terça-feira, 10 de junho de 2025

Agronegócio fica com quase todo dinheiro de programa de apoio à agricultura familiar

Os créditos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) têm sido predominantemente despejados no agronegócio convencional, em detrimento de agricultores familiares e comunidades tradicionais que produzem sociobiodiversidade, excluídos por regras que não condizem com a realidade em que vivem.

O programa oferece nove linhas de financiamento, com juros que variam entre 0,5% e 6% e valores financiáveis que podem chegar a R$ 420 mil por beneficiário.

O incentivo, no entanto, está quase todo confinado à cadeia produtiva do gado: em 2024, conforme dados do Banco Central, 91,7% dos créditos do Pronaf na Amazônia Legal foram para a pecuária convencional, contra apenas 8,3% para atividades agrícolas em geral – nesse caso, ainda assim prevalecem commodities, como soja e milho.

Quando se trata de produtos ligados à sociobioeconomia, o índice é ainda menor: 99% dos produtores de açaí, castanha, cacau nativo, óleos vegetais, fibras, pescados e outros produtos biodiversos disseram nunca ter acessado o crédito rural, de acordo com mapeamento da Conexsus, uma organização que incentiva negócios comunitários que contribuem para a preservação de florestas e biomas.

Um dos principais entraves é a exigência de documentos individuais, como o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para povos e comunidades que vivem e produzem em territórios coletivos. Isso impede que a maioria dos assentados da reforma agrária, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas e indígenas acessem o programa.

É o caso de 250 famílias que formam a comunidade remanescente de quilombo Caraíbas, situada na entrada do sertão sergipano, na confluência de cinco municípios: Canhoba, Aquidabã, Amparo de São Francisco, Telha e Cedro de São João. “Nossa terra é coletiva, com produção coletiva. Mas eles exigem documentos individuais, que a gente não tem. Quando vamos ao banco, já dão um ‘não’, sem chance de conversa. Levamos uma porta na cara, logo num primeiro momento.

A política é desenhada lá em cima, pensada para nós, mas não temos como aplicar”, comenta Xifroneze Santos, moradora da comunidade e representante da coordenação nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

A falta de titulação é a causa fundamental para a exclusão dos povos e comunidades tradicionais do Pronaf, segundo ela.

Na Caraíbas, o processo começou em 2004 e está parado desde 2018, quando houve o reconhecimento de posse e uso coletivo. Estivesse titulada, a comunidade teria um CNPJ coletivo, passível de ser utilizado para acessar o programa.

“Esse é o principal gargalo das comunidades quilombolas, porque a gente não planta no vento, né? A gente não planta no ar. Para ser pensado para nós, o programa precisa ser pensado a partir da terra. Porque nenhuma casa começa pelo telhado: começa do alicerce. O nosso alicerce é nossa terra. Enquanto não houver desapropriação dos territórios, continuaremos vivendo de fantasia”, diz Xifroneze.

Enquanto a titulação e os consequentes recursos não chegam, a produção das comunidades quilombolas fica enclausurada aos fundos dos quintais, para subsistência, ou percorre caminhos curtos, até feiras próximas, o que gera renda insuficiente.

“O campo está envelhecendo, está morrendo. Nós precisamos desses projetos para nos salvar, para permanecer nos nossos territórios. Eles precisam olhar para a gente com respeito, para atender a demanda da política que é tão publicizada pelo governo.”

Os pescadores artesanais também se sentem embarreirados: para que eles consigam acessar os créditos, precisam ter o “CAF-Pronaf”, documento que substituiu, em 2024, a DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).

O processo para emissão, no entanto, de tão moroso e burocrático, leva a maioria à desistência. “O pessoal do banco não sabe te explicar, ninguém dá apoio. Às vezes, pedem documentos que a gente sabe que não precisa. A maioria dos pescadores desiste, porque sempre tem um empecilho. Quando a pessoa simples chega lá, às vezes acaba nem sendo atendida. Acho que é preconceito. O governo sempre diz que tem políticas públicas para pescadores, mas a gente não consegue acionar, porque não tem vez. Quem tem são os donos de barcos, os empresários, que acabam usufruindo dessas políticas públicas”, reclama Lucila da Rocha Lopes, presidente da Colônia de Pesca de Itapaiva, no município de Itapemirim (ES).

A falta de dinheiro para tocar a pesca que lhes garante a sobrevivência abre espaço para atravessadores, em geral donos de barcos maiores, que se aproveitam da vulnerabilidade financeira para enganar e chantagear os pequenos.

“O pescador carrega o barquinho dele com gelo, rancho, óleo, mas tudo é o atravessador que adianta [o dinheiro] para ele. Se precisa de um reparo, o atravessador também passa o dinheiro. De uma forma ou outra, você acaba amarrado. Depois, o peixe pode estar no preço que for, você é obrigado a vender para ele, porque tem uma dívida. O pescador acaba lesado no preço final. Isso acontece muito”, relata Lucila.

Extrativistas que trabalham com o manejo sustentável do açaí no município de Portel (PA), no arquipélago do Marajó, conseguiram transpor as restrições do Pronaf com parcerias e fortalecimento comunitário.

Organizadas em uma cooperativa, a Manejaí (Centro de Referência em Manejo de Açaizais Nativos do Marajó), 25 famílias de nove assentamentos da reforma agrária firmaram acordos de cooperação com a Conexsus e o Banco da Amazônia para destravar os créditos.

Por anos, porém, os produtores enfrentaram uma série de dificuldades para acessar o Pronaf. A principal delas se dava pela distância das comunidades, isoladas por rios caudalosos que atravessam o arquipélago.

A presidente da Manejaí, Gracionice Costa da Silva Correa, conta que viajava por quase dois dias de barco para entregar a documentação necessária em uma agência bancária na capital, Belém. “Às vezes, chegávamos lá e o sistema estava fora do ar. Aí a pessoa tinha que virar as costas e fazer a viagem de volta, por mais dois dias. Ou tinha até que esperar o outro dia para conseguir um barco”, relembra.

A realidade mudou com os acordos de cooperação. Desde 2022, por meio da parceria com a Conexsus, a Manejaí passou a fazer parte do programa Rede de Ativadores de Crédito Socioambiental (CrediAmbiental), cujo objetivo principal é formar técnicos locais para que eles próprios consigam acessar o crédito rural coletivamente.

Hoje, quatro técnicos locais atuam na operação técnica do Pronaf para a Manejaí. O resultado é a liberação de créditos para 386 famílias, até agora, segundo Gracionice. “As parcerias nos trouxeram grandes avanços, porque fazem com que nós consigamos resistir no nosso território, apesar das inúmeras ameaças.

No fundo, nós somos sobreviventes. Sem essa união, a vulnerabilidade tomaria conta. Mesmo assim, precisamos seguir nos organizando, para que as comunidades mantenham suas próprias identidades”.

Atualmente, a Rede de Ativadores de Crédito Socioambiental conta com 55 ativadores ou ativadoras de crédito em exercício, com atendimento direto de 4.068 Unidades Familiares de Produção (101 mil hectares mapeados de cadeias da sociobioeconomia). Por meio do programa, foram aprovados 894 contratos de crédito rural, com acesso a R$ 13 milhões.

•        Pedido por mudanças

Em razão das restrições, o Observatório das Economias da Sociobiodiversidade (ÓSocioBio), uma rede colaborativa formada por 42 organizações da sociedade civil, movimentos sociais populares, empreendimentos comunitários e cooperativas, incluindo a Conexsus, fez uma série de sugestões, em uma nota técnica enviada ao governo federal, para o Plano Safra 2025/2026 e para a atualização do Manual de Crédito Rural (MCR).

Entre os pedidos apresentados ao governo estão:

- a ampliação da lista de documentos exigidos para o Pronaf Grupo B,

- a exigência de que 20% de todo o recurso do Pronaf sejam destinados a cadeias da sociobioeconomia e

- a permissão para que associações e cooperativas possam emitir o CAF em nome de seus associados.

“Não estamos pedindo mais recursos ou diminuição da taxa de juros. O que pedimos são mais mecanismos de acesso, para que os povos e comunidades tradicionais, as pessoas que mantêm a floresta em pé, tenham acesso a essa política pública. Para que não fique só para o gado”, explica Fernando Moretti, líder do núcleo de crédito socioambiental da Conexsus.

Para Moretti, promover a autossuficiência dos povos e comunidades tradicionais que produzem produtos sociobiodiversos é o único caminho para uma economia nacional sustentável, independentemente do setor.

“As cadeias da sociobioeconomia podem não ter uma participação muito grande no PIB [Produto Interno Bruto] do país, atualmente, mas elas têm relação direta com qualquer cadeia produtiva do país. Todos dependemos diretamente delas, porque, a partir da proteção das florestas e dos biomas, elas nos protegem das secas, das mudanças climáticas. Tudo está interligado. Se o país quer estar bem, se o agro quer estar bem, precisamos fortalecer essas populações em seus territórios.”

•        FARM é pressionada a se afastar da Starbucks por denúncias de trabalho escravo

A FARM está sendo pressionada por entidades sindicais e organizações da sociedade civil a romper sua parceria com a multinacional Starbucks, diante de denúncias de violações trabalhistas e ambientais. Em carta endereçada ao CEO da FARM, Fábio Barreto, a União Geral dos Trabalhadores (UGT) e outras organizações acusam a rede de cafeterias de estar ligada a casos de trabalho escravo e infantil em fazendas brasileiras de café, além de práticas antissindicais nos Estados Unidos.

A reação se dá em meio ao lançamento de uma coleção colaborativa entre as duas marcas, divulgada pela Farm como uma celebração da “alegria e diversidade” do Brasil. A parceria, porém, tem gerado questionamentos públicos sobre a coerência entre os valores de sustentabilidade e justiça social defendidos pela empresa de moda e o histórico da Starbucks.

A campanha #RompaComAStarbucks, liderada pela Coffee Watch, ONG que monitora e denuncia más práticas no setor cafeeiro mundialmente, exige o fim imediato da parceria, classificada como “lavagem de imagem” de uma empresa envolvida em exploração.

“A Starbucks lucra com a opressão. Enquanto vende café a preços premium, trabalhadores brasileiros colhem os grãos sem direitos básicos, como água potável ou banheiros”, afirma Etelle Higonnet, fundadora da Coffee Watch.

Procurada pela reportagem, a FARM não se manifestou. O espaço segue aberto para o posicionamento da empresa.

<><> Café com denúncia

A pressão sobre a Starbucks aumentou após a Coffee Watch apresentar, no fim de abril, uma denúncia formal à Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP), pedindo o bloqueio das importações de café brasileiro pelas multinacionais Starbucks, Nestlé, JDE, Dunkin’, Illy e McDonald’s. A petição se baseia na Seção 307 do Ato Tarifário de 1930, que proíbe a entrada de produtos fabricados com trabalho escravo nos Estados Unidos.

De acordo com a denúncia, pelo menos quatro resgates de trabalhadores em condições análogas à escravidão foram registrados entre 2023 e 2024 em fazendas de Minas Gerais ligadas à Cooxupé, uma das principais fornecedoras da Starbucks no Brasil. Em uma das ações, seis trabalhadores – incluindo um adolescente de 16 anos – foram resgatados de propriedades com condições degradantes. O produtor responsável, Marcos Florio de Souza, foi incluído na última atualização da chamada “Lista Suja” do trabalho escravo do Ministério do Trabalho.

Segundo a Coffee Watch, “essas empresas mantêm conscientemente um sistema de trabalho forçado, tráfico de pessoas e trabalho infantil forçado, do qual continuarão se beneficiando até que sejam forçadas a interrompê-lo”.

A organização também cita investigações jornalísticas e relatórios de entidades como Repórter Brasil, Oxfam, Danwatch e Conectas, que documentam um padrão sistêmico de violações trabalhistas em cadeias produtivas do café no Brasil e no exterior.

<><> Ação judicial nos EUA

No mesmo dia da denúncia à alfândega, a ONG International Rights Advocates ajuizou uma ação contra a Starbucks no Tribunal de Columbia, na Carolina do Norte. A entidade representa oito trabalhadores resgatados nas fazendas mineiras, e alega que eles foram traficados e submetidos a trabalho forçado, exigindo indenizações da multinacional.

Em nota, a Starbucks afirmou que “as alegações apresentadas não têm mérito” e que compraria café apenas de uma “pequena fração” das fazendas ligadas à Cooxupé, todas supostamente certificadas pelo programa C.A.F.E. Practices. A Nestlé e a JDE também responderam que investigam alegações e mantêm compromissos com direitos humanos. Dunkin’, Illy, McDonald’s e Cooxupé não se pronunciaram até a publicação desta reportagem.

<><> Contradições éticas

Criada em 1997 no Rio de Janeiro, a FARM construiu sua imagem como marca engajada com pautas ambientais e sociais, com campanhas de reflorestamento e promoção da diversidade cultural. Em 2019, a empresa passou a integrar o grupo norte-americano Anthropologie e tem expandido sua presença internacional, incluindo nos Estados Unidos.

A carta da UGT critica a incoerência entre o discurso da FARM e a aliança com a Starbucks, acusada de ser “uma das maiores violadoras das leis trabalhistas na história moderna dos EUA”, por reprimir trabalhadores sindicalizados em suas lojas. A entidade sindical pede que a empresa rompa imediatamente a parceria ou condicione sua continuidade a uma série de exigências, como o respeito aos direitos sindicais, erradicação do trabalho escravo e infantil, e pagamento justo a trabalhadores rurais e pequenos produtores.

“Ao estabelecer parceria com a Starbucks, a FARM está, direta ou indiretamente, legitimando práticas que violam os direitos humanos e trabalhistas”, diz trecho da carta.

 

Fonte: O Joio e O Trigo/Repórter Brasil 

 

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