A
Extrema-Direita e das Armas Impressas em 3D
Numa
manhã de junho de 2025, o silêncio foi quebrado em várias localidades de
Portugal. De Lisboa a Chaves, agentes da Unidade Nacional Contra-Terrorismo
(UNCT) da Polícia Judiciária arrombaram portas, culminando a “Operação Desarme
3D”i. O alvo: um grupo neonazi autodenominado “Movimento Armilar Lusitano”ii.
O que
as autoridades encontraram não foi apenas um arsenal de armas convencionais e
propaganda de supremacia branca. Ao lado das munições e dos planos para
ataques, estavam as máquinas que representam a nova fronteira da violência
política: impressoras 3D, a fabricar silenciosamente as ferramentas da sua
guerra ideológica. A operação desmantelou a mais significativa milícia armada
de extrema-direita na história da democracia portuguesaiii, revelando uma
verdade incômoda e perigosa: o terrorismo aprendeu a imprimir-se.
Este
não foi um incidente isolado. Foi a manifestação, em solo nacional, de uma
convergência tóxica que está a alarmar as agências de segurança em todo o
mundo. De um lado, um ressurgimento global de um extremismo de extrema-direita
descentralizado, que vive e respira no ecossistema digital. Do outro, a
democratização de uma tecnologia que permite a qualquer pessoa, com algumas
centenas de euros e uma ligação à internet, fabricar armas de fogo funcionais,
não rastreáveis e completamente fora do controle estatal.
Esta
confluência está a criar uma ameaça sem precedentes, definida por três
conceitos-chave. O primeiro é a “Democratização da Letalidade”: a capacidade de
produzir armamento letal deixou de ser um monopólio do Estado ou do crime
organizado, passando para as mãos de indivíduos ideologicamente motivadosiv. O
segundo é a “Ameaça Grupuscular”, um termo que descreve a metamorfose da
extrema-direita em pequenas células autônomas e ligadas em rede, uma estrutura
perfeitamente adaptada para explorar tecnologias descentralizadasv. Finalmente,
o conceito de “Armas Fantasma” (Ghost Guns), que sublinha o pesadelo logístico
e forense que estas armas não registadas e sem número de série representamvi.
O caso
português é um estudo paradigmático de como esta ameaça se desenvolve nas
sombras, muitas vezes sob um manto de normalização política. A história do
“Movimento Armilar Lusitano” não é apenas sobre um grupo de radicais; é sobre
os pontos cegos de um país e de um continente que lutam para compreender a
natureza mutável do extremismo.
<><>
A Frente Portuguesa: Entre a Negação e a Realidade
Durante
décadas, Portugal considerou-se imune à vaga de populismo radical que varria a
Europa. Essa percepção foi abalada pelo crescimento eleitoral do partido Chega,
que arrastou o discurso da extrema-direita para o centro do debate políticovii
viii ix x. A normalização de narrativas anti-imigração, nacionalistas e
anti-sistema, alertam os especialistas, criam um terreno fértil para que
ideologias mais violentas floresçam, longe dos holofotes.
É desta
linhagem, traçada por Riccardo Marchi desde as suas raízes no pós-Estado Novo e
na radicalização da Guerra Colonial, que emerge o “Movimento Armilar
Lusitano”xi. O nome, evocando um simbolismo imperial português, foi cooptado
para servir uma ideologia de supremacia branca. Segundo a investigação da PJ, o
grupo não se limitava a acumular armas. Estava ativamente a “armar, treinar e
recrutar pessoas para um plano de ataque” contra minorias e instituições do
Estadoxii.
O que
torna este caso ainda mais alarmante é a identidade de um dos seus líderes: um
agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), a prestar serviço na Polícia
Municipal de Lisboaxiii. A infiltração nas forças de segurança por elementos
extremistas é um dos maiores receios das agências de contraterrorismo, pois
amplifica exponencialmente a capacidade e o perigo que estes grupos
representam.
Contudo,
o aspeto mais chocante desta história talvez resida na dissonância entre a
realidade operacional e a perceção oficial da ameaça. A “Operação Desarme 3D”
decorria em segredo precisamente no mesmo período em que o Relatório Anual de
Segurança Interna (RASI) de 2023 estava a ser finalizado. Várias fontes
noticiosas confirmaram que uma versão de trabalho do RASI continha um capítulo
específico sobre as ameaças da extrema-direita. Esse capítulo foi eliminado na
versão final, aprovada pelo Conselho Superior de Segurança Internaxiv xv xvi
xvii.
A
justificação oficial centrou-se na ausência de “incidentes criminais com
relevância estatística”. Esta decisão, publicamente apoiada pelo diretor
nacional da PSPxviii, criou uma contradição flagrante: enquanto a principal
avaliação de segurança do país minimizava a ameaça, a sua principal polícia de
investigação criminal estava a desmantelar uma célula terrorista que a
encarnavaxix. Este “apagão”, como foi apelidado pela imprensa, revela um ponto
cego estratégico perigoso. Ao negar oficialmente uma ameaça, o Estado
arrisca-se a fomentar um clima de complacência, dificultando a alocação de
recursos e enviando um sinal aos próprios extremistas de que podem operar com
menor escrutínio.
<><>
O Manual de Instruções para o Caos
Para
compreender a procura por estas armas, é preciso compreender a tecnologia. A
era das armas impressas em 3D começou publicamente em 2013 com a “Liberator”,
uma pistola de um só tiro, quase inteiramente de plástico, criada pelo
anarquista americano Cody Wilson. Primitiva e pouco fiável, a sua importância
foi simbólica: provou que era possível. Os ficheiros de design, descarregados
mais de 100 mil vezes em dois dias antes de serem forçados a sair da internet
aberta, nunca mais desapareceram, espalhando-se por redes peer-to-peer e pela
dark web6.
Desde
então, a evolução foi exponencial. Hoje, a comunidade online dedicada ao tema
produz armas semiautomáticas sofisticadas e fiáveis. O exemplo mais notório é a
FGC-9, uma carabina de calibre 9mm cujo nome é um acrónimo para “Fuck Gun
Control” (Que se Lixe o Controlo de Armas). A FGC-9 é uma obra-prima de
engenharia subversiva. É uma arma “híbrida”, usando um cano de metal, molas e
parafusos. No entanto, o seu design foi deliberadamente concebido para usar
apenas componentes que não são legalmente classificados como “peças de arma de
fogo” na maioria dos países e que podem ser comprados em qualquer loja de
ferragens ou online6.
A FGC-9
não é só uma arma; é um manifesto. O seu manual de montagem detalhado,
partilhado livremente, democratiza a sua produção4. Com impressoras 3D a custar
poucas centenas de euros, a “fábrica” de armas pode agora ser uma secretária
num quarto6.
O apelo
destas “armas fantasma” para os extremistas é irresistível. Oferecem
rastreabilidade nula, contornam todas as formas de controle de armas como
licenciamento, verificação de antecedentes, registros, e a sua natureza
plástica torna-as fáceis de destruir, eliminando provas cruciais.
Este
fenómeno não substitui o mercado ilícito tradicional; ele suplementa-o. Grandes
organizações criminosas continuarão a usar rotas de tráfico estabelecidasxx.
Mas a impressão 3D arma um segmento diferente: o ator solitário, o extremista
nativo digital, radicalizado online, que não tem o capital ou os contactos no
submundo do crimexxi xxii. A barreira para obter uma arma letal foi
drasticamente reduzida. Em vez de experiência criminal, requer paciência e
curiosidade técnica, características abundantes nas subculturas online.
A
ameaça já se materializou por toda a Europa. Em outubro de 2019, na Alemanha,
Stephan Balliet atacou uma sinagoga em Halle com armas improvisadas, incluindo
uma submetralhadora com peças impressas em 3D. O seu objetivo, declarado no seu
manifesto, era “provar a viabilidade” desta tecnologia. Embora a arma tenha
funcionado mal, ele matou duas pessoas. O ataque foi um ponto de viragem,
citado pela Europol como a prova de que as armas 3D passaram da teoria à
realidade mortalxxiii. Desde então, operações em Espanhaxxiv, no Reino Unidoxxv
e até na Islândia desmantelaram oficinas e prenderam indivíduos ligados à
extrema-direita que fabricavam ou possuíam estas armas.
<><>
A Ideologia no Código: As Casernas Digitais
A
convergência entre a impressão 3D e a extrema-direita não é uma mera
conveniência técnica; é uma simbiose ideológica. Para movimentos obcecados com
a resistência a um suposto Estado tirânico, o ato de fabricar a própria arma é
a derradeira expressão de autossuficiência e desafio. O nome “FGC-9” não é um
acaso, é uma declaração de missão6.
As
armas de fogo são também centrais na cultura do “guerreiro hipermasculino” que
domina estes espaços online. Exibir armas, especialmente as de fabricação
própria, é um rito de passagem, um símbolo de poder e estatuto. Para os
“aceleracionistas”, que acreditam que a violência é necessária para acelerar o
colapso da sociedade e criar um etno-estado branco, a acumulação de arsenais é
um dever6.
O
perigo é amplificado porque a propaganda e os manuais técnicos coexistem no
mesmo ecossistema digital. Plataformas encriptadas como o Telegram tornaram-se
centros nevrálgicos onde ideologia, recrutamento e conhecimento técnico se
fundem. O canal “3D Amendment”, gerido por um supremacista branco a partir de
uma prisão federal nos EUA, misturava abertamente propaganda neonazi com a
venda de ficheiros para imprimir “auto sears“, peças que convertem armas
semiautomáticas em metralhadoras ilegaisxxvi.
Crucialmente,
o próprio ato de fabricar a arma tornou-se parte do processo de radicalização.
Construir uma FGC-9 não é uma transação; é um projeto. Exige meses de
investigação, imersão em fóruns e comunidades online saturadas de teorias da
conspiração e ódio, e um processo meticuloso de tentativa e erro. O sucesso na
construção de uma arma funcional proporciona um poderoso sentimento de
capacitação, validando a identidade do indivíduo como um “guerreiro” competente
e reforçando a sua dedicação à causa. Cria-se um ciclo vicioso: o desejo por
uma arma leva o indivíduo a espaços extremistas; o processo de construção
aprofunda a sua convicção; o sucesso inspira outros a seguir o mesmo caminho. A
intervenção das autoridades torna-se exponencialmente mais difícil.
<><>
Um Desafio Existencial para a Segurança
Esta
nova realidade coloca um desafio profundo aos nossos sistemas legais e de
segurança. A ferramenta primária de proliferação não é um objeto físico, mas
sim informação, ficheiros de design (CAD). Tentar regular estes ficheiros
esbarra em complexas batalhas legais sobre a liberdade de expressão. Uma vez
que um ficheiro está online, é impossível erradicá-lo. A legislação sobre
armas, concebida para um mundo analógico de objetos físicos, tornou-se
obsoleta. As leis, como o Regime Jurídico das Armas e Suas Munições (RJAM)xxvii
em Portugal ou a Diretiva de Armas de Fogo da EUxxviii, punem a posse da arma
depois de fabricada, mas são ineficazes para lidar com a fase de pré-produção,
que ocorre inteiramente no mundo digital.
A
resposta exige uma mudança de paradigma. Os pontos de estrangulamento
tradicionais, fabricantes, revendedores, fronteiras, foram eliminados. Os novos
pontos de estrangulamento são digitais: as plataformas que alojam os ficheiros,
os fóruns de discussãoxxix. O combate a esta ameaça exige que as forças de
segurança invistam maciçamente em inteligência digital, na capacidade de
monitorizar subculturas online e de infiltrar espaços encriptados.
As
recomendações de think tanks como o International Centre for Counter-Terrorism
(ICCT) e da própria Europol são claras. É preciso atualizar os quadros legais
para criminalizar a criação e disseminação destes ficheiros com intenção
maliciosa, como já acontece no Reino Unidoxxx. É fundamental reforçar a
cooperação internacional para partilhar informações em tempo real. E é vital
estabelecer parcerias com as empresas de tecnologia para remover rapidamente
este conteúdo, tratando os ficheiros de armas como se trata a propaganda
terrorista.
A
ameaça representada pelo “Movimento Armilar Lusitano” e pelos seus congéneres
internacionais não é hipotética. A convergência entre o código informático e a
carabina baixou perigosamente a barreira para a violência letal, capacitando os
atores mais imprevisíveis. A inação ou uma resposta fragmentada apenas
garantirá que o som da impressão 3D se torne o prelúdio de mais sangue
derramado. Enquanto as autoridades correm para decifrar a nova linguagem da
ameaça, o terror continua a imprimir-se, um ficheiro de cada vez, no silêncio
de caves e quartos por todo o mundo, prometendo um futuro onde a violência
política está a apenas um clique de distância.
Fonte:
Por Roberto Uchôa de Oliveira Santos, no Le Monde

Nenhum comentário:
Postar um comentário