antigos orelhões; temos poucos
números de telefone na memória e sem o celular nem temos como achar e acessar.
Nossa vida diária é impactada pela tecnologia.
Tive
possibilidades de assimilar várias mudanças tecnológicas sem abandonar alguns
hábitos anteriores. Imagino, porém, o grau de dependência tecnológica no
presente e no futuro sobre a pessoa que nasceu, foi e vai crescendo neste
contexto sem ter criado outras referências de observação anteriores.
Acresce,
ainda, que somos vigiados por meio da tecnologia, cada pagamento com cartão,
acesso à internet vai parar na tal “nuvem tecnológica” que tudo registra e nos
devolve informações não solicitadas e novos contatos. Quanto mais buscamos
tecnologia de informação, que embora nos tragam benefícios, iremos depender
cada vez mais desse sistema de geração, utilização, desenvolvimento e de
usurpação de nossos dados, cujo uso indevido não conseguimos evitar. Esses
dados passaram a ser commodities monetizados para publicidade de produtos, no
mínimo, ou para outras utilidades ainda piores, que não cabem neste texto.
Nestes
dias, recebi por email minha habitual newsletter com uma notícia, que
estranhei, “reunião entre CAASP, OAB SP e Uber fortalece parceria voltada à
mobilidade da advocacia”, de 29/5, tendo relação direta com a classe dos
advogados no Estado de São Paulo.
A
questão da mobilidade está prevista na Política Nacional de Mobilidade Urbana,
cujas diretrizes foram instituídas pela lei federal 12.587/2012, ao dispor:
“transporte público individual é o serviço remunerado de transporte de
passageiros aberto ao público, por intermédio de veículos de aluguel, para a
realização de viagens individualizadas” (art. 4º, inciso VIII). Este serviço é exercido pelos táxis, como
alternativa ao transporte público coletivo. A lei federal 12.468/2011 havia
regulamentado a profissão de taxista, atribuindo a esses profissionais a
utilização de veículo automotor para o referido transporte.
Já são
reconhecidas as precárias condições de trabalho dos motoristas do aplicativo
Uber, objeto da notícia mencionada, gerando uma denominação pejorativa à
precarização similar de trabalho – uberização. Numa definição mais neutra:
“Uberização
é um neologismo que descreve contratos independentes de trabalhadores que
utilizam uma plataforma online como intermédio para realizar atividades
econômicas baseadas na prestação serviços. Assenta-se no processo de
transformação do trabalho, pelo qual os trabalhadores usam bens privados — como
um carro — para oferecer serviços por meio de uma plataforma digital. Também
chamada de economia de compartilhamento, essa modalidade de trabalho é pautada
pelo trabalho por demanda” (Wikipedia).
Reflito
sobre essa parceria entre a OAB – autarquia, cuja finalidade contempla as
garantias constitucionais e trabalhistas — e o Uber — detentora do aplicativo,
uma corporação internacional de enorme poder econômico (tendo como sócios,
inclusive, a Arábia Saudita) — que explora a força de trabalho de seus
motoristas, sem oferecer qualquer segurança socioeconômica. A somatória do
percentual de 30% bruto do movimento gerado por esses motoristas — que arcam
com todos os riscos e custos de seu trabalho – é imediatamente retida pelo
aplicativo Uber, para ser remetida para a sede da corporação no exterior, em
São Francisco, Califórnia, EUA. E essa quantidade imensa de dados pessoais, que
são armazenados nesse aplicativo Uber pelos clientes que baixam o aplicativo de
transporte individual podem ser monetizados também por meio de outras formas de
uso sem qualquer consulta aos usuários?
Na
cidade de São Paulo, o prefeito Fernando Haddad autorizou, por decreto, o
funcionamento do aplicativo Uber para intermediar transporte de passageiros em
maio de 2016, após faltar quórum no embate entre os representantes favoráveis
ao Uber e aqueles favoráveis aos profissionais taxistas, na Câmara Municipal de
São Paulo, para a aprovação, em segunda votação, do projeto de lei que visava,
precisamente, proibir o aplicativo Uber no transporte de passageiros. Esse
decreto gerou contínua insatisfação para os taxistas, que viram nessa
concorrência por aplicativo queda na demanda por seus serviços.
A
cidade de São Paulo oferece condições para esta forma de exploração do
trabalho, considerando as imperfeições na política de mobilidade urbana e pela
grande quantidade de postos de trabalho que foram fechados no decorrer de
sucessivas crises de geração de emprego, formando um contingente de reserva de
mão de obra, grande parte da qual buscou solução de renda em serviços
controlados por aplicativos diversos, desde motoristas, entregadores por motos
ou por bicicleta, estes últimos potencializados durante a pandemia, quando as
pessoas que podiam ficar em confinamento faziam seus pedidos de entrega.
Associei
à notícia anterior uma outra “crise faz advogados virarem motoristas de Uber e
vendedores”, de 12/04/2022, que informa: “dois terços da classe atuam de forma
autônoma, sem vínculo formal com escritórios ou empresas, de acordo com a
pesquisa Datafolha”. Já na segunda metade dos anos 1990, eu observara a prática
generalizada de terceirização do trabalho dos advogados, numa desvinculação da
relação de emprego nos escritórios de advocacia, como em outras atividades
econômicas.
Esta
notícia de 2022 foi baseada em pesquisa realizada pela Datafolha em 2021, ainda
no período da pandemia, embora enfatizando que o “empobrecimento que já era
realidade na área se agravou durante o período”. Portanto, o nível de redução
da relação de emprego que eu observara cerca de 25 anos atrás foi sendo
potencializado até chegar a abranger 2/3 da classe da advocacia no Estado de
São Paulo em 2021. Estes dados apontam que a renda individual mensal média era
de R$ 5.855, sendo que 44% dos profissionais estão na faixa até R$ 2.500. A
matéria relata que o “fechamento de fóruns e tribunais impediu o trabalho de
correspondência jurídica, pelo qual o advogado é contratado para fazer
audiência, diligências, despachos e obter cópia de processos”. Percebe-se o
efeito positivo da tecnologia de digitalização no sistema do Judiciário, para
regularizar o controle dos processos e de seu andamento, mas também dificulta a
atuação de certa camada dos profissionais do direito, inclusive daqueles mais
antigos e menos atualizados com os processos digitalizados, mesmo com algum
apoio tecnológico da Ordem. A notícia traz ainda que, em 2020, a CAASP (Caixa
de Assistência dos Advogados de São Paulo) pagou mais de 33 mil parcelas do
benefício de 3 parcelas de 100 reais a cerca de 15 mil advogados de baixa
renda, no contexto de quase 355 mil inscritos no estado. Em acréscimo, registro
em 2020 de 1.508 cursos de Direito no país, segundo dados do Censo da Educação
Superior (Censo da Educação Superior do Inep-MEC). Um quadro bastante desanimador
para uma profissão que antes era chamada de “profissão liberal”.
Poderia
comentar uma terceira notícia que se refere à parceria com a rede de hotéis
Intercity, em vários países, propícia para viagens ao exterior. Esta parceria
indica o grau de desigualdades que existe na advocacia no estado de São Paulo.
Algumas
perguntas cabem sobre a parceria entre a OAB, CAASP e a Uber. Seria este um
caminho eficiente e adequado para melhorar as condições de trabalho dos
profissionais advogados, enquanto se deveria considerar a precariedade do
próprio trabalho dos motoristas do aplicativo Uber? Os possíveis benefícios
imediatos para os advogados iriam onerar quem, os motoristas do Uber, já
bastante sacrificados, ou o Uber arcaria com esse ônus? Neste último caso,
serviria ao aplicativo ganhar apoio da OAB/SP em eventual demanda sobre
melhores condições de trabalho aos motoristas do aplicativo? Por outro lado,
importa refletir no transporte mediante uso de aplicativo como forma de
diminuir a pressão social contra o inadequado atendimento do transporte público
municipal e intermunicipal. A OAB poderia considerar de forma abrangente as
políticas públicas de mobilidade urbana, pelo fato de ser uma autarquia pública
com dever político-social.
Apontar
soluções individuais para questões coletivas nunca chega a ser solução efetiva.
A própria desigualdade de oportunidades na profissão da advocacia deveria ser
objeto de melhores soluções pela OAB e não por métodos paliativos, enquanto
essas questões encontram paralelo com outras desigualdades, como na forma da
mobilidade urbana. A busca de melhorar essa mobilidade com transporte via
aplicativo Uber apenas estratifica os problemas existentes sem solucioná-los. A
condição dos motoristas submetidos a um trabalho precarizado (longas horas de
trabalho com remuneração inadequada, com ônus de gasolina, desgaste, aluguel de
carro, riscos de acidentes) em confronto com a receita fixa recolhida pela
corporação (longos tentáculos em vários países do mundo) soma-se ao rol de
situações de exploração social no contexto do transporte público e de empregos.
Estimular
o ato de observar, raciocinar e gerar senso crítico, esquecer um pouco da
telinha do computador. A contemplação e a observação se interligam com o senso
crítico. Uma demora no trânsito; olhar em volta; registrar imagens na memória
ou em foto e compartilhar por meio da tecnologia. Podem ser bonitas ou feias,
mas são reais e podem promover o despertar da crítica, para contribuir para
algum benefício coletivo. Saber dosar a tecnologia com medidas que ultrapassem
o imediatismo das técnicas sempre em evolução, mas que devem ter seus
resultados distribuídos, ao invés de concentrar suas vantagens em poucos. As
soluções individuais e imediatas são pouco duradouras e não trarão a recompensa
maior de soluções coletivas e de visão de conjunto necessária para o equilíbrio
das condições de vida social.
¨ Doméstica desde os 12
foi ‘escravizada por três gerações de família’ no Amazonas, diz fiscalização
UMA
TRABALHADORA DOMÉSTICA de 34 anos foi resgatada de condições análogas às
de escravo em Ponta Negra, bairro nobre de Manaus (AM), por uma força-tarefa
conduzida por quatro órgãos federais, na última semana de maio. De acordo com
documentos da operação, obtidos pela Repórter Brasil, ela teria sido
submetida desde os 12 a “situação de trabalho forçado, jornada exaustiva e
condições degradantes”, por três gerações de uma mesma família.
O caso
veio à tona após uma denúncia encaminhada a auditores fiscais do MTE
(Ministério do Trabalho e Emprego). Depois de ler reportagens sobre episódios
semelhantes, o responsável pelo alerta identificou sinais: a mulher estava sem
documentos, não tinha sandálias e pedia itens básicos de higiene aos vizinhos.
“A
trabalhadora começou a prestação dos serviços para a matriarca da família
inquirida quando ainda era criança. A empregada era vulnerável e foi levada
para trabalhar e morar nessa residência com esperança de ter uma vida melhor e
poder estudar. Desde então, passou a residir no local e a fazer serviços na
casa”, diz o relatório da força-tarefa, de autoria do MPT (Ministério Público
do Trabalho).
“Apesar
da exploração sofrida, a família repetia que [a trabalhadora] era como se fosse
da família”, prossegue o documento sobre a operação, que também contou com
servidores do MTE, da Polícia Federal e da Defensoria Pública da União.
Quando
foi resgatada pelas autoridades, a trabalhadora encontrava-se na casa do neto
da matriarca, onde não só realizaria as tarefas domésticas, mas também atuaria
em uma fábrica de brownies, segundo o relatório. Ainda de acordo com o
documento, a trabalhadora não teria carteira assinada e nem salário fixo, e
seria submetida a violência psicológica. “Certa vez disseram que ela não
merecia ganhar nada porque já tinha comida e casa para morar”, contou uma
testemunha ouvida pelo MPT.
Em
ofício encaminhado ao governo estadual do Amazonas no início de junho, quatro
auditores fiscais do MTE solicitam “abrigamento”, “alimentação” e
“acompanhamento psicossocial” para a trabalhadora. “Entendemos que há riscos
associados à permanência na residência onde a empregada doméstica foi
encontrada”, justificam. Após o resgate, ela restabeleceu contato com a família
biológica e manifestou interesse em retomar os estudos.
Também
no começo de junho, o Ministério Público do Trabalho firmou um TAC (Termo de
Ajustamento de Conduta) com os empregadores Thiago Trindade de Assis e sua mãe,
Maria Leda Ferreira Trindade. Por meio do acordo, eles se comprometeram a
assinar a carteira de trabalho e a quitar as verbas rescisórias referentes ao
período entre fevereiro de 2020 e junho de 2025, além de pagar uma indenização
por danos morais à trabalhadora.
Em nota
à Repórter Brasil, o advogado dos empregadores afirma que seus clientes,
“de forma espontânea e colaborativa”, assinaram o acordo com o MPT, “o que
demonstra seu compromisso com a regularização das questões apontadas e respeito
às normas vigentes”.
Ainda
segundo o posicionamento, “cabe destacar que a assinatura do TAC não configura
reconhecimento de culpa ou confissão de qualquer prática ilícita, mas sim uma
medida de caráter preventivo e de cooperação com os órgãos competentes”.
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Entenda o caso
De
acordo com o relatório da força-tarefa, a trabalhadora nasceu no interior do
Pará. Aos 12 anos, teria passado a morar na casa da avó de Thiago, com a
expectativa de que pudesse ampliar sua formação e melhorar de vida.
“A
fraude e o engano ficam evidentes em algumas condutas da família [dos
empregadores]. Quando não foi dado o direito de estudar, mantendo [a
trabalhadora] apenas com ensino fundamental incompleto, enquanto todos os
demais membros da família puderam estudar, constituir família, relações e
constituir patrimônio”, afirma o documento do MPT.
Ainda
de acordo com os relatos colhidos pelo órgão, a trabalhadora teria sido levada
a acreditar que havia sido abandonada. Segundo o relatório, ela “necessitava de
autorização dos donos da casa para sair, e quando o fazia restringia-se a
locais próximos”. Não costumava visitar seus familiares biológicos, não tinha
amigos ou qualquer rede de apoio fora da casa dos empregadores”, diz o texto.
Ela
teria permanecido na casa da avó de Thiago por cerca de 20 anos. Com o
falecimento da patroa, teria passado a viver na residência da filha e do neto
da empregadora, no bairro da Ponta Negra. Lá, faria tarefas domésticas e também
atuaria nos negócios de Thiago: primeiro uma pizzaria e depois uma fábrica de
brownies.
Nas
palavras de uma testemunha ouvida pelo MPT, a trabalhadora tinha de “limpar
fezes dos 3 cachorros da casa antes de iniciar os trabalhos com brownie, varrer
as escadas e descer para ajudar na produção”. Segundo o depoimento, ela era
muito cobrada — “oprimiam muito a mente dela com gritos e grosserias”.
Ainda
segundo o relatório, os pagamentos eram esporádicos – variavam de R$ 100 a R$
400, quando ocorriam. Não havia registro em carteira, nem para ela, nem para os
demais funcionários da empresa, que operava em um terreno ao lado da
residência.
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Trabalho escravo doméstico no Brasil
Casos
como o resgate ocorrido em Manaus não são isolados: o trabalho escravo doméstico é uma realidade
no país, marcada por histórias que, muitas vezes, começam na infância e se
estendem por décadas.
Apesar
de resgates de trabalhadores submetidos a condições análogas às de escravos
acontecerem desde a década de 1990, o foco das autoridades sobre o ambiente
doméstico é recente. Segundo informações sistematizadas pela Repórter
Brasil, com base em dados do Ministério do Trabalho e Emprego, desde 2017
foram resgatadas 125 pessoas submetidas a trabalho escravo doméstico. A maior
parte das vítimas são mulheres negras, com baixa escolaridade.
A
informalidade e a dificuldade de fiscalização em residências privadas tornam
ainda mais difícil a identificação de irregularidades. Muitas dessas mulheres
são impedidas de estudar, criar vínculos sociais ou buscar outra forma de
sustento, permanecendo dependentes dos empregadores.
Denúncias
de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção
do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho
(OIT), ou pelo Disque 100, um canal de denúncias de violações de direitos
humanos.
Fonte:
Por Marie Madeleine Hutyra de Paula Lima, em Outras Palavras/Repórter Brasil

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