Paulo Nogueira Batista Jr.: Trump, Lula e o efeito Orloff
Há
um aspecto intrigante, diria mesmo alarmante da nossa
história recente. O Brasil vem seguindo com defasagem de poucos anos o que
acontece nos Estados Unidos! E o padrão tem-se mostrado extraordinariamente
repetitivo. É um novo “efeito Orloff”.
Os
mais adiantados nos anos certamente se lembram do primeiro “efeito Orloff”.
Explico rapidamente para benefício dos mais jovens. Nos anos 1980, a vodca
Orloff lançou uma propaganda na televisão, que ficou célebre, garantindo que
ela não provocava ressaca. E acrescentava a frase que correu o país: “Eu sou
você amanhã”. Naquela época, havia uma grande semelhança entre as trajetórias
econômicas e políticas da Argentina e do Brasil. Repetíamos, com algum atraso,
os acontecimentos e, em especial, os desastres argentinos. O assim-chamado
efeito Orloff era a nossa compulsão a repetir a experiência infeliz da nossa
querida vizinha. “Eu sou você amanhã”, nos diziam os próprios argentinos,
satisfeitos de terem companheiros de desgraça.
·
O novo efeito Orloff – o Brasil repete os
Estados Unidos
Pois
não é que agora nos acontece o mesmo, só que desta vez com os EUA! Temos um
novo e preocupante efeito Orloff. Se não, vejamos.
Os
EUA elegem Trump em 2016, em disputa com a democrata Hillary Clinton. O Brasil
elege Bolsonaro, em 2018, que derrota Haddad, um político moderado de
centro-esquerda. Bolsonaro, seus ministros e seguidores deixam escancarada a
reverência por Trump e a sua crença na conveniência de segui-lo. Trump e Bolsonaro
fazem governos tumultuados, sem estratégia discernível. Vem a pandemia de
Covid-19 e Bolsonaro imita, sem muito disfarce, a reação de Trump, cometendo os
mesmos erros palmares. Sintonizados, Trump e Bolsonaro fracassam no
enfrentamento do desafio.
Em
parte por isso, Trump sofre derrota, por margem apertada, ao tentar se reeleger
em 2020. Em parte pela mesma razão, Bolsonaro sofre derrota quando busca um
segundo mandato em 2022, e também por pequena margem. Os dois perdem para
adversários com perfil até certo ponto semelhante: Biden e Lula são políticos
super experientes, em idade avançada, ambos vistos, principalmente Biden, como
parte do establishment político, isto é, do sistema de poder dominante nos seus
países. O presidente Lula até parece um outsider, mas a ampla aliança que fez
com setores da direita tradicional confere a o seu governo, na prática, um
perfil centrista.
Mas
não para aí a comparação. Trump e Bolsonaro denunciaram imediatamente suposta
fraude nas eleições e patrocinaram, com mão de gato, uma tentativa de golpe de
Estado. O 6 de janeiro de 2021 lá, o 8 de janeiro de 2023 aqui. O mesmíssimo
script.
Eu
mesmo fico impressionado com os paralelismos. E continuo: depois de derrotado,
assim como ocorreria a Bolsonaro, Donald Trump passou a ser alvo de ataques,
inclusive e destacadamente jurídicos: mal escapa da prisão, é tratado com bête
noire pela mídia tradicional dos EUA e por grande parte do establishment
político, inclusive uma fatia minoritária do seu próprio partido, o Partido
Republicano. Ao longo de quatro longos anos até 2024, resiste a tudo isso,
candidata-se novamente a Presidente, sobrevive por pouco a um atentado e acaba
vencendo, com vantagem clara, Kamala Harris, a vice-presidente de um Biden
visivelmente envelhecido, talvez senil, mas que ficou agarrado até o último
momento à sua candidatura inviável. Biden foi um que, não sabendo o momento de
sair do palco, foi dele retirado à força, de forma constrangedora. Kamala ficou
com pouco tempo de campanha, o que ajudou a vitória de Trump.
E
o efeito Orloff continua! Não se deve perder de vista, além disso, a semelhança
no campo macroeconômico. A política externa de Biden foi um desastre, por
motivos conhecidos. Menos reconhecido no exterior é o fato de que ele colheu
sucessos no campo da economia. Desde o início do governo, apresentou ideias
interessantes que configurariam uma abordagem rooseveltiana, se tivessem
recebido apoio maior no Congresso. Mesmo enfrentando poderosa oposição
parlamentar do Partido Republicano, Biden alcançou resultados econômicos
positivos, em termos de PIB, inflação, emprego e desemprego, entre outros
indicadores. No entanto, Kamala não foi capaz de converter esses resultados em
votos.
O leitor ou a leitora já terá percebido aonde quero chegar com esse último
ponto. A situação de Lula, hoje, não lembra a de Biden? Os resultados
macroeconômicos e os indicadores sociais nos primeiros dois anos do Lula 3
estão entre razoáveis e bons, alguns muito bons. Falta, porém, apoio da
população, a julgar por pesquisas recentes de opinião.
Não
é fácil explicar o que está acontecendo. Mas, de novo, a experiência dos EUA dá
pistas. Perguntado, logo após a eleição, o que explicava a sua vitória, Trump
foi direto, como costuma ser: “The prices of groceries” (os preços nas mercearias).
Ora, uma das explicações para a falta de apoio ao governo Lula parece ser
justamente o custo da cesta básica, em especial o dos alimentos, o que
prejudica a maioria da população, sobretudo os mais pobres que gastam
proporcionalmente mais com alimentos.
Como
dizia a saudosa Conceição Tavares: “O povo não come PIB, come alimentos!”. E o
seu contemporâneo, Delfim Neto, sempre alertava: “O bolso é a parte mais
sensível do corpo humano!”.
·
E agora Luiz Inácio?
Chegamos
ao presente. O efeito Orloff persistirá? O que esse padrão repetitivo ensina a
nós, brasileiros? Não creio que existam fatalidades na história humana; apenas
tendências que podem ser evitadas, pelo menos em tese. Podemos, sim,
interromper esse efeito nefasto.
Os
nossos olhares já estão voltados para 2026 – uma eleição presidencial de
altíssimo risco para o Brasil, por motivos que nem preciso recapitular.
Já
vimos que o presidente brasileiro apresenta algumas semelhanças com
Biden/Kamala, principalmente com o primeiro, ou seja, desempenho macroeconômico
bom, com problemas pontuais em áreas sensíveis (PIB alto, mas groceries caras), ambos
em idade avançada, em torno de 80 anos e, em consequência, a repetição do apelo
(no caso de Lula, sobretudo, e não por acaso, pelos adversários) para que ele
saia de cena a tempo, abrindo espaço para outros candidatos mais jovens. Lula,
como Biden, reluta em aceitar esses apelos. Até agora, graças a Deus, dá todos
os indícios de que quer viabilizar um Lula 4. Inventar outro nome a essa altura
seria, a meu ver, entregar o país de novo, na bandeja, ao bolsonarismo inepto e
regressivo.
Todas
essas comparações me parecem verdadeiras, mas não vamos, também, exagerar. O
presidente Lula está firme e ativo, cumprindo agenda pesada com invejável
vigor. A idade sempre pesa, claro, mas ele dá mostras de que está em boa forma
intelectual e física. A menos que venha a ter algum problema grave de saúde,
ele estará capacitado para disputar a reeleição em 2026, livrando-nos mais uma
vez, se tudo der certo, de uma extrema-direita cuja incompetência e
perversidade só são superadas pela sua contraparte argentina. Só Milei deixa na
sombra Bolsonaro e seus equivalentes brasileiros.
·
O que fazer?
Para
terminar, volto-me para a questão prática: o que fazer para interromper esse
desgraçado efeito Orloff? Se ele for infalível, estamos lascados. Mas não
acredito que seja. Há muito que pode ser feito para evitar a sua recorrência.
Parto
da premissa que dispensa, acredito, maiores considerações de que o presidente
Lula é o nosso melhor candidato e que estará em condições pessoais de disputar
a reeleição.
Faço
algumas observações, sem grandes pretensões, apenas para ajudar um pouco nesse
debate crucial.
1 - Começo por um ponto que parece óbvio
a essa altura: não podemos nos fiar demais nos bons indicadores
macroeconômicos. E mesmo esses devem ser analisados com lupa. Considere, leitor
ou leitora, os dados do mercado de trabalho. O emprego aumentou, ótimo, mas
qual a qualidade dos empregos
gerados/ As estatísticas o IBGE trazem muita informação relevante, mas não
captam plenamente o subemprego – não refletem, por exemplo, a situação de
profissionais de nível superior, de classe média, que viraram motoristas de
Uber; ou a de operários da indústria ou de empregados formais no setor de
serviços que viraram motoboys, apenas para citar duas situações entre muitas.
Outra questão, ainda no mercado de trabalho: a taxa de desemprego aberto caiu
para menos de 7% em 2024, ótimo, mas a taxa de subutilização da força de
trabalho (que inclui desemprego por insuficiência de horas trabalhadas e
desemprego por desalento) é muito mais alta, de 15% no último trimestre do ano
passado, segundo o IBGE.
2 - Questões pontuais, mas decisivas, já
deveriam ter sido enfrentadas, como por exemplo transporte urbano e custo dos
alimentos. Sobre esse último ponto, remeto a artigo que publiquei recentemente
na Folha de S.Paulo em 31 de janeiro último (disponível no meu portal na
internet: www.nogueirabatista.com.br/).
3 - Cabe interromper de imediato o ajuste
fiscal regressivo, do tipo que foi proposto pelo Ministério da Fazenda e
aprovado pelo Congresso em fins de 2024. É possível que o mau humor do povo,
captado por algumas pesquisas, já esteja refletindo medidas como os cortes no
Benefício de Prestação Continuada, pago aos idosos de baixa renda e a pessoas
com invalidez. Isso não está claro ainda, mas o que me parece clara é a
importância de se sustar desde logo qualquer iniciativa de cortes adicionais de
gastos que atinjam os mais pobres e a classe média baixa.
4 - Assim que possível, cabe propor e
fazer aprovar no Congresso, ainda em 2025 para entrar em vigor em janeiro de
2026, o aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda para R$ 5 mil,
compensando a perda de receita com o já anunciado, mas ainda não detalhado,
aumento das diminutas alíquotas efetivas do Imposto de Renda sobre os super
ricos. Na campanha de 2022, Lula prometeu colocar o pobre no orçamento e o rico
no imposto de renda. Vai cumprir? Ou repetir a promessa na campanha de 2026?
Previsíveis resistências no Congresso devem ser enfrentadas trazendo a questão
a público, dando nome aos bois e alertando os eleitores para quem são os que
sabotam medidas em favor da população e da justiça fiscal. Recorde-se, a propósito,
que a maior parte dos parlamentares deve disputar a reeleição também em 2026 e
não vão querer aparecer mal nesta foto.
5 - A partir da terceira reunião do Copom
em 2025, marcada para 6 e 7 de maio, o Banco Central deve estabilizar e, de
preferência, começar a reduzir gradualmente a SELIC, que está altíssima em
termos reais, com pesados efeitos nocivos sobre a economia, as finanças
públicas e a distribuição da renda nacional. Na prática, basta que o Banco
Central tenha como objetivo não-declarado manter a inflação dentro do intervalo
previsto no regime de metas, abaixo do teto, mas sem mirar de imediato o centro
desse intervalo. Esse centro deveria começar a ser efetivamente alcançado em
2027 ou 2028. Não será o fim do mundo. Independente disso, o Banco Central
precisaria começar a examinar em profundidade possíveis alterações no regime de
metas e no seu sistema de informações. O mesmo, aliás, deve ser feito no que
diz respeito ao arcabouço fiscal – mirar o piso da meta de resultado primário e
buscar oportunidades de flexibilizar o arcabouço sem abandonar o compromisso
com a austeridade fiscal.
6 - Alguma desaceleração do nível de
atividade da economia parece inevitável em 2025. No entanto, Fazenda, Banco
Central e bancos públicos devem se mobilizar para adotar, a partir do final
deste ano, no mais tardar, políticas fiscal, monetária e creditícias
expansivas, de forma a assegurar crescimento substancial da economia e um
mercado de trabalho robusto em 2026.
7 - Em resumo, deve-se dar, desde logo,
uma clara marca social e desenvolvimentista ao governo, diferenciando-o não só
da direita bolsonarista, como também da direita tradicional.
·
O povo brasileiro quer a sua parte em
dinheiro
Esses
sete pontos e outros que se poderia certamente aduzir (nos campos da política
externa ou das políticas sociais, por exemplo) demarcariam de modo claro a
natureza do governo. Apesar da Arca de Noé, isto é, da aliança super ampla
formada para a eleição de 2022, o governo Lula precisaria, acredito, considerar
iniciativas dessa natureza. Se não o fizer, poderá ser confundido pelo eleitor
com a direita tradicional. Ou seja: palavra de ordem para a Arca de Noé –
cargas ao mar!
Ressalte-se
a importância crucial de fazer a demarcação em relação à direita
tradicional –
demarcação que, por motivos evidentes, é mais difícil do que em relação à
caricata direita bolsonarista. Por que isso é crucial? A resposta me parece
clara. No plano eleitoral, a direita tradicional se expressa preferencialmente
pela famosa terceira via. Ora, o que mostra repetidamente a experiência dessa
terceira via em várias eleições? Nem preciso dizer.
O
presidente Lula corre sério risco de perder em 2026 e confirmar o malfadado
efeito Orloff, se aparecer em 2026 com cara de terceira via, falando em
democracia e apelando para noções vagas como cidadania, direitos humanos, meio
ambiente, defesa dos indígenas, dos homossexuais e outras minorias. Essas
pautas, tão caras à esquerda identitária, são inegavelmente importantes e
justas, mas têm sido caixão como plataforma eleitoral.
Como
dizia Getúlio Vargas, com brutal pragmatismo, “voto não enche barriga”. Nessa
empreitada, sob comando de Lula, o povo brasileiro quer a sua parte em
dinheiro.
Fonte: JB
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