O
“Manifesto Comunista” e a crítica do mundo que se quer imutável
"Hoje,
diante de um mundo em que a ideologia neoliberal proclamou o fim da história;
em que a repetição da catástrofe se disfarça de estabilidade; em que a
precarização do trabalho é vendida como liberdade empreendedora, reler o
Manifesto Comunista é um ato de insubordinação intelectual."
Poucos
textos da tradição socialista provocaram tanta inquietação política e
intelectual quanto o Manifesto Comunista, publicado por Marx
e Engels em 1848. Seu impacto atravessou dois séculos de história, suas frases
se converteram em palavra de ordem ou anátema, sua forma literária alimentou
tanto o panfleto quanto a teoria crítica. Mas o que permanece vivo no Manifesto não
é um conjunto doutrinário de regras nem um programa fixo de ação. O que
pulsa em suas linhas é uma concepção radical da história. E é por isso que
ainda nos interpela.
Karl
Korsch, em sua leitura densa e revolucionária de Marx, nomeará esse fundamento
como o “princípio da especificidade histórica”, presente, segundo ele, em
toda a obra de Marx, mesmo que nunca enunciado nesses termos. Esse princípio,
longe de ser apenas uma chave interpretativa, é um gesto de ruptura: ele afirma
que todas as categorias sociais — trabalho, propriedade, valor, liberdade,
família, cultura, Estado — são formas historicamente determinadas e, por isso,
passíveis de transformação. Essa afirmação não é puramente descritiva, ela é
também normativamente revolucionária. Explicitar a historicidade é
dissolver a naturalização, e dissolver a naturalização é abrir caminho para a
superação.
A
contribuição de Korsch, nesse ponto, é dupla. Primeiramente, dá nome e forma
teórica a esse princípio que estrutura o materialismo histórico. Em segundo
lugar, demonstra que não se trata de um recurso metodológico entre outros, mas
constitui o próprio núcleo da crítica marxista. Em Leading Principles
of Marxism (1937) e em seu livro Karl Marx (1938),
Korsch argumenta que a crítica marxiana consiste em reconduzir todas as
categorias à sua base social e histórica. Ao contrário dos economistas
políticos clássicos, que projetam as formas burguesas como expressões
universais da racionalidade humana, Marx recusa a tentação do eterno. Assim,
por exemplo, quando Ricardo aplica seu conceito burguês de renda a todas as
épocas e países, Marx o censura. O erro, diz Korsch, está em tomar como
natural o que é, na verdade, histórico. É exatamente isso que está em jogo
no Manifesto Comunista.
O Manifesto se
inscreve nessa lógica desde sua frase inaugural — “A história de todas as
sociedades que existiram até hoje é a história das lutas de classes”. Ao
afirmar isso, Marx e Engels não apenas organizam um roteiro para compreender os
conflitos históricos; eles abrem um campo de intervenção. A história é luta. E
as formas sociais, longe de expressarem valores absolutos, são produtos
transitórios dessa luta. A burguesia, por sua vez, aparece no Manifesto como
uma classe que se fez universal justamente por apresentar seus próprios
interesses como interesses gerais. Através do Estado, do direito, da moral, da
economia, da filosofia e da ciência, ela transforma suas necessidades de classe
em leis naturais da sociedade. O papel do Manifesto é
desmascarar essa operação. E o modo como o faz é colocando todas essas
categorias sob a luz da história.
Por
isso, o texto responde uma a uma todas as objeções burguesas ao projeto
comunista — e todas essas respostas seguem a mesma lógica: historicização
radical. Quando os comunistas são acusados de querer abolir a propriedade,
Marx e Engels não negam a acusação, mas explicam: não se trata da propriedade
em abstrato, e sim da forma burguesa de propriedade. Essa
forma é inseparável da acumulação do capital e da expropriação dos
trabalhadores; e como toda forma histórica, ela tem origem, desenvolvimento e
limites. Sua abolição não é a negação de um direito natural, mas o resultado
necessário da própria dinâmica histórica do capital.
“A
abolição das relações de propriedades que até hoje existiram não é uma
característica peculiar e exclusiva do comunismo. Todas as relações de
propriedade têm passado por modificações constantes em consequências das
contínuas transformações das condições históricas. O que caracteriza o
comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abolição da
propriedade burguesa. […] Nesse sentido, os comunistas podem resumir sua teoria
numa única expressão: supressão da propriedade privada” — Marx e Engels no Manifesto Comunista, p. 52.
A mesma
operação é feita com a noção de liberdade. No interior da sociedade
burguesa, liberdade é a liberdade de comércio, a liberdade de vender e comprar
— inclusive a própria força de trabalho. Trata-se, portanto, de
uma liberdade formal, esvaziada de conteúdo, moldada pelas exigências da
circulação mercantil. O que o Manifesto propõe não é suprimir
a liberdade, mas romper com sua forma historicamente determinada. A
verdadeira liberdade, dirá Marx em outros textos, só pode existir onde houver o
fim da dominação de classe. No Manifesto, essa ideia já aparece com
clareza, ao evidenciar que a “liberdade” celebrada pelos liberais é, para o
proletariado, a liberdade de morrer de fome.
“Por
liberdade, nas atuais relações burguesas de produção, compreende-se a liberdade
de comércio, a liberdade de comprar e vender. Mas, se o tráfico desaparece,
desaparecerá também a liberdade de traficar[…]. A partir do momento em que o
trabalho não possa mais ser convertido em capital, em dinheiro, em renda da
terra, isto é, a partir do momento em que a propriedade individual não possa
mais se converter em propriedade burguesa, declarais que o indivíduo está
suprimido” — Marx e Engels no Manifesto Comunista, p. 53.
Essas
duas categorias — propriedade e liberdade — já bastariam para revelar o
princípio da especificidade histórica em funcionamento. Marx e Engels, contudo,
vão além. Eles enfrentam, no Manifesto, um verdadeiro desfile de
categorias que a burguesia quer fazer parecerem eternas, quando são apenas
reflexos da sua dominação histórica. A cultura, por exemplo. Para os
comunistas, segundo o texto, o desaparecimento da cultura de classe não é o desaparecimento
da cultura em si. O que o burguês chama de cultura é, para a maioria da
população, mero adestramento, formação técnica, disciplina operária. É a
cultura sob a égide do capital. A crítica, mais uma vez, não mira a cultura
como valor humano, mas a forma específica que ela assume numa sociedade de
classes.
“Assim
como o desaparecimento da propriedade de classe equivale, para o burguês, ao
desaparecimento de toda a produção, o desaparecimento da cultura de classe
significa, para ele, o desaparecimento de toda a cultura. A cultura, cuja perda
o burguês deplora, é para a imensa maioria dos homens apenas um adestramento
que os transforma em máquina” — Marx e Engels no Manifesto Comunista, p. 54.
A
família é outra dessas formas. A acusação burguesa de que os comunistas
querem destruir a família é respondida com uma pergunta: de que família estamos
falando? A família burguesa, fundada na herança, na monogamia patriarcal,
no acúmulo privado, é uma forma social específica, e sua existência depende de
uma divisão sexual do trabalho que relega às mulheres e aos filhos funções de
reprodução e subordinação. O proletariado, por sua vez, já vive sob
formas de dissolução familiar impostas pelas condições materiais: trabalho
infantil, separação compulsória etc. A crítica do Manifesto se
dirige, portanto, à família como forma histórica da dominação burguesa. Sua
superação virá não por um decreto ideológico, mas pelo desaparecimento de sua
base material.
“Sobre
que fundamento repousa a família atual, a família burguesa? Sobre o capital,
sobre o ganho individual. A família, na sua plenitude, só existe para a
burguesia, mas encontra seu complemento na ausência forçada da família entre os
proletários e na prostituição burguesa. A família burguesa desvanece-se
naturalmente com o desvanecer de seu complemento, e ambos desaparecem com o
desaparecimento do capital” — Marx e Engels no Manifesto Comunista, p. 55.
O mesmo
vale para a pátria e a nação. Quando Marx e Engels afirmam “os operários
não têm pátria”, não se trata aqui de um internacionalismo abstrato ou de uma
recusa romântica da identidade nacional. A pátria, como as demais formas
analisadas, é uma construção histórica vinculada ao projeto da
burguesia. É a unidade territorial que permite a exploração organizada, a
extração de mais-valor, a repressão dos conflitos internos e a legitimação da
guerra. No Manifesto, o internacionalismo comunista é a
expressão da universalidade concreta da classe operária, que, nada tendo a
perder, nada tem a defender da ordem existente — nem mesmo a nação.
“Os
operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não possuem. […] À
medida que for suprimida a exploração do homem pelo homem será suprimida a
exploração de uma nação por outra. Quando os antagonismos de classes, no
interior das nações, tiveram desaparecido, desaparecerá a hostilidade entre as
próprias nações” — Marx e Engels no Manifesto Comunista, p. 56.
Ao
colocar todas essas categorias1 sob a lupa da história, o Manifesto não
apenas demole os pilares da ideologia burguesa. Ele inaugura uma maneira
específica de pensar a política: não como administração do existente, mas como
transformação do que existe com base na compreensão de sua transitoriedade. O
princípio da especificidade histórica se converte, então,
em princípio da práxis. Compreender que tudo é histórico é reconhecer que
tudo pode mudar. E que essa mudança depende da ação dos sujeitos históricos
que, como o proletariado, emergem da própria contradição do sistema.
Se esse
princípio está claramente expresso nas análises do Manifesto, ele
também aparece de forma decisiva no modo como Marx concebe o próprio comunismo.
O que os comunistas propõem, segundo o texto, não é uma nova ordem eterna, uma
sociedade ideal fixa. O comunismo, diz Marx, é o movimento real que
suprime o estado atual das coisas. Ele não é um estado a ser instaurado,
mas um processo histórico em curso, fundado nas condições concretas do
capitalismo. É nesse sentido que Marx e Engels falam, mais adiante, em “livre
associação dos produtores” ou “autogoverno dos produtores”, e não em “governo
proletário”. A classe trabalhadora, ao abolir o capital, abole também a si
mesma como classe. E dissolve, com isso, as formas históricas da
dominação.
Este
ponto é crucial: a crítica do Manifesto não repousa sobre um
ideal estático de justiça ou igualdade abstrata, mas sobre a análise concreta
das condições que tornam possível a sua negação histórica. O comunismo não
é utopia, é crítica prática. E essa crítica só pode se realizar se for
guiada por uma concepção não-dogmática da história — uma concepção que
compreende as formas sociais como transitórias, que reconhece que a própria
realidade que se quer transformar é produto de lutas anteriores. Daí a
importância, como mostrou Korsch, de compreender que o marxismo não é uma
ciência no sentido burguês, nem uma filosofia da história no sentido idealista.
Ele é uma teoria crítica enraizada no movimento real, histórica e teoricamente
inseparável da práxis revolucionária.
Korsch
será explícito ao afirmar que o princípio da especificidade histórica não é
apenas uma ferramenta analítica, mas um instrumento de combate. Segundo o
autor, esse princípio reforça a posição daquele que se insurge contra a ordem
existente, contrapondo-se às pretensões apologéticas de seus defensores.
No Manifesto, esse combate se revela não apenas nos diagnósticos
sociais, mas na própria forma da escrita: afirmativa, combativa, voltada para a
ação. Cada parágrafo é uma refutação das pretensões universais da
burguesia, uma denúncia da ideologia como mascaramento do real. E cada uma
dessas refutações se apoia na capacidade de historicizar o que o inimigo
pretende apresentar como eterno.
Em
certo sentido, o Manifesto Comunista é a negação
poética do eterno presente. Ao historicizar o que parecia imóvel, ao revelar a
origem das formas sociais e ao anunciar sua possível dissolução, ele reinscreve
a política no tempo. Recupera a ideia de que a história não terminou, e que
o futuro está por ser construído — não pela vontade abstrata dos indivíduos,
mas pela ação coletiva das classes subalternas organizadas.
Hoje,
diante de um mundo em que a ideologia neoliberal proclamou o fim da história;
em que a repetição da catástrofe se disfarça de estabilidade; em que a
precarização do trabalho é vendida como liberdade empreendedora, reler o Manifesto Comunista é um ato de
insubordinação intelectual. É recusar o fetiche da eternidade que sustenta
o capitalismo. É afirmar que nada do que existe é imutável. Que a liberdade, a
propriedade, a cultura, a família, a pátria — todas essas formas podem e devem
ser transformadas, porque são apenas o reflexo passageiro de uma ordem
histórica concreta.
Em uma
época marcada pelo que Mark Fisher chamou de “realismo capitalista”, em que se
tornou mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, o
princípio da especificidade histórica reaparece como uma chave crítica
essencial. Ele rompe com o fatalismo. Ele
“desnaturaliza”. Ele reabre o tempo. E, nesse gesto, reencontra o impulso
revolucionário que atravessa o Manifesto Comunista: fazer do presente o
campo da luta e, do futuro, a promessa de emancipação.
A
crítica da ideologia, neste texto fundacional, não é mera demolição conceitual.
É convocação. Convocação para romper com a paralisia. Convocação para
reconhecer que a história não acabou, que nenhuma dominação é definitiva, que
nenhuma forma social é sagrada. Marx e Engels escrevem como quem não quer
apenas interpretar o mundo — mas transformá-lo. E para isso expõem sua radical
historicidade.
Por
isso, o Manifesto não pode ser lido como uma peça
arqueológica. Ele não nos oferece um retrato da sociedade de 1848, mas um
método para compreender o presente. Um presente que, embora muito diferente,
segue estruturado por formas que se pretendem naturais. O neoliberalismo, a
financeirização, a plataformização da vida, o racismo estrutural, o
patriarcado, o colapso ecológico e a vigilância digital — todos esses processos
operam sob o manto da inevitabilidade. Reler o Manifesto é,
portanto, reencontrar o poder da crítica histórica: fazer ver que a sociedade
atual não é um destino, mas uma contingência.
É por
isso que o princípio da especificidade histórica continua sendo uma das armas
teóricas mais potentes da crítica marxista. Ao mostrar que tudo o que existe
socialmente é produzido, ele também afirma que tudo pode ser desfeito. Ao
recusar a naturalização das formas sociais, ele abre espaço para a imaginação
política e para a ação transformadora. É com esse princípio que o Manifesto se
sustenta como um dos textos mais vivos e perigosos da tradição
revolucionária.
Não há
promessa de salvação automática em suas páginas. Não há modelo definitivo de
sociedade futura. Há, sim, uma aposta radical no poder dos sujeitos
históricos, na capacidade de ruptura, na construção do novo. O que o Manifesto nos
ensina é que a história é aberta, e que cabe aos explorados, dominados e
oprimidos a fazê-la pesar sobre os escombros do velho mundo.
Na sua
conclusão, o Manifesto anuncia: “Proletários de todos os
países, uni-vos!”. Mas esse apelo só faz sentido porque ele é precedido por uma
crítica implacável ao mundo existente — e porque se apoia na certeza de que
este mundo é transitório. A sua força está em conjugar análise e
esperança, materialismo e emancipação, rigor histórico e desejo
político. E talvez seja isso o que mais assuste seus inimigos: a
consciência de que tudo aquilo que parece sólido, eterno e necessário — o
capital, o Estado, a moral burguesa — está sempre à beira do colapso. Tudo o
que é sólido se desmancha no ar. E no lugar do velho mundo, pode nascer algo
novo. Desde que saibamos, como Marx e Engels souberam, historicizar o presente
— e organizá-lo em direção ao porvir.
Fonte:
Por Gabriel Teles no Blog da Boitempo

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