‘Exu
te ama e está voltando!’: grupos afro-religiosos confrontam intolerância
evangélica
Todo
último sábado de maio, o terreiro Casa de Oiá, na periferia de Salvador,
realiza uma cerimônia de entrega de presentes para a Iyalodê Oxum e suas yabás.
No encontro mais recente, já no final de uma cerimônia que durou todo o dia, os
integrantes do terreiro – homens, mulheres, crianças – compartilhavam
alimentos, toques e cânticos na Ponta do Humaitá. Mas na edição deste ano havia
uma novidade: ao lado do grupo, cerca de 15 pessoas usando camisetas pretas nas
quais líamos a palavra “Ágape” formaram uma roda e começaram a entoar músicas
evangélicas ao som de um violão.
Eu
estava, a passeio, no local. Passei a observar aquela simultaneidade de
expressões religiosas que poderia soar muito bonita se não fosse um detalhe: a
óbvia tentativa do segundo grupo em constranger o primeiro. Os sinais eram
evidentes: em uma área ampla e sem qualquer aglomeração, a decisão dos cristãos
foi a de ficar bastante próximos aos candomblecistas, cantando de forma a
confundir-se com o som dos atabaques e tambores próximos. O segundo sinal: no
mesmo momento em que os integrantes da Casa de Oiá foram embora, o grupo
evangélico também se desmobilizou e partiu.
Eu já
sabia de diversos casos parecidos, alguns bem mais ruidosos, como o que ocorreu
no quase centenário Terreiro de Xambá, em Olinda. Era dia do Toque de Obaluaiê
quando os integrantes da casa se depararam com um grupo de cerca de 100
evangélicos da Assembleia de Deus em frente ao terreiro. Ali, com faixa, carro
de som, microfone, faixa e instrumentos, tentaram armar um culto. Também já
escrevi sobre o assédio de grupos neopentecostais aqui no Intercept.
Mas
aquele pequeno show de superioridade moral e religiosa daquele grupo me fez ver
como, fingindo que não estão cometendo racismo, uma fatia importante dos
evangélicos avança e tenta tratorar, geralmente sem serem incomodados, parte da
população brasileira.
A
realidade é que a presença ostensiva de grupos evangélicos em espaços públicos
urbanos tem sido fortemente marcada por ações que extrapolam o proselitismo
religioso para alcançar práticas de intimidação simbólica e material contra
religiões afro-indígenas.
Sucessora
no cargo de ialorixá na casa, a jovem Geovana Santana, 18, acompanhou todo o
lamentável movimento no dia da festa de Oxum. “Nunca tinha vivenciado aquele
assédio por parte dos evangélicos. Acho extremamente desrespeitoso, contudo
cumprimos nossa missão com muito amor e respeito aos nossos sagrados”, disse.
A boa
notícia é que muita gente cansou dessa prática intimidatória e está partindo
para o contra-ataque, ocupando os espaços públicos com fé, humor, amor e
objetivo certeiro. São táticas importantes, uma vez que essas disputas não
ocorrem em pé de igualdade, com as pessoas adeptas de religiões
afro-brasileiras sendo penalizadas também pela própria estrutura estatal que
deveria assegurar seus direitos.
Um dos
nomes emergentes desse povo que faz política com coragem e festa é Alex
Solarios, 21 anos, estudante de odontologia que vive em São Paulo. Sua prática é simples e poderosa: dentro dos
metrôs, ele começou a cantar pontos para Exu, o mais estigmatizado dos orixás.
Em um
dos primeiros vídeos (que conta com mais de quatro milhões de visualizações no
Tik Tok), ele substitui o nome “Jesus” por “Exu”, levando muitos ao espanto –
ou ao riso. O conteúdo deu o que falar e mostrou que o assunto mobiliza muito
adeptos – fazendo com que uma parte significativa inclusive perca o medo de se
declarar “macumbeiro”, termo usado de
forma pejorativa e que vai recebendo outras camadas ao ser usado positivamente
pelos praticantes das religiões afro-indígenas.
Alex
prosseguiu mobilizando pessoas nas estações de metrô e procurando levar a
palavra da Umbanda nas suas viagem do Uber.
São
atos que, sabemos, podem potencialmente colocar a integridade física do
estudante em risco – até agora, disse Solarios nesta entrevista, “somente”
vaias e xingamentos foram endereçados a ele. No plano virtual, a perseguição é
constante: em janeiro deste ano, ele teve a conta do Instagram desativada, mas
posteriormente recuperada. A razão: foi denunciado por… racismo religioso. É
aquele papo de que o Brasil não é para amadores.
Outra
frente que vem recebendo mais visibilidade também está atrelada ao orixá das
Encruzilhadas: é a Marcha para Exu realizada na Avenida Paulista – um local
bastante simbólico não só para pensar a concentração de renda e poder no país,
para como palco de eventos políticos que deram força para a extrema-direita. A
terceira edição do evento vai acontecer no dia 17 de agosto. Aqui, nesse vídeo
do encontro no ano passado, dá para ver a multidão feliz da vida cantando
pontos para Exu e Pombagira.
“Exu é
o orixá mais discriminado, por isso fui direto na fonte. Para mim não adiantava fazer uma marcha para Oxalá, Oxum…
eles não são atacados como Exu, que não é o diabo, não é o capeta. Não fazemos
maldade. Ano passado, arrecadamos 25 toneladas de alimentos na Marcha. Exu
matou a fome de muita gente”, diz o empresário Jonathan Pires, 33 anos,
idealizador do evento que, promete, este ano vai ser maior.
Segundo
ele, a celebração tem feito com que muita gente passe a manifestar a própria fé
sem medo: o uso da guia, por exemplo, tornou-se um símbolo. “Quando sabemos do
caso de empresas que discriminam funcionários, partimos para cima”, conta ele,
que faz questão de destacar a “prosperidade do povo do axé” em sua fala, algo
interessante quando lembramos que parte do discurso evangélico também se
estrutura na mesma perspectiva.
Dono de
uma fábrica de parachoques e outra de artigos religiosos, ele diz que criou o
evento para agradecer a Exu. “A religião me ajudou muito, não foi somente
dormir tarde e acordar cedo. Tive muito acolhimento de orixá, preto velho. Mas
quero mostrar que podemos ser prósperos, bater no peito e dizer ‘eu sou
macumbeiro’”.
Infelizmente,
a questão do espraiamento de outros eventos públicos relacionados ao orixá Exu
tem sido alvo de contendas judiciais. O empresário inscreveu o nome “Marcha
para Exu” no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) e agora procura
impedir via justiça que outras pessoas/organizações realizem as manifestações
usando o mesmo nome.
Algo
bastante delicado, uma vez que esse cenário pode potencialmente prejudicar a
própria ideia de “espalhar a palavra” do orixá e provocar uma corrida pela
privatização do nome da entidade religiosa.
Há
caminhadas dedicadas a Exu em uma série de cidades do país, como Manaus, no
Amazonas, Belém no Pará, Recife em Pernambuco e nas cidades gaúchas de Arroio
Grande e Cassino. E esse movimento, a despeito de rinhas judiciais, só tende
(felizmente) a crescer.
Essa
popularização é importante uma vez que, com o recrudescimento da extrema
direita e de toda uma lógica instagramizada de que as religiões cristãs são
superiores, a intolerância explodiu no país: segundo dados do Ministério dos
Direitos Humanos e da Cidadania via Disque 100, as denúncias aumentaram 80% em
um ano (de 2023 para 2024).
A
estética é algo bastante central nessas mobilizações que são, assim como as das
religiões cristãs, também pensadas para as redes sociais.
Assim,
atos como as caminhadas realizadas por povos de terreiros em todo Brasil – em
Recife uma acontece anualmente há quase 20 anos –, têm sido um lugar cada vez
mais político. Ao mesmo tempo, o último
Censo religioso realizado pelo IBGE mostrou que o número de adeptos de
religiões afro-brasileiras triplicou. O número é considerado, no entanto,
maior, uma vez que muitas pessoas ainda têm receio de declarar uma fé não
cristã.
É
preciso dizer que estética é algo bastante central nessas mobilizações que são,
assim como as das religiões cristãs, também pensadas para as redes sociais (e a
questão da prosperidade citada por Jonathan tem relação com isso): nos dias das
caminhadas pelo Brasil, o que vemos nas redes é uma quantidade expressiva de
pessoas vestidas a caráter, usando vermelho e preto, flores e chapéus na
cabeça, charutos e saias rodadas.
Por
isso vale lembrar que, já em 2016, o criador Cássio Bonfim organizou, em
cidades como Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador, um desfile
dedicado ao orixá da Comunicação, um sucesso que até hoje repercute em sua
loja, a Acre: o Exu Motoboy (tem até fotinha do presidente Lula com o famoso
boné). Foram diversas performances para confrontar uma intolerância mal
disfarçada de zelo moral.
Esse
contra-ataque não é mera performance. Conto aqui, para terminar, uma história
ocorrida em Campina Grande, na Paraíba, pode ilustrar bem: na cidade, durante
mais de 25 anos e no período do Carnaval, aconteceu o encontro da Nova
Consciência. Ali, centenas de pessoas de religiões variadas discutiam práticas
meditativas, saúde, ecologia, filosofias orientais.
O
fortalecimento do encontro fez com que grupos evangélicos passassem também a
realizar cultos próximos aos eventos da Nova Consciência. Com apoio de
prefeituras e empresários locais, os cristãos passaram a dominar cada vez mais
o espaço público, enquanto a programação na NC seguia para espaços fechados.
No
período da pandemia, o encontro, é claro, passou a ser online. Mas nunca mais
houve uma edição presencial. E hoje, em Campina Grande, acontece, no Parque do
Povo, o encontro da Consciência Cristã.
• Terreiro de candomblé é demolido e tem
objetos sagrados danificados pelo governo da Bahia
Moradores
de uma comunidade localizada no Parque Metropolitano de Pituaçu, em Salvador,
na Bahia , denunciam ações violentas do governo do estado, comandadas por
Jerônimo Rodrigues (PT), como parte das obras de revitalização do espaço, uma
das maiores áreas verdes da capital baiana. Em uma das ações, no início deste
mês, o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), com apoio da
Polícia Militar estadual, demoliu um terreiro de candomblé que funcionava na
área.
Segundo
os filhos de santo do terreiro Ilê Axé Oya Onira’D, a demolição ocorreu sem
aviso prévio. Segundo a ialorixá Naiara de Oyá, uma casa religiosa, que
funcionava no local há oito anos, possuía documentos de intenção de compra da
área.
“Todo
terreiro de candomblé faz parte da preservação ao meio ambiente, a gente não
está desfazendo, nós estamos cuidando. Isso que eu quero que eles entendam. Por
que não podemos ficar em uma terra que já é nossa? O que impede de a gente
continuar cultivando o nosso sagrado? O que nos impede de continuar aqui? Isso
que ninguém nos diz”, completa.
Na
demolição, na segunda-feira, 9 de junho, objetos sagrados foram retirados do
local e alguns foram destruídos. Muitos foram jogados do lado de fora da
construção, no chão. De acordo com um líder religioso, os objetos possuíam um
patrimônio próprio para serem retirados. “A gente conseguiu tirar o que deu e
eles passaram a retroescavadeira”, conta Naiara de Oyá.
“É uma
intolerância religiosa muito grande quando mexem com o nosso sagrado,
principalmente na Bahia, que é chamada de Bahia de Todos os Santos. Quando a
gente vai exercer o que é nosso, as pessoas tentam nos calar de todas as
formas, e foi isso que fizeram. Tentaram nos calar, matando o nosso sagrado,
destruindo o nosso sagrado”, lamenta.
Após a
demolição do dia 9, a Secretaria da Casa Civil da Bahia e o Inema deram um
prazo de 10 dias para a retirada das pessoas do local. O prazo, que se
encerraria nesta quarta-feira (18), foi prorrogado por 15 dias após
recomendação do Ministério Público da Bahia (MP-BA), que solicitou a
interrupção imediata das intervenções de remoção da comunidade religiosa. Os
moradores do terreiro, porém, afirmam que o prazo é insuficiente.
Ainda
nesta quarta, foi realizado um ato em defesa do terreiro, com a presença de
diversas lideranças religiosas. Segundo a ialorixá Naiara de Oyá, atualmente
cerca de 30 famílias, de filhos e filhas de santo, vivem no espaço .“Eles nos
deram quatro opções de terrenos para ir, mas não são nessa área. Eu não tenho
condições de tirar o meu sagrado e os filhos de santo que já moram aqui desde o
início. Aqui já existe uma rotina e ela não pode ser quebrada”
“Eu
tenho muitas famílias que precisam desse espaço, fora os trabalhos sociais que
a gente faz para ajudar a comunidade”, completa.
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‘Muro do apartheid’
O
Parque Metropolitano de Pituaçu fica localizado no bairro de mesmo nome,
considerado de alto padrão, em Salvador. O espaço, desde dezembro do ano
passado, passa por obras de revitalização feitas pelo governo da Bahia, através
do Inema e da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Conder).
O
investimento na primeira etapa da obra é de R$ 25 milhões. O parque é
considerado uma das maiores áreas verdes da capital baiana, mas já perdeu muito
espaço com ocupações e construções, sobretudo de empreendimentos de luxo.
Umas
das etapas da obra consistiu na construção de um grande muro, que impede o
acesso de moradores de uma comunidade pobre que fica no local. No lado nobre do
bairro, porém, foi construído apenas um alambrado. A construção foi apelidada
pelo conselheiro do Parque Pituaçu, Gabas Machado, como “muro do apartheid”
“É o
muro do Apartheid, como nós estamos chamando aqui. A comunidade tem de sete a
oito acessos para o parque e eles querem deixar apenas quatro”, relata. Um dos
acessos que está sendo fechado fica em frente a uma instituição social na qual
Gabas, que é educador social, dá aulas.
No
último sábado (14), um segurança de 27 anos, identificado como Pablo Para Assu
Cardoso da Silva, morreu após ser atingido por uma retroescavadeira nas obras
do Parque Metropolitano de Pituaçu. A vítima estava fazendo uma ronda, em uma
motocicleta, quando foi atingido pela máquina.
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O que diz o governo da Bahia sobre a demolição do terreiro?
O ICL
Notícias enviou uma série de questionamentos ao Instituto de Meio Ambiente e
Recursos Hídricos (Inema), vinculado à Secretaria do Meio Ambiente da Bahia,
sobre a ação de demolição do terreiro Ilê Axé Oya Onira’D e as obras do Parque
Metropolitano de Pituaçu. A reportagem não obteve respostas até o fechamento da
matéria. O espaço segue aberto.
Fonte:
Por Fabiana Moraes, em The Intercept/ICL Notícias

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