Desde
a Grécia Antiga, as pessoas lutam pela verdadeira liberdade contra os ricos
Liberdade
é vida”, dizia uma faixa em um protesto recente contra as medidas de saúde
pública adotadas para reduzir o impacto da pandemia. De fato, esse se tornou um
tema constante durante a pandemia, à medida que o movimento contra vacinas e
medidas de saúde pública reivindicava o manto da “liberdade”. Em resposta, a
esquerda apontou que nossa liberdade individual depende da solidariedade
social, argumentando que as medidas públicas são necessárias para preservar
nosso direito à saúde.
Em jogo
estão duas definições opostas de liberdade — e esse conflito não é novo. Em seu
livro recente, Freedom: Na Unruly History, Annelien de
Dijn ajuda a lançar luz sobre esses significados frequentemente contraditórios
do termo. Trata-se de uma história abrangente da ideia de liberdade no
Ocidente, desde a Grécia Antiga até os dias atuais.
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Liberdade democrática
“Durante
séculos”, escreve de Dijn, “os pensadores e atores políticos ocidentais
identificaram a liberdade não com ser deixado sozinho pelo Estado, mas com
exercer controle sobre a maneira como alguém é governado”. Como isso sugere, de
Dijn distingue entre dois tipos de liberdade: “liberdade de” versus “liberdade
para”, ou, como às vezes são denominadas, liberdade negativa versus liberdade
positiva.
“Liberdade
de” é o tipo de liberdade mais frequentemente utilizado pela direita
reacionária e de governo pequeno. Os defensores do capitalismo invocam
regularmente esse tipo de liberdade negativa para justificar a
desregulamentação do trabalho, a revogação de leis de saúde e segurança ou a
redução do salário mínimo. Os fundamentalistas do livre mercado a citam para
justificar a desregulamentação dos mercados financeiros. E os conservadores
cristãos reivindicam liberdade negativa ao argumentar que a intolerância de
inspiração religiosa deveria ser isenta das leis antidiscriminação.
O
instigante livro de de Dijn rompe com essa retórica ao explicar como essa
concepção negativa de liberdade surgiu há relativamente pouco tempo, como uma
forma de combater as lutas populares pela liberdade de participar democrática e
ativamente na política.
Na
Grécia Antiga, e mais tarde em Roma, a liberdade era definida em oposição à
escravidão. Ser escravo era não ser livre; significava não ter voz nem poder
sobre o próprio futuro. Quando os gregos antigos “se referiam a si mesmos como
livres”, escreve de Dijn, “queriam dizer que, ao contrário dos súditos do
Grande Rei Persa, não eram governados por outros, mas governavam a si mesmos”.
É isso que ela descreve como uma “concepção democrática de liberdade”.
Esta é
a base da “liberdade para”, ou liberdade positiva, uma concepção de liberdade
que de Dijn traça como um fio condutor em todos os debates subsequentes sobre o
termo. Começando na Grécia Antiga e continuando na República Romana, essa noção
de liberdade democrática começou a declinar à medida que o cesarismo
transformava Roma em um império.
Muito
mais tarde, pensadores renascentistas como Nicolau Maquiavel reviveram o significado
democrático e positivo da liberdade. À medida que as grandes revoluções do
século XVIII nos Estados Unidos e na França estabeleciam novos governos
republicanos, as massas lutavam pela “liberdade” de dirigir seus governos
novamente. No final do século XIX e início do século XX, os movimentos pela
conquista do sufrágio universal mantiveram viva a ideia de liberdade
democrática. A narrativa da autora termina com o período pós-Segunda Guerra
Mundial e a transição para o século XXI, durante o qual o conceito de liberdade
positiva declinou lentamente à medida que o neoliberalismo se tornava
hegemônico.
Essa
narrativa histórica abrangente é um dos pontos fortes do livro. Ela permite que
de Dijn mostre como um pensador individual — como Maquiavel — pode ser situado
em sua época e também inserido em um contexto histórico muito mais amplo.
Mostra
também como a noção de liberdade democrática se desenvolveu e se aprofundou ao
longo do tempo. Por exemplo, Maquiavel adotou uma abordagem mais analítica da
liberdade em Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio do
que os historiadores da Grécia e Roma Antigas, como Heródoto. Como demonstra de
Dijn, isso importa — os preceitos de Maquiavel tiveram um “impacto
considerável” nas abordagens subsequentes da liberdade e das instituições
políticas.
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A ascensão da “liberdade de”
Segundo
de Dijn, as grandes revoluções dos séculos XVII e XVIII também deram origem a
uma forma de liberdade fortemente oposta à concepção democrática defendida por
pensadores democratas e republicanos. A “liberdade de”, ou liberdade negativa,
surgiu em oposição às formas democráticas e representativas de governo
estabelecidas nos Estados Unidos, Inglaterra e França.
De
acordo com de Dijn, o período de Terror sob Maximilien Robespierre, durante a
grande Revolução Francesa, estimulou o desenvolvimento da liberdade negativa e
foi em grande parte motivado por medos da elite de uma redistribuição
democrática da riqueza.
Depois
disso, a concepção negativa de liberdade cresceu e se desenvolveu durante os
anos 1800, até o século XX, quando foi defendida por pensadores como Isaiah
Berlin, que, de acordo com de Dijn, “introduziu uma nova ideia: a de que a
liberdade negativa era a própria essência da civilização ocidental”.
No
entanto, esse desenvolvimento da “liberdade de” não foi totalmente desprovido
de valor. Ele aponta para um paradoxo no cerne da liberdade democrática — a
saber, que a maioria pode oprimir a minoria. De Dijn dá um exemplo desse
problema no início de seu livro, ao relatar como a antiga democracia ateniense
decidiu democraticamente executar o filósofo Sócrates.
Em nome
da proteção das minorias contra a maioria, contudo, a “liberdade de” permitiu
que tiranias minoritárias crescessem e prosperassem. Isso ajuda a explicar por
que a liberdade negativa é particularmente útil para membros da classe
proprietária com acesso a um poder econômico extraordinário que a maioria das
pessoas não possui.
Para
ilustrar o argumento, de Dijn cita um antigo tratado antidemocrático de Atenas,
a Constituição dos Atenienses. Embora o autor permaneça anônimo, os
historiadores se referem a ele como “o Velho Oligarca”.
Neste
texto, o autor afirma que a maioria pobre de Atenas governava em seu próprio
interesse e usava o Estado para redistribuir riqueza, de modo que os pobres “se
tornassem ricos e os ricos, pobres”. De fato, em Democracy: A Life [Democracia:
Uma Vida], o professor Paul Cartledge argumentou que a democracia ateniense é
melhor compreendida como um exemplo da ideia de Lênin da “ditadura do
proletariado” e representava uma concepção mais democrática de liberdade.
A
comparação é pertinente. No auge da democracia ateniense, o Estado redistribuiu
riqueza para promover a participação democrática. A república ateniense
garantiu que os trabalhadores pobres pudessem participar das decisões
democráticas, pagando-lhes para participar das assembleias cidadãs. Os
atenienses também experimentaram outras formas de democracia, incluindo a
eleição por sorteio (ou seja, por loteria). Os cidadãos eleitos para cargos
governamentais recebiam uma recompensa, permitindo-lhes deixar seus empregos
cotidianos durante o mandato.
É
importante destacar que de Dijn traça como a Velha Oligarquia — que foi
derrubada pela democracia ateniense — temia o poder redistributivo da
democracia política. Desde a Atenas Antiga até hoje, esse medo tem sido uma
constante no pensamento reacionário.
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Direitos humanos
Há uma
lacuna óbvia no livro de de Djin, ligada aos dois tipos de liberdade que ela
aborda: o papel desempenhado pelos direitos humanos desde o fim da Segunda
Guerra Mundial.
A
Declaração dos Direitos Humanos inclui tanto a liberdade positiva, democrática,
quanto a negativa, a “liberdade de”. Por exemplo, o Artigo 21 afirma que toda
pessoa tem “o direito de participar do governo de seu país”, o que, como vimos,
implica uma concepção democrática de liberdade. Em contrapartida, o Artigo
17(2) afirma que “ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade”, o
que impõe restrições ao governo popular em consonância com a “liberdade de”.
Em um
nível mais amplo, a ideia de direitos humanos influencia profundamente as
discussões contemporâneas sobre liberdade. Tipicamente, aqueles que lutam
contra governos repressivos e antidemocráticos têm se baseado na retórica dos
direitos humanos — por exemplo, na Rússia de Putin. Cada vez mais, porém, a
direita reacionária e os conservadores cristãos afirmam defender a liberdade
contra governos democráticos e representativos. Por exemplo, eles alegam que
impostos ou leis que proíbem a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ são uma
violação de sua liberdade de propriedade e de consciência, respectivamente.
Esses desenvolvimentos influenciaram ainda mais a maneira como a esquerda pensa
sobre liberdade, e a narrativa histórica de de Dijn teria se beneficiado ao
incluí-los.
Em
defesa de de Dijn, no entanto, ela se esforça para destacar as limitações das
formas históricas de liberdade. Ela deixa claro que os sistemas políticos
históricos construídos em torno da liberdade democrática ainda excluíam muitas
pessoas. Por exemplo, a República Ateniense negava liberdade a escravos,
mulheres e homens não atenienses.
Freedom:
An Unruly History é
um livro excelente que captura o alcance de mais de 2.500 anos de debate
ocidental sobre a natureza da liberdade política. É claro que esse escopo
impede um foco detalhado em qualquer período histórico particular. Ao mesmo
tempo, porém, a visão de longo prazo de de Deijn ajuda a fundamentar concepções
divergentes — e deficientes — de liberdade nas realidades políticas das quais
surgiram.
Essa
amplitude histórica ajuda a mostrar que, embora uma forma de liberdade
antidemocrática e elitista possa estar em ascensão, esse é um desenvolvimento
relativamente novo que surgiu em oposição à expansão sem precedentes da
liberdade democrática e do governo representativo a partir do século XVII.
Isso
deixa claro que só conquistaremos a liberdade econômica se conquistarmos maior
liberdade política. E embora isso signifique superar a “liberdade de”, de Dijn
nos lembra que só podemos construir uma liberdade política mais forte se a
estendermos às minorias — excluindo, é claro, os ultrarricos.
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Igualdade salarial ainda está distante
No
próximo dia 3 de julho, a Lei de Igualdade Salarial completa dois anos de
vigência. Ao sancionar a norma, o presidente Lula anunciou uma atuação firme
para acabar com as desigualdades e injustiças que ocorrem no mundo do trabalho
em prejuízo às mulheres. "Não existe essa de lei pegar ou não pegar. Na
verdade, o que existe é governo que faz cumprir a lei e governo que não faz
cumprir a lei. E nosso governo vai fazer cumprir", disse Lula, ao
sancionar a Lei nº 14.611/2023.
À
época, a então ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, deu um diagnóstico da
realidade brasileira. "Em plena segunda década do século 21, a mulher
ainda recebe, em média, 22% a menos do que o homem. E as mulheres negras
recebem menos da metade do salário dos homens brancos", observou.
De lá
para cá, o quadro apresentou poucos avanços. O 3º Relatório de Transparência
Salarial e Desigualdade, divulgado em abril, indicou o muro que separa homens e
mulheres quanto se trata de remuneração. O levantamento, feito a partir de
informações cedidas por 53 mil estabelecimentos privados com ao menos 100
empregados, concluiu que elas ganham em média 20,9% a menos do que os
trabalhadores do sexo masculino. A desvantagem é ainda maior em relação às
negras: o rendimento delas equivale a 47,5% do que ganham homens brancos.
Não
bastasse a perpetuação dessa injustiça social, a iniciativa de remunerar homens
e mulheres em valores iguais tornou-se um imbróglio no Judiciário. Tramitam no
Supremo Tribunal Federal duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra
determinados trechos da Lei de Igualdade Salarial. Argumentam, de um lado, que
a atual legislação desconsidera critérios de diferenciação salarial previstos
em lei, como tempo no exercício da função; de outro, obriga as empresas a
divulgarem dados que podem ser interpretados como política discriminatória ou
comprometem os princípios constitucionais da livre concorrência e da livre
iniciativa.
No
final de abril, a Procuradoria-Geral da República atendeu parcialmente às
reivindicações presentes nas ações que tramitam no Supremo. Entendeu que é
inconstitucional os Relatórios de Transparência Salarial divulgarem valores e
funções que permitam identificar o empregado, ainda que ele esteja anônimo.
Pontuou, ainda, que não cabe à Lei nº 14.611/2023 punir empresas que estipulam
diferenças salariais a partir de um programa de cargos e salários, em
conformidade com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
As
ações relativas à Lei de Igualdade Salarial estão sob relatoria do ministro
Alexandre de Moraes. Espera-se que os alegados ajustes ocorram, de modo que o
sentido maior da lei seja cumprido. A desigualdade no Brasil resulta de um
processo histórico, que levará gerações para ser corrigido. Combater a
iniquidade, valorizar a meritocracia e estabelecer mecanismos contra a
discriminação são princípios civilizatórios dos quais o país não pode
prescindir se quiser obter avanços sociais relevantes.
Fonte: Por Paul
Sutton – Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil/Correio Braziliense

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