Dez
anos de uma revolução feminista latino-americana
Em 3 de
junho de 2015, meio milhão de pessoas tomaram as ruas de Buenos Aires em
resposta a um grito de dor e indignação. O feminicídio de Chiara Páez,
adolescente grávida assassinada pelo namorado, foi a gota d’água que
transbordou um copo já cheio de violência machista. O tweet da jornalista
Marcela Ojeda ecoou como um chamado urgente: “Atrizes, políticas, artistas,
empresárias, referências sociais… mulheres, todas, bah… não vamos levantar a
voz? ESTÃO NOS MATANDO.”
Nascia
assim o movimento Ni Una Menos (NUM), que em uma década transformaria a
Argentina e inspiraria uma onda feminista que atravessaria fronteiras e
gerações. Foi o início de uma nova era na luta contra a violência de gênero.
Meio
milhão de pessoas, quando tomaram as ruas da Argentina, ainda não sabiam, mas
estavam inaugurando uma das ondas feministas mais potentes e transformadoras da
história recente da região latino-americana – e do mundo.
Dez
anos depois, o movimento que começou como um grito visceral contra os
feminicídios se transformou em uma revolução cultural, política e social que
redefiniu os limites do possível.
O Ni
Una Menos resultou em uma revolução cultural, gerando uma mudança de paradigma
cultural na qual a violência machista foi desnaturalizada. Pela primeira vez,
crimes que eram romantizados como “passionais” passaram a ser nomeados pelo que
realmente eram: Feminicídio.
No
Brasil, o movimento ganhou força própria. As mulheres brasileiras, inspiradas
pelas vizinhas, reforçaram o sentido do 8 de março como data de protesto e
organizaram manifestações contra Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos
Deputados e autor de projetos que dificultavam o acesso ao aborto legal. O
assassinato da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018, catalisou uma
indignação que já fervilhava. A campanha #EleNão, contra a candidatura de Jair
Bolsonaro, mobilizou milhões de mulheres que haviam aprendido com as argentinas
sobre a força da união.
Os
dados brasileiros espelham a realidade argentina de forma assustadora. Segundo
o Atlas da Violência 2023, uma mulher é assassinada a cada seis horas no
Brasil. Em 2021 foram 2.695 homicídios dolosos de mulheres, sendo 1.341 casos
de feminicídio. A casa continua sendo o lugar mais perigoso: 60,9% dos
feminicídios ocorrem no ambiente doméstico. A Lei Maria da Penha, de 2006, e a
tipificação do feminicídio em 2015 representaram avanços legais importantes,
mas os números persistem elevados, mostrando que a transformação cultural é um
processo longo e complexo.
Desde
então, muitas pessoas se familiarizaram com palavras como “patriarcado” e
“feminicídio”. O universo do micromachismo entrou sob a lupa. Para que isso
acontecesse, não foi preciso ser feminista. O que se massificou foi o incômodo
diante de papéis desiguais.
Por
outro lado, a grande conquista institucional foi a Lei de Interrupção
Voluntária da Gravidez (IVE), aprovada na Argentina em 2020. A Marea Verde de
2018, com dois milhões de mulheres nas ruas usando lenços verdes, preparou o
terreno. Embora o Senado tenha rejeitado o projeto naquele ano, a Marea havia
colocado o tema “na mesa de jantar das famílias”.
A
consigna da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto – “anticoncepcionais para
não abortar, aborto legal para não morrer” – carregava a marca da igualdade,
pensando em todas as mulheres, não apenas nas que podiam pagar por sua decisão.
Durante a pandemia, sem grandes mobilizações, a lei foi finalmente aprovada,
resultado do caudal político acumulado desde 2015.
O
cenário brasileiro é mais restritivo. O aborto é legal apenas em casos de
estupro, risco de vida para a gestante e anencefalia fetal. Mesmo nesses casos,
o acesso é limitado pela escassez de serviços públicos e pela resistência de
profissionais de saúde. O feminismo brasileiro, inspirado pela experiência
argentina, mantém a luta por ampliação dos direitos reprodutivos, enfrentando
um contexto político ainda mais conservador.
Entre
2021 e 2023, algo mudou. O feminismo, que durante os primeiros anos foi bem
recepcionado e até celebrado pela política e sociedade, começou a incomodar.
Multiplicaram-se as vozes dizendo que o feminismo foi “longe demais” ou que “um
excesso”.
As
acusações variavam: que o feminismo se converteu em vigilância e controle, que
as feministas eram responsáveis pela radicalização da direita. Todas formas de
rejeitar um imaginário, uma linguagem e um modo de fazer feminista que havia se
enraizado.
A
chegada de Jair Bolsonaro ao poder no Brasil (2019-2022) e de Javier Milei na
Argentina (desde 2023) representou uma reação direta aos avanços feministas.
Bolsonaro atacou constantemente as políticas de gênero, cortou orçamentos de
programas de combate à violência contra mulheres e promoveu um discurso que
naturaliza desigualdades.
Na
Argentina, Milei foi ainda mais explícito. O Ministério de Mulheres, Gêneros e
Diversidade foi rebaixado a subsecretaria, com redução drástica de pessoal.
Programas como o Acompañar, que assistia economicamente vítimas de violência de
gênero, foram cortados. O ministro da Justiça insiste que o feminicídio não
requer figura legal específica, mostrando incompreensão da problemática e das
obrigações internacionais assumidas pelo país.
Como
analisa a socióloga argentina Luci Cavallero, “o governo atual encontra no
feminismo um movimento que põe em crise o modelo de sociedade que eles têm
pensado para a Argentina, acompanhado de um plano global com maior
extrativismo, individualismo e concentração da riqueza”.
Apesar
de todos os avanços, os dados da violência machista se mantiveram altíssimos.
Segundo o Observatório de Femicídios Adriana Marisel Zambrano, foram
registradas na Argentina 109 vítimas de violência de gênero entre janeiro e
maio de 2025. Como sempre, 67% foram assassinadas em seus lares. O lugar que
deveria ser mais seguro continua sendo o mais perigoso.
Assim
como no Brasil, o país ocupa a quinta posição no ranking mundial de
feminicídios, segundo dados da ONU Mulheres. A cada dia, em média, quatro
mulheres são assassinadas por questões de gênero. Durante a pandemia, os casos
de violência doméstica aumentaram significativamente, evidenciando como crises
sociais amplificam vulnerabilidades já existentes.
Diante
da ofensiva conservadora e do agravamento das condições socioeconômicas, muitas
feministas redirecionaram seus esforços. O feminismo popular busca respostas
concretas às necessidades que o capitalismo não consegue satisfazer.
Este
feminismo põe a vida no centro – a vida humana e a dos ecossistemas. Reconhece
que as principais demandas estão vinculadas diretamente às demandas gerais do
povo, considerando que as mulheres estão sendo parte de processos de ajuste e
precarização que tornam quase utópico imaginar saída de situações de violência
quando aluguéis estão desregulados e alimentos não chegam às panelas populares.
Em
2025, o movimento feminista argentino tomou uma decisão estratégica: a
tradicional marcha do 3 de junho se passou para o dia 4, unindo-se às lutas de
aposentados, trabalhadores da saúde, pessoas com deficiência, cientistas e
todos os afetados pelas políticas de austeridade.
Silvia
Fernández, do coletivo Ni Una Menos, enfatiza: “Uma das estratégias é apontar
para a unidade para enfrentar o governo nacional. Mais do que nunca, os
feminismos temos que nos sentar para debater, produzir teoria política, nos
organizar melhor e pensar estratégias que gerem uma alternativa ao governo
atual”.
Essa
articulação também se fortalece no Brasil. Movimentos como a Marcha Mundial das
Mulheres Negras, que pretende levar um milhão de mulheres às ruas de Brasília
em novembro, e coletivos de mulheres periféricas constroem pontes entre a luta
feminista e outras demandas sociais, reconhecendo que a violência de gênero se
entrelaça com o racismo, o classismo e outras formas de opressão.
A
ofensiva conservadora tem encontrado resistência, mas também expõe riscos
crescentes. Agora mesmo, no início de junho, 2025, todas as deputadas estaduais
da Assembleia Legislativa de São Paulo receberam, simultaneamente, um e-mail
com ameaças de estupro e morte – uma tentativa explícita de silenciar mulheres
em espaços de poder. O ataque, marcado por misoginia, racismo e capacitismo,
evidencia o quanto a violência política de gênero permanece como um obstáculo à
participação plena das mulheres na democracia.
Casos
como esse mostram que a luta permanece urgente e profundamente conectada às
estruturas de poder que o movimento Ni Una Menos se propôs a desafiar. Dez anos
depois, permanece a convicção de que a violência que se sofre não é um problema
‘privado’ nem de poucas.
Ni Una
Menos se transformou em uma “senha” popular: ni una menos sem trabalho, ni una
menos sem moradia. Como analisa o próprio movimento, nunca se tratou apenas da
violência patriarcal, mas da desigualdade, das relações de poder no trabalho,
do entrelaçamento específico entre opressão de gênero e exploração de classe.
O que
continua vivo, depois de todo esse tempo, é a vontade – a necessidade – de
transformar.
Fonte:
Carolina Althaller, em Le Monde

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