O
cientista que ajudou a converter a China em superpotência após ser deportado
pelos EUA
Em
Xangai, na China, há um museu inteiro com 70 mil artefatos dedicados a um
homem: o "cientista do povo" Qian Xuesen.
Qian é
o pai do programa espacial e de mísseis chinês.
A
pesquisa dele ajudou a desenvolver os foguetes que lançaram o primeiro satélite
da China ao espaço e os mísseis que se tornaram parte do arsenal nuclear
chinês.
Por
esse motivo, ele é reverenciado como um herói nacional.
Mas,
nos Estados Unidos, onde estudou e trabalhou por mais de uma década, as
importantes contribuições de Qian raramente são reconhecidas.
O caso
dele ganhou destaque em veículos de comunicação como o New York Times nos
últimos dias, em meio à política de expulsão de imigrantes do presidente Donald
Trump.
No dia
28 de maio, o secretário de Estado Marco Rubio anunciou que o governo
trabalharia para "revogar agressivamente" os vistos de estudantes
chineses, incluindo aqueles ligados ao Partido Comunista ou que estudam em
"áreas críticas".
Os
riscos de expulsar, em vez de acolher, talentos como Qian já cobraram seu preço
da superpotência anteriormente.
Será
que os Estados Unidos poderiam tropeçar novamente e se livrar de figuras tão
brilhantes como esse cientista chinês — e repetir aquilo que é conhecido como
um dos piores erros da história do país?
• Nasce uma estrela
Qian
nasceu em 1911, quando a última dinastia imperial da China estava prestes a ser
substituída por uma República.
O pai
dele, depois de trabalhar no Japão, estabeleceu o sistema educacional nacional
da China.
Era
evidente desde cedo que Qian tinha muitos talentos. Ele se graduou como o
primeiro da turma na Universidade Jiao Tong de Xangai e ganhou uma rara bolsa
de estudos no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em
inglês), nos Estados Unidos.
Em
1935, chegava a Boston um jovem elegante e bem vestido. Qian pode ter
enfrentado demonstrações de xenofobia e racismo, diz Chris Jespersen, professor
de história da Universidade do Norte da Geórgia, nos EUA.
Mas
havia "também um sentimento de esperança e crença de que a China (estava)
mudando de modo realmente significativo".
Do MIT,
Qian foi para o Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) para estudar
com um dos mais influentes engenheiros aeronáuticos da época, o húngaro
Theodore von Karman.
Ali,
Qian dividia o escritório com outro proeminente cientista, Frank Malina,
membro-chave de um pequeno grupo de inovadores conhecido como "Esquadrão
Suicida".
O grupo
ganhou esse apelido por causa de suas tentativas de construir um foguete no
campus, e também porque alguns de seus experimentos com produtos químicos
voláteis deram bastante errado, explica Fraser Macdonald, autor de Escape from
Earth: A Secret History of the Space Rocket ("Fuga da Terra: A História
Secreta do Foguete Espacial", em tradução literal).
Mas
ninguém chegou a morrer, assinala o autor.
Um
certo dia, Qian foi atraído para uma discussão de um problema matemático
complicado com Malina e outros membros do grupo, e em pouco tempo ele se tornou
parte da equipe, produzindo pesquisas seminais sobre a propulsão de foguetes.
Na
época, a ciência de foguetes era "coisa de excêntricos e sonhadores",
diz Macdonald. "Ninguém levava isso a sério, e nenhum engenheiro com
inclinação matemática arriscaria sua reputação dizendo que este seria o
futuro."
Mas
isso mudou rapidamente com o início da Segunda Guerra Mundial (1939-45).
O
Esquadrão Suicida logo atraiu a atenção dos militares americanos, que
financiaram pesquisas sobre decolagem assistida por jato, onde propulsores
foram acoplados às asas das aeronaves para permitir que decolassem em pistas
curtas.
O
financiamento militar também ajudou a estabelecer o Laboratório de Propulsão a
Jato (JPL, na sigla em inglês) em 1943, sob a direção de Theodore von Karman.
Qian, junto com Frank Malina, estava no centro do projeto.
Qian
era um cidadão chinês, mas a República da China era aliada dos EUA, então não
havia "nenhuma suspeita concreta sobre um cientista chinês no centro do
empreendimento espacial americano", afirma Macdonald.
Ele
recebeu autorização de segurança para trabalhar na pesquisa de armas sigilosas
e até serviu no Conselho Consultivo de Ciência do governo americano.
No
final da guerra, ele era um dos maiores especialistas do mundo em propulsão a
jato e foi enviado com Von Karman em uma missão extraordinária para a Alemanha,
ocupando o posto temporário de tenente-coronel.
O
objetivo era entrevistar engenheiros nazistas, incluindo Wernher von Braun, o
principal cientista de foguetes da Alemanha.
Os EUA
queriam descobrir exatamente o que os alemães sabiam.
Mas, no
final da década, a brilhante carreira de Qian nos EUA foi interrompida
repentinamente e sua vida lá começou a se complicar.
Na
China, o líder Mao Tsé-Tung declarou a criação da República Popular comunista
em 1949, e rapidamente os chineses passaram a ser vistos nos EUA como "os
malvados", afirma Jespersen, da Universidade do Norte da Geórgia.
Enquanto
isso, um novo diretor do JPL passou a acreditar que havia uma rede de espiões
no laboratório e compartilhou suas suspeitas sobre alguns membros da equipe com
o FBI (a polícia federal americana). "Todos eram chineses ou judeus",
diz Macdonald.
A
Guerra Fria entre EUA e União Soviética estava em curso, e a caça às bruxas
anticomunista da era McCarthy ganhava força. Foi nessa atmosfera que o FBI
acusou Qian, Frank Malina e outros de serem comunistas e de serem uma ameaça à
segurança nacional.
As
acusações contra Qian foram baseadas em um documento de 1938 do Partido
Comunista dos EUA, que mostrava que ele participara de uma reunião social que o
FBI suspeitava ser uma reunião do Partido Comunista de Pasadena.
Embora
Qian negasse ser membro do partido, um novo estudo sugeriu que ele ingressou na
mesma época que Frank Malina, em 1938. Mas isso não o torna necessariamente um
marxista.
Ser
comunista naquela época era uma declaração de antirracismo, explica Macdonald.
O grupo
queria destacar a ameaça do fascismo, diz o especialista, bem como o horror do
racismo nos EUA.
Eles
estavam fazendo campanha, por exemplo, contra a segregação da piscina local de
Pasadena e usaram as reuniões comunistas para discuti-la.
Zuoyue
Wang, professor de história da Universidade Politécnica do Estado da
Califórnia, nos EUA, diz que não há qualquer evidência de que Qian tenha feito
espionagem para a China ou tenha sido agente de inteligência quando esteve nos
Estados Unidos.
Ele
foi, no entanto, privado de sua autorização de segurança e colocado em prisão
domiciliar. Os colegas do Caltech, incluindo Theodore von Karman, escreveram ao
governo para defender a inocência de Qian, mas sem sucesso.
Em
1955, após cinco anos de prisão domiciliar, o presidente Eisenhower tomou a
decisão de deportá-lo para a China. O cientista partiu de barco com sua mulher
e dois filhos nascidos nos EUA, dizendo a jornalistas que nunca mais pisaria
nos EUA. E manteve sua promessa.
"Ele
foi um dos cientistas mais ilustres dos EUA. Ele contribuiu muito e poderia ter
contribuído muito mais. Portanto, não foi apenas humilhação, mas também um
sentimento de traição", afirma o jornalista e escritor Tianyu Fang.
Qian
chegou como herói à China, mas não foi imediatamente admitido no Partido
Comunista.
Seu
histórico não era impecável. Sua esposa era a filha aristocrática de um líder
nacionalista e, até a queda de Qian em desgraça, ele vivia feliz nos EUA. O
cientista havia dado até os primeiros passos para solicitar a cidadania
americana.
Quando
finalmente se tornou membro do Partido Comunista Chinês, em 1958, ele o abraçou
e, partir dali, tentou sempre permanecer do lado certo do regime. Ele
sobreviveu aos expurgos e à Revolução Cultural, e conseguir dar seguimento a
uma carreira extraordinária.
Quando
chegou à China, havia pouco conhecimento da ciência de foguetes, mas 15 anos
depois ele supervisionaria o lançamento do primeiro satélite chinês ao espaço.
Ao
longo das décadas, ele treinou uma nova geração de cientistas e seu trabalho
lançou as bases para o Programa de Exploração Lunar da China.
Ironicamente,
o programa de mísseis que Qian ajudou a desenvolver na China resultou em armas
que foram disparadas contra os EUA.
Os
mísseis bicho-da-seda (silkworm) desenvolvidos por Qian foram disparados contra
americanos na Guerra do Golfo de 1991 e em 2016 contra o navio de guerra USS
Mason por rebeldes houthis no Iêmen.
Ao
adotar uma linha dura contra o comunismo doméstico, afirma Macdonald, o país
deportou "os meios pelos quais um de seus principais rivais comunistas
poderia desenvolver seus próprios mísseis e seu programa espacial. Foi um erro
geopolítico extraordinário."
"Há
um ciclo estranho. Os EUA expulsaram essa expertise e ela voltou para
mordê-los", observa ela.
Um
ex-secretário da Marinha dos EUA, Dan Kimball, que mais tarde seria chefe da
empresa de propulsão de foguetes Aerojet, disse uma vez que a deportação de
Qian foi "a coisa mais estúpida que este país já fez".
Hoje,
há novamente uma enorme tensão entre a China e os EUA. Desta vez, não se trata
de ideologia, mas de comércio, segurança tecnológica e, segundo Trump, uma
suposta falha da China em conter o espalhamento da covid-19.
Embora
a maioria dos americanos não tenha noção da história de Qian e de seu papel no
programa espacial americano, Tianyu Fang diz que muitos chineses e estudantes
chineses nos EUA sabem sobre o cientista e por que teve que sair do país, e
eles veem os paralelos com os dias atuais.
"As
relações entre os EUA e a China pioraram tanto que eles sabem que podem estar
sob as mesmas suspeitas que a geração de Qian", compara o jornalista.
Na
visão de Macdonald, a história de Qian é um alerta sobre o que acontece quando
você expulsa o conhecimento.
"A
história da Ciência americana mostra que ela é impulsionada por pessoas vindas
de fora... Mas nestes tempos conservadores, essa é uma história que se torna
mais difícil de ser celebrada."
A
contribuição do Laboratório de Propulsão a Jato para o programa espacial dos
EUA foi, acredita Macdonald, bastante negligenciada em relação à de Wernher von
Braun e de outros cientistas alemães, que foram levados em segredo aos EUA logo
após a visita que Von Karman e Qian fizeram a eles.
Braun
era nazista, mas suas conquistas são reconhecidas de uma forma que as de Qian e
outros do Esquadrão Suicida não são, diz Macdonald.
"A
ideia de que o primeiro programa espacial viável dos EUA foi iniciado por
socialistas locais, sejam judeus ou chineses, não é realmente uma história que
os EUA possam ouvir sobre si mesmos", diz ele.
A vida
de Qian durou quase um século.
No
período, a China cresceu de um peixinho econômico para uma superpotência na
Terra e no espaço.
Qian
fez parte dessa transformação. Mas sua história poderia ter sido uma grande
história americana também.
Em
2019, quando a China conseguiu o feito de pousar no outro lado da Lua, o fez na
cratera Von Karman — nome dado em homenagem ao engenheiro aeronáutico que foi
um dos mentores de Qian.
Um
aceno, proposital ou não, para o fato de que o anticomunismo americano ajudou a
impulsionar a China no espaço.
Fonte:
BBC News

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