Congresso
protege o 'andar de cima' ao resistir a alta de impostos de Haddad, diz
economista
As
propostas de aumento de impostos encaminhadas ao Congresso pelo ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, "afetam muito mais quem está no andar de cima",
afirma Bráulio Borges, economista-sênior da consultoria LCA e
pesquisador-associado da FGV.
Na sua
leitura, a resistência do Parlamento em aprovar as medidas reflete tanto
lobbies econômicos de setores interessados em manter seus privilégios, como
cálculos políticos dos congressistas.
"Eu
acho que tem isso [lobbies econômicos], mas, obviamente, tem o Congresso também
querendo aumentar o preço do apoio ao governo, vendo que o governo hoje está
enfraquecido, vide as pesquisas mais recentes de popularidade", disse, em
entrevista à BBC News Brasil.
O
"preço" que o Congresso tem cobrado é a liberação de emendas
parlamentares, recursos que deputados e senadores destinam para suas bases
eleitorais. Os valores previstos para 2025 somam R$ 50 bilhões, mas quase nada
foi liberado até o momento pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
Além
dessa pressão de curto prazo, os congressistas também estão de olho na eleição
de 2026, avalia o economista.
"Sejamos
sinceros, boa parte das lideranças hoje do Congresso não tem interesse que o
atual governo chegue em 2026 muito competitivo".
O
objetivo da alta de impostos proposta por Haddad é equilibrar as contas
públicas. A Fazenda propôs, primeiro, elevar o IOF (Imposto sobre Operações
Financeiras). Com a resistência do Congresso, o governo tenta manter uma
elevação menor do IOF e tributar em 5% Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e
as Letras de Crédito do Agronegócio (LCAs), investimentos financeiros que hoje
são isentos.
Em
recado ao Palácio do Planalto, a Câmara dos Deputados aprovou na noite de
segunda-feira (16/6) um requerimento de urgência que permite acelerar a
tramitação de uma proposta para barrar a alta do IOF.
O
presidente da Câmara, Hugo Motta, tem criticado fortemente as propostas. Ele
diz que a sociedade não quer mais tributos, mas que o governo corte gastos, e
defendeu uma reforma administrativa para reduzir o custo com servidores.
Borges
concorda que o governo precisa adotar mais medidas de contenção de gastos, mas
diz que "irrita ver o Congresso querendo posar como se fosse o adulto na
sala, sendo que o Congresso, do ponto de vista do equilíbrio fiscal, atrapalhou
muito".
O
economista lembra que o Parlamento aprovou, contra a vontade do governo,
benefícios tributários para empresas que desfalcaram a arrecadação, como as
prorrogações de um programa emergencial criado para o setor de eventos na
pandemia (Perse) e da desoneração da folha de pagamentos, uma política de
emprego ineficiente, segundo estudos econômicos.
O
Congresso não só manteve a desoneração de empresas, como estendeu o benefício a
pequenos municípios no final de 2023, uma medida "eleitoreira", na
visão de Borges.
As duas
medidas (Perse e desoneração) representaram uma renúncia de receita de quase R$
50 bilhões no ano passado.
Ele diz
ainda que a reforma administrativa é importante para melhorar o serviço
público, mas que faria apenas "cocegas" na questão fiscal, ao gerar
uma economia de até R$ 3 bilhões.
Muito
mais eficiente, argumenta, seria reduzir as emendas parlamentares, que mais que
quadruplicaram a partir de 2020.
"É
uma excrescência. As emendas parlamentares não eram para estar nos R$ 50
bilhões por ano. Eram para estar em R$ 10 bilhões, que é mais ou menos a média
que a gente teve de 2015 a 2019", crítica.
Confira
a seguir os principais trechos da entrevista, editada por clareza e concisão.
• Hugo Motta e outras lideranças do
Congresso acusam o governo de gastar demais e empurrar a conta para os
contribuintes. Isso é verdade?
Bráulio
Borges - O arcabouço fiscal [proposto pelo governo Lula e aprovado pelo
Congresso em 2023] definiu um limite de crescimento real da despesa um pouco
exagerado, de 2,5% ao ano. É elevado porque as estimativas apontam que o
crescimento do PIB potencial brasileiro está na faixa de 2% a 2,5%.
O ideal
seria que o crescimento das despesas ficasse um pouco abaixo do PIB potencial,
porque temos déficit fiscal. Se a gente estivesse com superavit, seria outra
história.
Outro
problema é que o arcabouço fiscal não limita o crescimento de cada uma das
despesas do governo a esse teto. Então, a despesa previdenciária,
principalmente com a regra de reajuste real do salário-mínimo, cresce perto de
4%.
E isso,
naturalmente, cria uma pressão dentro dos gastos. Você tem que comprimir outras
despesas, dado que algumas coisas crescem acima do limite, como previdência,
mesmo a parte de saúde, educação.
Em dito
isso, primeiro, o Congresso aprovou o arcabouço fiscal. E, segundo, o Congresso
tem dado seguidas mostras de não estar preocupado com o reequilíbrio fiscal.
Um
ajuste fiscal é bem-sucedido quando você melhora as contas do governo, não
machuca tanto o PIB e reduz a dívida pública. E a experiência internacional
mostra que o ajuste fiscal bem-sucedido é composto, mais ou menos, de metade de
aumento receita, metade de corte de gastos.
Nesse
sentido, o governo atual estava certo de falar "precisamos recompor as
receitas", inclusive porque teve muita desoneração eleitoreira mesmo, ali
em 2021, 2022. E o governo começou a recompor essas receitas, em parte,
inclusive corrigindo algumas distorções e algumas isenções tributárias que não
faziam mais sentido.
Só que
foi um esforço meio de enxugar gelo porque o governo fazia uma coisa, o
Congresso ia lá e desonerava outra.
• Como o Congresso tem atrapalhado o
ajuste fiscal?
Bráulio
Borges - A desoneração da folha de pagamentos e o Perse [Programa Emergencial
de Retomada do Setor de Eventos, criado na pandemia] juntos, no ano passado,
representaram uma renúncia de receita de quase R$ 50 bilhões. E o governo
federal já tinha dito no final de 2023 que não queria prorrogar essas medidas,
inclusive porque não fazia sentido.
O Perse
era um programa emergencial para a pandemia. Em 2023 e 2024, a economia já
estava plenamente recuperada.
E a
desoneração da folha foi criada lá em 2011/2012, no governo Dilma Rousseff, num
contexto em que o setor industrial estava sofrendo muito com a concorrência de
importados, porque o câmbio estava em R$ 1,50. Então, você tentou dar alguma
competitividade desonerando o custo salarial.
Só que
o câmbio hoje no Brasil está excessivamente desvalorizado. O contexto é
totalmente diferente. E mais: tem inúmeros estudos mostrando que a desoneração
é uma política cara. O custo de cada emprego gerado é muito maior do que o
salário que as pessoas estão recebendo.
A
desoneração da folha não faz mais sentido, ainda mais num país que já está com
o desemprego super baixo. Mas o Congresso foi lá, não somente prorrogou por
mais alguns anos, como ampliou para [servidores contratados pelo regime do INSS
em] pequenos municípios, obviamente, de olho nas eleições municipais que
aconteceram no ano passado. É uma medida totalmente eleitoreira.
Então,
me irrita ver o Congresso querendo posar como se fosse o responsável na casa, o
adulto na sala, sendo que o Congresso, do ponto de vista do equilíbrio fiscal,
atrapalhou muito.
E ainda
tem a história das emendas parlamentares, que é uma excrescência. Tem um estudo
muito bem feito do Marcos Mendes, com o pessoal do Insper, mostrando que o
Brasil está totalmente fora do que se vê na maior parte dos países.
As
emendas parlamentares não eram para estar nos R$ 50 bilhões por ano. Eram para
estar em R$ 10 bilhões por ano, que é mais ou menos a média que a gente teve de
2015 a 2019.
Se a
gente voltasse para a média de emendas de antes dessa explosão que aconteceu
ali, em 2020, quando o Bolsonaro, para evitar o impeachment, entregou de vez
essa parte grande do orçamento para o Congresso, a gente teria uma economia de
R$ 40 bilhões. Já ajudaria a fechar as contas desse e do próximo ano.
• Hugo Motta tem cobrado a redução
estrutural de despesas e tem defendido a reforma administrativa. Qual sua
avaliação?
Bráulio
Borges - Uma reforma administrativa não vai gerar a economia fiscal de dezenas
de bilhões de reais [que é necessária]. Eu sou a favor de uma ampla reforma
administrativa no Brasil, para aumentar a eficiência do setor público. Para
evitar aquelas situações típicas de uma pessoa chegar no auge da carreira com
dez anos de emprego público e aí ela fica praticamente acomodada.
E é uma
reforma que tem que acabar com os privilégios, principalmente no Judiciário.
Mas quem faz as contas vê que, se a gente corrigisse todos esses privilégios
adquiridos, a gente economiza R$ 2 bilhões, R$ 3 bilhões por ano. É importante?
Super. Mas não é isso que vai resolver os problemas fiscais do Brasil.
Eu vejo
as lideranças do Congresso defendendo a reforma administrativa, como Arthur
Lira, Hugo Motta, e isso encontra inclusive ressonância no mercado financeiro
como se fosse uma panaceia do ponto de vista do ajuste fiscal, e não é.
Seria
muito mais efetivo voltar as emendas para o nível de 2015-2019. Do ponto de
vista de ajuste fiscal, a reforma administrativa faz cócegas.
• A culpa do Congresso na crise fiscal é
maior do que a do governo?
Bráulio
Borges - Eu acho que a responsabilidade é compartilhada. Agora, o Congresso tem
dado muitas bolas nas costas do ajuste.
Eu acho
que o primeiro grande desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal no Brasil,
que começou a valer em 2000, se deu no final de 2007, quando o Congresso
extinguiu a CPMF, à revelia da vontade do Executivo, e não aprovou nenhuma
medida de compensação. Isso desrespeitou o artigo 14 da Lei de Responsabilidade
Fiscal, que diz que, para toda medida de desoneração permanente, você tem que
apontar uma medida de compensação.
A CPMF
era um imposto ruim, do ponto de vista da eficiência econômica, mas era
importante do ponto de vista do equilíbrio fiscal. Arrecadava 1,2% do PIB por
ano. A gente estaria falando hoje de uma arrecadação da ordem de R$ 120
bilhões, R$ 130 bilhões por ano.
A LRF,
criada justamente para tentar responsabilizar os governantes e os políticos por
medidas que atuam contra a responsabilidade fiscal, na prática, ela
responsabiliza basicamente só o Executivo e, muitas vezes, só o Executivo
federal. O Legislativo e o Judiciário não são devidamente responsabilizados por
medidas que acabam contribuindo negativamente para a sustentabilidade das
contas públicas.
Acho
que a gente precisa modernizar e reavaliar a LRF, para incorporar essa maior
responsabilização de todos.
• O difícil é o Congresso aprovar uma lei
pra aumentar a responsabilidade do Congresso.
Bráulio
Borges - Exatamente.
• Ao defender o aumento do IOF e de
impostos sobre títulos financeiros, Haddad argumenta que as medidas atingem o
andar de cima, os mais ricos. Qual sua visão?
Bráulio
Borges - Boa parte das medidas que a equipe econômica anunciou, de fato, afetam
muito mais quem está no andar de cima do que quem está no andar de baixo.
E digo
mais, algumas medidas ajudam o Banco Central na tarefa conjuntural de esfriar a
economia brasileira, que hoje está num quadro de superaquecimento. Por exemplo,
essa história de colocar uma taxação em LCA e LCI.
Essa
explosão na emissão desses títulos no mercado de capitais está diminuindo a
potência da política monetária. Desde 2021, o Banco Central do Brasil está
tentando segurar o crescimento da economia brasileira. Só que a explosão nesses
instrumentos atua na direção oposta, jogando lenha na fogueira do setor
imobiliário, mesmo no setor agro.
E, se a
política monetária está perdendo potência, a Selic tem que subir mais. Chegou
um nível de taxa Selic que a gente não via há uns dez anos.
• A reação contra a alta do IOF e a
tributação desses títulos são setores defendendo seus interesses e privilégios?
Bráulio
Borges - Eu acho que tem isso, mas, obviamente, acho que tem o Congresso também
querendo aumentar o preço do apoio ao governo, vendo que o governo hoje,
conjunturalmente, também está enfraquecido, vide aí as pesquisas mais recentes
de popularidade.
E, ao
mesmo tempo, tem eleições ano que vem. Sejamos sinceros, boa parte das
lideranças hoje do Congresso não tem interesse que o atual governo chegue em
2026 muito competitivo.
Então,
tem um pouco isso, e tem os setores, sim, defendendo os interesses. Por
exemplo, quando o agro vai lá e diz que taxar LCA em 5% vai aumentar o preço de
alimento, sendo que, na prática, pagava zero antes e todos os outros títulos
pagam 20%, 15% [de impostos].
Ou
seja, não é que o setor vai deixar de ter um benefício, é que o benefício vai
ser menor do que era antes. E aí já ameaça dizendo que vai aumentar o preço dos
alimentos, enfim, isso aí é obviamente o setor querendo manter seus benefícios.
Então,
tem sim essa reação dos interesses organizados que, obviamente, encontra
respaldo nas lideranças do Congresso. E como a gente bem sabe, os lobbies estão
muito bem representados no Congresso, enquanto o interesse difuso tem uma
dificuldade enorme. Muitas vezes, quem tenta defender o interesse difuso ou é o
Executivo ou é o Ministério Público.
• Se não houver aumento de impostos, o
governo vai quebrar em 2026?
Bráulio
Borges - Na verdade, ele precisa disso para fechar as contas de 2025, 2026 é
outra história.
Se ele
não conseguir aprovar o IOF, vai ter que buscar receita atípica [que não se
repete no ano seguinte]. Já se falou de fazer leilão de campo de petróleo, que
poderia arrecadar R$ 15 bilhões a 25 bilhões. É uma receita que ajuda a fechar
as contas desse ano, mas é altamente incerta. Enquanto ela não vier, o governo
tem que contingenciar as despesas discricionárias [de uso livre],
principalmente o PAC. Obviamente, a ala política do governo não gosta da ideia.
Surgiu
também uma ideia de receita atípica com a prorrogação antecipada das concessões
de várias usinas hidrelétricas que estão para vencer nos próximos dois, três
anos, que poderia render, nas contas que eu vi, algo em torno de R$ 13 bilhões
a 15 bilhões.
Então,
na prática, alguma fonte de financiamento ele vai ter que achar. O governo
propôs o IOF porque é um imposto regulatório: aumenta e diminui por decreto, e
tem vigência imediata. E poderia aumentar a receita nesse ano e no próximo, não
é uma coisa pontual de 2025 [como as receitas atípicas].
Algumas
medidas que o governo está propondo de IR sobre LCA e LCI [pra substituir a
alta do IOF] só vão valer a partir do ano que vem, se o governo conseguir
aprovar.
• Sem essas medidas, vai faltar dinheiro
pra despesas essenciais, como o SUS?
Braúlio
Borges - As políticas que podem ser mais prejudicadas por esse shut down
[desligamento do governo], vamos dizer assim, são aquelas que são financiadas
por verbas discricionárias.
E o SUS
não é o caso, o SUS tem um mínimo constitucional [de previsão de despesas],
educação tem um mínimo constitucional. O que pode ser prejudicado é
investimento do PAC, porque é verba discricionária. Uma parte das emendas
parlamentares também pode ser cortada. Obviamente que o Congresso não vai
gostar, mas uma parte das emendas não tem execução obrigatória, então pode ser
cortado.
E tem
algumas políticas públicas que são financiadas com despesa discricionária.
Farmácia Popular é uma delas, a emissão de passaporte. O governo pode ter
dificuldade para pagar a conta de luz, talvez ter que falar para as pessoas
trabalharem de casa, [isso pode aumentar a] fila do INSS. Tudo isso pode ser
afetado caso o governo não consiga uma receita extra para fechar as contas.
Isso
partindo do pressuposto de que o governo vai fazer de tudo para cumprir a meta
fiscal. Ele pode optar por não cumpria a meta fiscal.
• E aumentar a dívida pública?
Bráulio
Borges – E aí o impacto vai ser em termos de câmbio [alta do dólar], aumento do
risco país.
• Mas, se o governo não cumprir a meta
fiscal, o atual arcabouço tem gatilhos para limitar as despesas.
Bráulio
Borges – Tem, mas boa parte deles só vão valer em 2027. Depois das eleições.
Então, é aquela coisa, como boa parte do sistema político, inclusive parte
grande do pessoal do Executivo, está de olho nas eleições, se você deixar para
2027, o pessoal vai falar "tudo bem, depois a gente vê o que faz".
Isso
acontece porque só vamos saber se o governo cumpriu as metas de 2025 lá para
fevereiro ou março do ano que vem. As sanções mais pesadas, como não poder dar
reajuste para servidor, seriam somente em 2027.
• Lula tem cumprido muitos compromissos
fora do país. Falta uma atuação mais presente do presidente na crise entre
Fazenda e Congresso?
Bráulio
Borges – De fato, a impressão que a gente tem, não vou dizer que o Lula abandonou
o Haddad, mas que está dando muito menos apoio do que poderia e deveria. E
obviamente que isso é importante. O Haddad sozinho não tem a capacidade de
fazer a interlocução no Congresso.
E a
gente sabe que dentro do governo tem aquela ala mais política, que muitas vezes
bate de frente com o Haddad. Nesse sentido, acho que o apoio do Lula nessas
negociações seria crucial.
Fonte:
BBC News Brasil

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