Criação
de galinhas e farinha de mandioca: indígenas Munduruku buscam alternativas ao
garimpo
“Vamos
continuar enxugando gelo”, disse Toya Manchineri, referindo-se ao esforço do
governo federal para expulsar garimpeiros ilegais de dois territórios Munduruku
no Pará. Se os órgãos públicos não se mantiverem presentes após a operação, “o
governo vai colocar os garimpeiros para fora e eles vão voltar”, disse à
Mongabay o coordenador geral da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (Coiab), em entrevista por telefone.
Mas a
falta de vigilância territorial não é o único atrativo para os garimpeiros.
Segundo líderes indígenas, a precariedade da assistência de saúde e a falta de
apoio econômico também criam solo fértil para atividades ilegais, tornando os
indígenas dependentes da exploração de ouro.
Para
afastar de vez as comunidades do garimpo, indígenas e ONGs buscam fontes
alternativas de renda nas terras Munduruku. Os projetos em andamento focam na
produção de farinha de mandioca, no fortalecimento do artesanato e na criação
de galinhas caipiras, uma proteína alternativa aos peixes contaminados pelo
mercúrio na região. Sem projetos que gerem renda para as famílias, “tudo vai
continuar do mesmo jeito”, disse João Kaba, presidente da Associação Indígena
Pusuru.
Desde o
início do governo Lula, em janeiro de 2023, o governo federal realizou
operações para a retirada de invasores em oito territórios indígenas
localizados em quatro estados, incluindo as terras indígenas Yanomami em
Roraima e Arariboia no Maranhão. O caso mais recente é o da Terra Indígena
Kayapó, no Pará, cuja operação teve início na primeira semana de maio. Em
vários casos, as operações responderam a uma decisão do Supremo Tribunal
Federal que obrigou as autoridades a protegerem essas comunidades.
No caso
do povo Munduruku, as ações se concentraram nas Terras Indígenas Sai-Cinza e
Munduruku, que juntas formam uma área quase do tamanho de Alagoas onde vivem
mais de 11 mil indígenas. Localizados nos municípios de Jacareacanga e
Itaituba, conhecidos como o epicentro do ouro ilegal na Amazônia, esses
territórios têm uma presença histórica de garimpeiros.
Quando
a operação começou em novembro de 2024, as autoridades mapearam mais de 7 mil
hectares de minas ilegais e 21 pistas de pouso clandestinas. Após a ofensiva
policial, o número de minas ativas despencou para zero, de acordo com as
autoridades. As ações das forças federais desencadearam prejuízos no valor de
R$ 112,3 milhões aos garimpeiros, incluindo a aplicação de multas e apreensões
e destruição de maquinário. O governo prometeu manter o patrulhamento e o
monitoramento da região para evitar o retorno dos garimpeiros.
Líderes
indígenas, no entanto, estão céticos quanto à eficácia dessas medidas,
especialmente se não houver apoio dos órgãos públicos para oferecer novas
fontes de renda às comunidades. “Os garimpeiros aliciam as lideranças em troca
de combustível e cestas básicas”, disse Alessandra Korap, líder Munduruku e
presidente da Associação Indígena Pariri. “O governo simplesmente tirou o
garimpo, mas não trouxe comida, agricultura familiar, saúde, educação”, disse
ela à Mongabay em entrevista durante o Fórum Permanente das Nações Unidas sobre
Questões Indígenas, em Nova York.
Paulo
Basta, pesquisador do principal centro federal de pesquisa em saúde do Brasil,
a Fiocruz, afirma que é comum os garimpeiros presentearem lideranças com
geradores de energia ou motores de barco, ou até mesmo fornecerem socorro
durante emergências médicas. “Quando a mulher do cacique está doente, o
garimpeiro faz o translado até o hospital da cidade para fazer o atendimento”,
disse o médico, que coordena estudos sobre contaminação por mercúrio no
território Munduruku há mais de 10 anos. “O garimpo vai beneficiando algumas
lideranças em detrimento da comunidade que não quer o garimpo ali, e isso gera
conflitos sociais”.
Segundo
as lideranças, a longa convivência com os não-indígenas e a proximidade com os
centros urbanos também criaram novas necessidades de consumo na população
Munduruku, especialmente para os mais jovens. “Os indígenas caçam e pescam, mas
eles precisam comprar outras coisas porque não vivem mais como antes”, disse
Kaba à Mongabay por telefone. “Eles agora caçam com espingarda, não mais com
flechas. Às vezes, eles também precisam comprar arroz, óleo de soja, anzóis,
malhadeira e combustível para rodar o motor do barco”.
Seis
associações indígenas destacaram as mesmas preocupações em uma carta pública divulgada
em dezembro de 2024. Elas exigiram um plano pós-operação e investimentos para
que as regiões “abandonem o garimpo e atividades predatórias, fortalecendo
alternativas socioeconômicas”.
Segundo
Nilton Tubino, líder da força-tarefa federal nas terras Munduruku, uma pequena
minoria das comunidades está envolvida com a mineração ilegal. Às vezes, um
líder indígena cobra uma taxa para permitir que garimpeiros explorem uma área;
em outras situações, os indígenas servem como mão de obra, disse ele,
acrescentando que são raros os casos em que os indígenas administram uma
pequena mina de ouro.
“A
mineração é um atrativo. Eles pegam um jovem [Munduruku] e pagam a ele R$ 4
mil, R$ 5 mil, R$ 6 mil por mês. Não tem outra atividade econômica que pague
esse valor”, disse Tubino, destacando também “o acesso às coisas que os
garimpeiros dão, como celulares, armas e bebida”.
Em
comunicado à Mongabay, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) disse que o eixo
central da desintrusão é “a garantia da continuidade do Estado nos
territórios”. Segundo o ministério, a Terra Indígena Munduruku é um dos 15
territórios que receberão apoio para implantar projetos de gestão territorial e
ambiental, “a fim de promover proteção territorial, soberania alimentar,
geração de renda sustentável, fortalecimento institucional e preservação das
culturas e tradições indígenas”.
A Terra
Indígena Sai-Cinza, onde a operação também ocorreu, não faz parte do programa
federal. O MPI não detalhou os projetos a serem desenvolvidos nem quando eles
começarão a ser implementados. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai)
não respondeu aos pedidos de informação da Mongabay.
As
alternativas
Enquanto
isso, organizações indígenas lutam para encontrar suas próprias soluções com o
apoio da sociedade civil. As associações Pusuru e Pariri têm trabalhado para
fortalecer a produção de farinha de mandioca vendida nos mercados da cidade.
“É um
projeto no valor de R$ 45 mil para comprar equipamentos como um forno e um
motorzinho para ralar a mandioca. Mas são mais de 180 aldeias e conseguimos
doar só para 20 aldeias”, disse Kaba. “A gente precisa buscar mais projetos”.
Outra
iniciativa é a criação de galinhas caipiras, que podem ser vendidas fora da
comunidade e também servem como fonte alternativa de proteína na dieta dos
indígenas. Estudos da Fiocruz mostraram que o mercúrio usado pelos garimpeiros
contaminou os rios e os peixes consumidos pelo povo Munduruku; os testes
mostraram níveis alarmantes da substância. “Estamos fazendo o trabalho do
estado, perfurando poços, promovendo a criação de galinhas… porque a gente sabe
que os peixes estão contaminados, e querem nos proibir de comer peixes”, disse
Alessandra Korap.
A
Associação de Mulheres Munduruku Wakoborũn também está buscando alternativas. O
grupo produziu o documentário Awaydip Tip Imutaxipi (A Floresta Doente), que
mostra os impactos da mineração ilegal no território. As mulheres também estão
fortalecendo a Associação Poy, criada em 2022 para apoiar alternativas
econômicas sustentáveis. Segundo a Wakoborũn, o grupo trabalha com a coleta e
venda de óleo de copaíba, a venda de farinha de mandioca e o artesanato feito
com sementes coletadas na floresta; parte dessas chamadas biojoias são vendidas
em uma loja na cidade turística de Alter do Chão.
“A
associação procura uma solução, como projetos de plantação, criação de galinhas
e assim por diante”, disse Hidelmara Kirixi, uma das coordenadoras da
Wakoborũn, em entrevista por video chamada. “Mas alguns parentes acabam sendo
influenciados pelo garimpo por causa do dinheiro”.
O
escritório da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Drogas e Crime no
Brasil e a Comissão Pastoral da Terra apoiam as associações indígenas com o
Projeto Tapajós, criado em 2021 para prevenir que comunidades tradicionais
trabalhem nos garimpos em condições análogas à escravidão. Segundo a ONU, o
projeto beneficiou 190 famílias Munduruku com a implementação de aviários e
casas de beneficiamento de farinha, ofereceu cursos de formação para a criação
de associações voltadas para a bioeconomia e agrofloresta, além de ter apoiado
a reestruturação de um centro de artesanato indígena na aldeia Praia do Índio,
no centro de Itaituba.
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As promessas dos créditos de carbono
O
garimpo não é a única atividade que empurra os indígenas para perto de
organizações criminosas que destroem suas florestas, afirmam as lideranças.
Madeireiros ilegais, pecuaristas e grileiros também estão constantemente
ameaçando as lideranças e invadindo territórios tradicionais na Amazônia, que
virou foco do crime organizado.
“A
grande maioria [dos indígenas] que se junta ao garimpo ou narcotráfico são
jovens que precisam de apoio para comprar as coisas que eles querem. É muito
fácil entrar nessa jogada quando te oferecem um recurso que parece muito
fácil”, disse Manchineri, da Coiab. Segundo ele, a organização tem trabalhado
para evitar esse tipo de recrutamento por meio do fortalecimento das
associações indígenas locais e das identidades culturais e econômicas das
comunidades. “O que a gente trabalha com as comunidades é que não é preciso
inventar a roda. Se a comunidade trabalha com artesanato, por exemplo, então
vamos fortalecer o que a comunidade já faz”.
Empresas
de crédito de carbono também aumentaram o assédio aos indígenas nos últimos
anos, oferecendo dinheiro para assinar contratos de longo prazo. Em troca,
obtêm o direito de vender os créditos gerados a partir daquela área de
floresta. No entanto, o que poderia ser uma fonte de renda sustentável, em
muitos casos tem se mostrado um negócio controverso. Contratos injustos e
acordos assinados às pressas, sem consultar toda a comunidade, levaram a
disputas em territórios como o Kayapó e o Alto Rio Guamá, no Pará, e
Parintintin, no Amazonas.
“Os
governos dos estados veem o crédito de carbono como se isso fosse resolver a
situação dos territórios, mas não resolve”, disse Manchineri. “É um pequeno
recurso, então tem que ter várias outras iniciativas para fortalecer as ações
nos territórios indígenas”.
No
Pará, o governador Helder Barbalho assinou um contrato de R$ 1 bilhão para
vender créditos de carbono a uma coalizão internacional dos governos dos EUA,
Reino Unido e Noruega. Barbalho prometeu compartilhar parte dos lucros com as
comunidades tradicionais, mas o Ministério Público Federal no Pará ingressou
com uma ação para cancelar o acordo, sob o argumento de que a lei brasileira
proíbe a venda antecipada de créditos e que a fixação de um preço para os
créditos em contrato “pressiona o processo de aprovação do sistema e gera
assédio às comunidades afetadas”.
A
questão divide os líderes Munduruku. Alessandra Korap, por exemplo, denunciou
consistentemente as abordagens de empresas de crédito de carbono. Em 2024, ela
foi uma das signatárias de uma carta repudiando o contrato do governo do Pará:
“é inaceitável que o governo do estado do Pará tome decisões sem consultar as
comunidades tradicionais, que são as maiores protetoras das florestas”.
Outros
líderes, no entanto, veem os créditos de carbono como uma alternativa econômica
promissora. “Mais da metade dos caciques das aldeias se interessaram pelo
projeto do estado do Pará”, disse Kaba, referindo-se às 180 aldeias da
Associação Pusuru. “Vivemos na floresta, e os satélites mostram que a floresta
está bem protegida. Mas os satélites não veem as pessoas que estão lá na
floresta. E, muitas vezes, não sabem como essas pessoas estão, do que precisam,
se estão comendo bem, se têm alguma renda”.
Fonte:
Mongabay

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