Agronegócio
fica com quase todo dinheiro de programa de apoio à agricultura familiar
Os
créditos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(Pronaf) têm sido predominantemente despejados no agronegócio convencional, em
detrimento de agricultores familiares e comunidades tradicionais que produzem
sociobiodiversidade, excluídos por regras que não condizem com a realidade em
que vivem.
O
programa oferece nove linhas de financiamento, com juros que variam entre 0,5%
e 6% e valores financiáveis que podem chegar a R$ 420 mil por beneficiário.
O
incentivo, no entanto, está quase todo confinado à cadeia produtiva do gado: em
2024, conforme dados do Banco Central, 91,7% dos créditos do Pronaf na Amazônia
Legal foram para a pecuária convencional, contra apenas 8,3% para atividades
agrícolas em geral – nesse caso, ainda assim prevalecem commodities, como soja
e milho.
Quando
se trata de produtos ligados à sociobioeconomia, o índice é ainda menor: 99%
dos produtores de açaí, castanha, cacau nativo, óleos vegetais, fibras,
pescados e outros produtos biodiversos disseram nunca ter acessado o crédito
rural, de acordo com mapeamento da Conexsus, uma organização que incentiva
negócios comunitários que contribuem para a preservação de florestas e biomas.
Um dos
principais entraves é a exigência de documentos individuais, como o Cadastro
Nacional da Agricultura Familiar (CAF) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para
povos e comunidades que vivem e produzem em territórios coletivos. Isso impede
que a maioria dos assentados da reforma agrária, quilombolas, ribeirinhos,
extrativistas e indígenas acessem o programa.
É o
caso de 250 famílias que formam a comunidade remanescente de quilombo Caraíbas,
situada na entrada do sertão sergipano, na confluência de cinco municípios:
Canhoba, Aquidabã, Amparo de São Francisco, Telha e Cedro de São João. “Nossa
terra é coletiva, com produção coletiva. Mas eles exigem documentos
individuais, que a gente não tem. Quando vamos ao banco, já dão um ‘não’, sem
chance de conversa. Levamos uma porta na cara, logo num primeiro momento.
A
política é desenhada lá em cima, pensada para nós, mas não temos como aplicar”,
comenta Xifroneze Santos, moradora da comunidade e representante da coordenação
nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (Conaq).
A falta
de titulação é a causa fundamental para a exclusão dos povos e comunidades
tradicionais do Pronaf, segundo ela.
Na
Caraíbas, o processo começou em 2004 e está parado desde 2018, quando houve o
reconhecimento de posse e uso coletivo. Estivesse titulada, a comunidade teria
um CNPJ coletivo, passível de ser utilizado para acessar o programa.
“Esse é
o principal gargalo das comunidades quilombolas, porque a gente não planta no
vento, né? A gente não planta no ar. Para ser pensado para nós, o programa
precisa ser pensado a partir da terra. Porque nenhuma casa começa pelo telhado:
começa do alicerce. O nosso alicerce é nossa terra. Enquanto não houver
desapropriação dos territórios, continuaremos vivendo de fantasia”, diz
Xifroneze.
Enquanto
a titulação e os consequentes recursos não chegam, a produção das comunidades
quilombolas fica enclausurada aos fundos dos quintais, para subsistência, ou
percorre caminhos curtos, até feiras próximas, o que gera renda insuficiente.
“O
campo está envelhecendo, está morrendo. Nós precisamos desses projetos para nos
salvar, para permanecer nos nossos territórios. Eles precisam olhar para a
gente com respeito, para atender a demanda da política que é tão publicizada
pelo governo.”
Os
pescadores artesanais também se sentem embarreirados: para que eles consigam
acessar os créditos, precisam ter o “CAF-Pronaf”, documento que substituiu, em
2024, a DAP (Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar).
O
processo para emissão, no entanto, de tão moroso e burocrático, leva a maioria
à desistência. “O pessoal do banco não sabe te explicar, ninguém dá apoio. Às
vezes, pedem documentos que a gente sabe que não precisa. A maioria dos
pescadores desiste, porque sempre tem um empecilho. Quando a pessoa simples
chega lá, às vezes acaba nem sendo atendida. Acho que é preconceito. O governo
sempre diz que tem políticas públicas para pescadores, mas a gente não consegue
acionar, porque não tem vez. Quem tem são os donos de barcos, os empresários,
que acabam usufruindo dessas políticas públicas”, reclama Lucila da Rocha
Lopes, presidente da Colônia de Pesca de Itapaiva, no município de Itapemirim
(ES).
A falta
de dinheiro para tocar a pesca que lhes garante a sobrevivência abre espaço
para atravessadores, em geral donos de barcos maiores, que se aproveitam da
vulnerabilidade financeira para enganar e chantagear os pequenos.
“O
pescador carrega o barquinho dele com gelo, rancho, óleo, mas tudo é o
atravessador que adianta [o dinheiro] para ele. Se precisa de um reparo, o
atravessador também passa o dinheiro. De uma forma ou outra, você acaba
amarrado. Depois, o peixe pode estar no preço que for, você é obrigado a vender
para ele, porque tem uma dívida. O pescador acaba lesado no preço final. Isso
acontece muito”, relata Lucila.
Extrativistas
que trabalham com o manejo sustentável do açaí no município de Portel (PA), no
arquipélago do Marajó, conseguiram transpor as restrições do Pronaf com
parcerias e fortalecimento comunitário.
Organizadas
em uma cooperativa, a Manejaí (Centro de Referência em Manejo de Açaizais
Nativos do Marajó), 25 famílias de nove assentamentos da reforma agrária
firmaram acordos de cooperação com a Conexsus e o Banco da Amazônia para
destravar os créditos.
Por
anos, porém, os produtores enfrentaram uma série de dificuldades para acessar o
Pronaf. A principal delas se dava pela distância das comunidades, isoladas por
rios caudalosos que atravessam o arquipélago.
A
presidente da Manejaí, Gracionice Costa da Silva Correa, conta que viajava por
quase dois dias de barco para entregar a documentação necessária em uma agência
bancária na capital, Belém. “Às vezes, chegávamos lá e o sistema estava fora do
ar. Aí a pessoa tinha que virar as costas e fazer a viagem de volta, por mais
dois dias. Ou tinha até que esperar o outro dia para conseguir um barco”,
relembra.
A
realidade mudou com os acordos de cooperação. Desde 2022, por meio da parceria
com a Conexsus, a Manejaí passou a fazer parte do programa Rede de Ativadores
de Crédito Socioambiental (CrediAmbiental), cujo objetivo principal é formar
técnicos locais para que eles próprios consigam acessar o crédito rural
coletivamente.
Hoje,
quatro técnicos locais atuam na operação técnica do Pronaf para a Manejaí. O
resultado é a liberação de créditos para 386 famílias, até agora, segundo
Gracionice. “As parcerias nos trouxeram grandes avanços, porque fazem com que
nós consigamos resistir no nosso território, apesar das inúmeras ameaças.
No
fundo, nós somos sobreviventes. Sem essa união, a vulnerabilidade tomaria
conta. Mesmo assim, precisamos seguir nos organizando, para que as comunidades
mantenham suas próprias identidades”.
Atualmente,
a Rede de Ativadores de Crédito Socioambiental conta com 55 ativadores ou
ativadoras de crédito em exercício, com atendimento direto de 4.068 Unidades
Familiares de Produção (101 mil hectares mapeados de cadeias da
sociobioeconomia). Por meio do programa, foram aprovados 894 contratos de
crédito rural, com acesso a R$ 13 milhões.
• Pedido por mudanças
Em
razão das restrições, o Observatório das Economias da Sociobiodiversidade
(ÓSocioBio), uma rede colaborativa formada por 42 organizações da sociedade
civil, movimentos sociais populares, empreendimentos comunitários e
cooperativas, incluindo a Conexsus, fez uma série de sugestões, em uma nota
técnica enviada ao governo federal, para o Plano Safra 2025/2026 e para a
atualização do Manual de Crédito Rural (MCR).
Entre
os pedidos apresentados ao governo estão:
- a
ampliação da lista de documentos exigidos para o Pronaf Grupo B,
- a
exigência de que 20% de todo o recurso do Pronaf sejam destinados a cadeias da
sociobioeconomia e
- a
permissão para que associações e cooperativas possam emitir o CAF em nome de
seus associados.
“Não
estamos pedindo mais recursos ou diminuição da taxa de juros. O que pedimos são
mais mecanismos de acesso, para que os povos e comunidades tradicionais, as
pessoas que mantêm a floresta em pé, tenham acesso a essa política pública.
Para que não fique só para o gado”, explica Fernando Moretti, líder do núcleo
de crédito socioambiental da Conexsus.
Para
Moretti, promover a autossuficiência dos povos e comunidades tradicionais que
produzem produtos sociobiodiversos é o único caminho para uma economia nacional
sustentável, independentemente do setor.
“As
cadeias da sociobioeconomia podem não ter uma participação muito grande no PIB
[Produto Interno Bruto] do país, atualmente, mas elas têm relação direta com
qualquer cadeia produtiva do país. Todos dependemos diretamente delas, porque,
a partir da proteção das florestas e dos biomas, elas nos protegem das secas,
das mudanças climáticas. Tudo está interligado. Se o país quer estar bem, se o
agro quer estar bem, precisamos fortalecer essas populações em seus
territórios.”
• FARM é pressionada a se afastar da
Starbucks por denúncias de trabalho escravo
A FARM
está sendo pressionada por entidades sindicais e organizações da sociedade
civil a romper sua parceria com a multinacional Starbucks, diante de denúncias
de violações trabalhistas e ambientais. Em carta endereçada ao CEO da FARM,
Fábio Barreto, a União Geral dos Trabalhadores (UGT) e outras organizações
acusam a rede de cafeterias de estar ligada a casos de trabalho escravo e
infantil em fazendas brasileiras de café, além de práticas antissindicais nos
Estados Unidos.
A
reação se dá em meio ao lançamento de uma coleção colaborativa entre as duas
marcas, divulgada pela Farm como uma celebração da “alegria e diversidade” do
Brasil. A parceria, porém, tem gerado questionamentos públicos sobre a
coerência entre os valores de sustentabilidade e justiça social defendidos pela
empresa de moda e o histórico da Starbucks.
A
campanha #RompaComAStarbucks, liderada pela Coffee Watch, ONG que monitora e
denuncia más práticas no setor cafeeiro mundialmente, exige o fim imediato da
parceria, classificada como “lavagem de imagem” de uma empresa envolvida em
exploração.
“A
Starbucks lucra com a opressão. Enquanto vende café a preços premium,
trabalhadores brasileiros colhem os grãos sem direitos básicos, como água
potável ou banheiros”, afirma Etelle Higonnet, fundadora da Coffee Watch.
Procurada
pela reportagem, a FARM não se manifestou. O espaço segue aberto para o
posicionamento da empresa.
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Café com denúncia
A
pressão sobre a Starbucks aumentou após a Coffee Watch apresentar, no fim de
abril, uma denúncia formal à Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP),
pedindo o bloqueio das importações de café brasileiro pelas multinacionais
Starbucks, Nestlé, JDE, Dunkin’, Illy e McDonald’s. A petição se baseia na
Seção 307 do Ato Tarifário de 1930, que proíbe a entrada de produtos fabricados
com trabalho escravo nos Estados Unidos.
De
acordo com a denúncia, pelo menos quatro resgates de trabalhadores em condições
análogas à escravidão foram registrados entre 2023 e 2024 em fazendas de Minas
Gerais ligadas à Cooxupé, uma das principais fornecedoras da Starbucks no
Brasil. Em uma das ações, seis trabalhadores – incluindo um adolescente de 16
anos – foram resgatados de propriedades com condições degradantes. O produtor
responsável, Marcos Florio de Souza, foi incluído na última atualização da
chamada “Lista Suja” do trabalho escravo do Ministério do Trabalho.
Segundo
a Coffee Watch, “essas empresas mantêm conscientemente um sistema de trabalho
forçado, tráfico de pessoas e trabalho infantil forçado, do qual continuarão se
beneficiando até que sejam forçadas a interrompê-lo”.
A
organização também cita investigações jornalísticas e relatórios de entidades
como Repórter Brasil, Oxfam, Danwatch e Conectas, que documentam um padrão
sistêmico de violações trabalhistas em cadeias produtivas do café no Brasil e
no exterior.
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Ação judicial nos EUA
No
mesmo dia da denúncia à alfândega, a ONG International Rights Advocates ajuizou
uma ação contra a Starbucks no Tribunal de Columbia, na Carolina do Norte. A
entidade representa oito trabalhadores resgatados nas fazendas mineiras, e
alega que eles foram traficados e submetidos a trabalho forçado, exigindo
indenizações da multinacional.
Em
nota, a Starbucks afirmou que “as alegações apresentadas não têm mérito” e que
compraria café apenas de uma “pequena fração” das fazendas ligadas à Cooxupé,
todas supostamente certificadas pelo programa C.A.F.E. Practices. A Nestlé e a
JDE também responderam que investigam alegações e mantêm compromissos com
direitos humanos. Dunkin’, Illy, McDonald’s e Cooxupé não se pronunciaram até a
publicação desta reportagem.
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Contradições éticas
Criada
em 1997 no Rio de Janeiro, a FARM construiu sua imagem como marca engajada com
pautas ambientais e sociais, com campanhas de reflorestamento e promoção da
diversidade cultural. Em 2019, a empresa passou a integrar o grupo
norte-americano Anthropologie e tem expandido sua presença internacional,
incluindo nos Estados Unidos.
A carta
da UGT critica a incoerência entre o discurso da FARM e a aliança com a
Starbucks, acusada de ser “uma das maiores violadoras das leis trabalhistas na
história moderna dos EUA”, por reprimir trabalhadores sindicalizados em suas
lojas. A entidade sindical pede que a empresa rompa imediatamente a parceria ou
condicione sua continuidade a uma série de exigências, como o respeito aos
direitos sindicais, erradicação do trabalho escravo e infantil, e pagamento
justo a trabalhadores rurais e pequenos produtores.
“Ao
estabelecer parceria com a Starbucks, a FARM está, direta ou indiretamente,
legitimando práticas que violam os direitos humanos e trabalhistas”, diz trecho
da carta.
Fonte:
O Joio e O Trigo/Repórter Brasil

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