“Indicadores”,
ardil para privatizar a Educação Pública
No dia
22 de maio, 25 diretores da rede municipal de ensino de São Paulo foram
chamados para uma reunião sem pauta em suas respectivas diretorias regionais de
ensino (DRE). Chegando lá, foram informados que seriam afastados de suas
escolas para fazer um curso de “reciclagem” entre os meses de junho e dezembro
de 2025. Um terceiro Assistente de Direção (um interventor) seria nomeado para
compor o quadro da gestão da escola durante o período de afastamento do
diretor. No dia seguinte, foi publicado no diário oficial os registros funcionais
dos diretores que seriam afastados e os nomes dos interventores de cada escola.
A justificativa alegada pela prefeitura de São Paulo, gestão de Ricardo Nunes,
para o afastamento dos diretores foi que as 25 escolas escolhidas haviam
apresentado baixas notas no IDEB (índice de desenvolvimento da educação básica)
e no IDEP (índice de desenvolvimento da educação paulistana) e, além desse
critério, os diretores estariam há mais de 4 anos na mesma escola.
Este
afastamento sumário revela o aprofundamento do uso distorcido desses
indicadores pela rede municipal de ensino. Se antes os resultados do IDEB e do
IDEP eram usados para criar rankings e impor o constrangimento às escolas com
baixo desempenho, agora passou a ser usado para responsabilizar e desmoralizar
a gestão escolar. Nesse processo de dissimulação do problema educacional
paulistano, abandona-se a ideia de responsabilizar a unidade escolar e passa-se
à execração pública de um dos seus profissionais. Com isso, transmite-se a
falsa mensagem de que os problemas da educação da cidade de São Paulo são
unicamente de natureza endógena ao contexto escolar, sem responsabilizar a
política pública municipal, o que exigiria um esforço amplo e intersetorial para
dar conta de fatores extra escolares que dificultam a aprendizagem de crianças
e jovens em maior desvantagem social.
As
comunidades escolares e toda a rede de ensino receberam com indignação a
notícia da intervenção nas escolas e prontamente se colocaram em luta contra a
ação arbitrária de Nunes. Foi grande a solidariedade recebida a partir de
Universidades, entidades sindicais, organizações e coletivos. A resistência fez
com que a prefeitura fizesse um recuo, retrocedendo na nomeação dos
interventores. No entanto, o suposto curso de “reciclagem” segue em andamento.
Suposto curso porque, na realidade, trata-se de um exílio dos diretores. Não há
pauta definida para a formação, não há local de trabalho adequado nas
diretorias de ensino e na Secretaria Municipal de Educação (SME) para os
diretores afastados de suas escolas. Está cada vez mais evidente que não há um
programa estruturado de formação para esses gestores e que o objetivo é tão
somente promover a intervenção nas escolas. Tudo parece um grande improviso.
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O que tem sido o suposto curso de reciclagem dos diretores
Desde o
dia 6 de junho, os diretores afastados estiveram três vezes na Secretaria
Municipal de Educação (SME). Na primeira vez, foi reservado o tempo de uma hora
de reunião para apresentação do suposto programa de formação pela equipe da SME
aos diretores, os quais foram divididos em grupos por região. Uma dessas
conversas por região, no entanto, durou apenas 24 minutos, dado o inconformismo
de um diretor com a situação. Nas outras duas vezes, os diretores assistiram a
relatos de práticas de dois diretores de escola, cujas unidades têm bom
desempenho no IDEB. No dia 17 de junho, Amaral Barbosa, diretor de uma escola
rural com 300 alunos, no município de Pedra Branca, interior do Ceará, fez o
seu relato. No dia 18, foi a vez de Wagner Roberto Neves, diretor de uma escola
de programa de ensino integral (PEI) da rede estadual de São Paulo, localizada
na região de Interlagos, Zona Sul da cidade. Em comum, os dois gestores tinham
a longa permanência na direção da escola e a exaltação de aspectos intra e
extra escolares que favoreceram a obtenção dos resultados no IDEB. Embora a
prefeitura de São Paulo tenha escolhido esses dois profissionais para conversar
com os diretores afastados, paradoxalmente teve como critério afastar aqueles
que estão há quatro anos ou mais à frente de suas escolas. Foi interessante
também notar, que assim como nas 25 escolas “prioritárias”, o IDEB dessas duas
escolas apresentadas como modelos também caiu em 2023 (ano do IDEB de
referência utilizado pela prefeitura de São Paulo para justificar o afastamento
de diretores de escola), sendo que a nota dos anos finais (9º ano) do ensino
fundamental da escola de Pedra Branca decaiu de 7,3, em 2021, para 3,7, em
2023, segundo o portal de dados educacionais QEdu1, o que representa um
declínio ainda mais acentuado do que aquele constatado nas escolas
“prioritárias”, cujos diretores estão sendo afastados. Por seu turno, o IDEB
dos anos iniciais (5º ano) de 2023 não foi registrado no portal de dados,
possivelmente o índice de comparecimento dos alunos no exame não deve ter
atingido 80%. Vale destacar que o recorte utilizado reflete um ano crítico de
medição desses indicadores, cujos declínios nos resultados já eram esperados,
devido ao longo período de fechamento das escolas causado pela pandemia do Covid-19.
Enquanto
isso, os diretores seguem exilados nas diretorias regionais e as suas escolas
estão sem diretor. Sobre isso, cabe ainda dizer que é na diretoria regional,
sozinho e sem ter o que fazer, que a violência é percebida com maior
intensidade. É lá que as pessoas sentem de maneira ainda mais aguda como esse
processo é brutal e atenta contra a dignidade delas, entre as quais, cinco não
suportaram esse golpe violento e estão em licença médica. A despeito disso,
essas pessoas ainda têm força para seguir na resistência para a derrubada total
da medida arbitrária de Nunes.
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O avanço do projeto neoliberal e autoritário sobre a educação pública
Toda
essa movimentação da prefeitura de São Paulo representa o avanço do projeto
neoliberal, autoritário e de desmantelamento da educação pública. Esse projeto
tem como objetivo a privatização da escola pública e o enraizamento da
ideologia neoliberal, contribuindo para a reprodução das relações sociais
capitalistas que proporcionam exploração e desigualdades. Nesse sentido,
determina aquilo que deve ser ensinado ou não na escola a partir de uma base
curricular comum. O controle da implementação dessa base curricular se dá a
partir das avaliações de larga escala (PISA, SAEB, SARESP, Prova São Paulo).
Assim, bonifica-se as escolas com bons resultados e responsabiliza-se as
escolas com baixos índices, desconsiderando qualquer reflexão mais profunda
sobre os motivos que levam uma escola a ter índices abaixo das metas, como, por
exemplo, o contexto socioeconômico e cultural em que a escola está inserida ou
mesmo condições estruturais para o desenvolvimento do trabalho pedagógico. O
decreto que afasta os diretores das escolas com o argumento dos baixos índices
educacionais vem combinado com outras medidas que apontam a terceirização da
gestão das escolas. Em dezembro de 2024, o prefeito Ricardo Nunes manifestou a
intenção em terceirizar a gestão de 50 escolas municipais que apresentavam
baixos índices no IDEB. Em janeiro de 2025, a proposta de terceirização da
gestão de 50 escolas foi reafirmada pelo secretário municipal de educação,
Fernando Padula. Recentemente, a prefeitura de São Paulo confirmou a terceirização
de 3 escolas em construção nas regiões de Santo Amaro, Campo Limpo e Pirituba.
O modelo a ser seguido é o da EMEF Liceu Coração de Jesus, escola
municipalizada em dezembro de 2022. De acordo com esse modelo, o currículo e
materiais ficam sob responsabilidade da secretaria municipal da educação, a
gestão e contratação de funcionários fica a cargo da instituição privada.
O
avanço do modelo privatista no atual momento histórico faz uso do autoritarismo
para sua implementação, tendo em vista que trata-se de medidas antipopulares e
bastante questionáveis. Para avançar sobre a educação em São Paulo, foi
necessário uma ação extremamente violenta que foi o afastamento repentino de
diretores, sem justificativas com argumentos sólidos, conforme demonstraremos
adiante, desrespeitando as comunidades escolares e o princípio da gestão
democrática, tão duramente conquistado e construído a partir da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996. Além dessa ação, o
autoritarismo da gestão Nunes sobre a educação municipal também é expresso
quando manifesta a possibilidade de adoção do modelo das escolas
cívico-militares em São Paulo, conforme anunciado em maio de 2024.
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Incoerência das justificativas apresentadas pela gestão de Ricardo Nunes
Afastar
diretores de escola com base em notas do IDEB e IDEP é uma ação repudiável por
si só, uma medida profundamente autoritária e pouco efetiva para a resolução
dos problemas educacionais. Para uma escola que apresenta baixos índices,
devemos envolver toda a comunidade escolar na reflexão dos motivos que levaram
a tais resultados, quais os problemas que a escola enfrenta, quais as possíveis
saídas, e qual apoio é necessário para que a escola saia dessa situação. Tudo
isso é o contrário da penalização.
De toda
forma, mesmo que pudéssemos considerar apenas uma nota, um índice, para avaliar
uma escola, ainda assim a justificativa utilizada pela prefeitura para o
afastamento de diretores seria falha. Segundo a nota técnica da Rede Escola
Pública e Universidade (REPU), a prefeitura não usou nenhum critério objetivo
para determinar quais seriam as 25 escolas. De um modo geral, as 25 escolas
afetadas pela intervenção da prefeitura não estão entre as que possuem piores
índices, inclusive algumas apresentam notas acima da média. Outro aspecto que a
nota da REPU destaca é o fato de não terem sido utilizados os mesmos critérios
para avaliar escolas diferentes. Por exemplo, para algumas utilizou-se o IDEB
dos anos iniciais, para outras o IDEB dos anos finais, outras o IDEP, e assim
por diante. Ou seja, foram escolhidos os números menos favoráveis de cada
escola para incluí-la na lista da intervenção. Na lista tem até escolas com
projetos político pedagógicos referenciados na comunidade e com premiações,
como é o caso da EMEF Espaço de Bitita, que já recebeu comendas e venceu
diversos prêmios, como Faz Diferença, concedido pelas Organizações Globo;
Territórios Educativos, concedido pelo Instituto Tomie Ohtake; Prêmio Paulo
Freire; Professor Nota 10, da Fundação Víctor Civita; Criativos da Escola, da
Fundação Alana; Prêmio Heitor Vila-Lobos, da Câmara Municipal, só para citar
alguns exemplos. Além disso, a escola recebeu o Voto de Júbilo da Câmara
Municipal de São Paulo, em dezembro de 2023, e foi certificada pela Unesco, em
2017, outorga que lhe assegura participação no PEA-UNESCO (Programa das Escolas
Associadas da UNESCO).
Ademais,
são considerados apenas os índices de 2023, período no qual estávamos saindo de
uma pandemia. É inegável os impactos que a pandemia trouxe para o aprendizado
das nossas crianças, adolescentes e adultos. Escancarou-se a desigualdade
educacional. Estudantes de baixa renda tiveram maiores dificuldades para acesso
a equipamentos e internet para dar prosseguimento aos estudos. Devido às
jornadas extenuantes de trabalho das famílias, muitas vezes os estudantes não
tinham adultos que pudessem acompanhar e orientar o desenvolvimento dos estudos
em casa. Em muitos casos faltava o básico para a sobrevivência, como comida e
condições sanitárias adequadas para enfrentar o covid 19. É óbvio que os
índices educacionais pós pandemia vão ser mais baixos do que no momento
anterior. A recuperação da aprendizagem impactada por esse período epidêmico
precisará de um longo período para se restabelecer. É no mínimo injusto não
considerar essa questão ao analisar os índices educacionais das escolas
brasileiras.
Outro
ponto que não está sendo levado em consideração pela prefeitura de Nunes são as
condições de trabalho e estudo nas escolas. É comum professores acumularem
cargos em mais de uma rede de ensino devido aos salários defasados da
categoria. Os docentes não possuem tempo suficiente dentro de suas jornadas de
trabalho para preparação e correção de atividades, o que acarreta em acúmulo de
tarefas a serem realizadas fora da escola, em horário extra não remunerado. Nas
escolas faltam funcionários de apoio para o adequado atendimento das crianças
com deficiência. Manutenções de equipamentos e da estrutura predial não são
efetuadas ou, se são, ocorrem com muita lentidão e depois de inúmeras
solicitações, como tem sido o caso da falta de linha telefônica em algumas
dessas escolas, que aguardam pela manutenção desde novembro de 2024 e sem
perspectivas de resolver o problema, devido ao impasse entre a prefeitura e a
empresa prestadora do serviço. Com as recentes ondas de calor, ficou evidente a
falta de climatização das escolas. As salas de aula são lotadas, o que torna
muito difícil o atendimento à todos os estudantes em suas particularidades de
aprendizagem. Cada vez mais amplia-se o número de professores contratados por
tempo determinado, sem concurso público. Segundo o portal de notícias
Metrópoles, o número de professores temporários aumentou 40 vezes em 5 anos na
capital de São Paulo.
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Lições da luta
Apesar
de muito duro, podemos tirar algumas lições do processo de luta contra o
afastamento dos diretores das escolas da rede municipal de ensino de São Paulo.
O
afastamento arbitrário e sem fundamentação sólida expressa uma disputa em torno
do currículo. A partir das avaliações em larga escala busca-se homogeneizar e
centralizar as escolas em torno de uma base nacional comum curricular. As
nossas escolas estão inseridas em contextos culturais e socioeconômicos
diversos. Para que a aprendizagem seja significativa e faça sentido para a
comunidade onde a escola está inserida, é importante levar em consideração a
sua cultura e o contexto social. Por exemplo, se uma escola atende uma
população numerosa de migrantes, isso deve ser levado em consideração no
currículo e nas práticas pedagógicas da escola. Ou se uma escola está inserida
em um contexto de muita violência, é necessário que seu projeto pedagógico
considere ações e objetos de conhecimento que visem a superação dessa
realidade. A cobrança de metas e índices abstratos sufoca qualquer trabalho que
busque dialogar com a diversidade das comunidades atendidas pela escola
pública.
Observamos
também que as escolas que construíram vínculos mais profundos com a comunidade
onde estão inseridas foram as que conseguiram apresentar maior capacidade de
resistência, assim como as escolas que constroem a gestão democrática com mais
afinco. Outro aprendizado da luta é a importância da solidariedade. Foram
muitas as entidades, grupos, organizações e Universidades que repudiaram a
medida do prefeito de São Paulo. A repercussão nos veículos de comunicação foi
muito grande. Tudo isso contribuiu para exercer pressão e fazer com que a
prefeitura recuasse na nomeação dos interventores para as escolas. Dessa forma,
fica como aprendizado que a defesa da escola pública passa pelo envolvimento
das comunidades, pela solidariedade de todas as categorias e pelo
aprofundamento da democracia.
Fonte:
Por Barbara Pontes e Cláudio Marques da Silva Neto, em Outras Palavras

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