Luís Nassif: A imprensa durante a ditadura – 3
A cumplicidade. E
suas várias armadilhas
O balão de ensaio
não é apenas o processo pouco convencional de sondar a opinião pública. Ele é
utilizado ampla e indiscriminadamente, na suposição de que a notícia acabe
gerando o fato.
Recorre-se a ele,
eventualmente, até para se resolver problemas familiares.
Parte superior do
formulário
Parte inferior do
formulário
Certa vez, por
exemplo, na imensa guerra de informações que precedeu a disputa pela
Presidência da República, na sucessão Geisel, foi noticiado que o chefe da Casa
Civil, Golbery do Couto e Silva, tinha sido sondado para governador do Estado
do Rio, e mostrara-se disposto a aceitar.
Seguiram-se
desmentidos. E o balão de ensaio foi atribuído, na época, a Humberto Barreto e
seu assessor Oswaldo Quinsan, em disputa com Golbery pelas preferências de
Geisel.
Conta o jornalista
que primeiro deu a notícia:
-A informação me
foi passada por parentes de Golbery, sem que ele soubesse de nada. Sua esposa,
preocupada com o seu desgaste físico no Planalto, queria que ele fosse para o
Rio. Assim como pressionava nesse sentido o seu amigo Newton Cipriano Leitão, o
Caveirinha, intermediário de agências de publicidade junto ao governo. O
próprio Humberto, quando soube da informação, ficou excitadíssimo, e queria
saber a todo custo se já tinha sido confirmada.
<><> A
conivência
Em nenhum desses
casos e os exemplos são infindáveis apontou-se o mentiroso à opinião pública.
Um pouco por conivência, um pouco por receio de perder a fonte.
E essa conivência
acaba sendo estimulada pelos próprios critérios de valorização da notícia
oficial – presentes em grandes segmentos da imprensa.
– Quando a
publicação exige apenas a notícia que não ameaça, que interessa à fonte
fornecer, fica eliminado o conflito natural entre o jornalista e a fonte –
explica um repórter brasiliense de uma revista semanal. E hoje está tão
disseminada a valorização desse tipo de notícia, que só se tem acesso a elas
tornando-se cúmplice da fonte. Além disso, a nossa valorização profissional
depende do número de fontes de que dispomos.
Esse conivência
pode ter inúmeras causas. Às vezes, reside no envolvimento emocional com fonte,
postura favorecida pela própria vida da cidade, uma comunidade de políticos e
tecnocratas que aceita o jornalista como integrante do meio.
Uma outra armadilha
muito comum é a tentação de “investir” na fonte, tornar-se seu partidário,
pois, à medida que a fonte assume uma importância maior, torna-se também mais
importante como notícia.
São formas de
cumplicidade que eventualmente podem resvalar para o campo dos interesses
menores. Para abrir brechas nos inúmeros empregos públicos disponíveis, por
exemplo.
<><> As
“máfias”
Nesse momento,
entra-se num campo delicado. Fala-se, a seguir, das ocasiões em que os diversos
tentáculos do Poder se suavizam, e buscam a cooptação do jornalista por métodos
menos truculentos.
Para isso, a
máquina burocrática brasiliense criou uma série infindável de empregos e
privilégios funcionais, que estão permanentemente à disposição dos
jornalistas.
Os parlamentares,
por exemplo, oferecem passagens de avião de suas cotas particulares. Em
Brasília, contam-se histórias de jornalistas que conseguiram praticamente dar
uma volta ao mundo, às custas de passagens ofertadas.
A oferta de viagens
internacionais é feita praticamente por todos os ministérios. A maioria,
evidentemente, para a cobertura de viagens ministeriais trata-se de notícia, e
caberia às empresas recusá-la ou não. Outras vezes, porém, são meras
prodigalidades que visam premiar aqueles jornalistas mais fiéis.
Eventualmente,
costumam se colocar à disposição de jornalistas apartamentos funcionais
privativos dos funcionários de determinada repartição. A Câmara, em certa
época, chegou a possuir 8 apartamentos funcionais ocupados por jornalistas. Ao
tempo de Médici, havia pelo menos um setorista morando em apartamento funcional
da Presidência.
Do mesmo modo, ao
tempo de Humberto Barreto, como presidente da Caixa Econômica Federal, os
jornalistas tinham acesso a financiamento farto para aquisição de casa própria.
Enquanto presidente do Banco do Brasil, Karlos Rischbieter distribuía
Cheques-Ouro. E, quando Magalhães Pinto tentou lançar-se à Presidência da
República, o Banco Nacional facilitou a distribuição de cartão Nacional a
muitos jornalistas.
Some-se a
infindável quantidade de cargos à disposição de jornalistas em coordenadorias
de comunicação.
E mesmo os acertos
que são eventualmente feitos entre ministros e algumas publicações para a
colocação de jornalistas de seu lobby em determinados postos, com o ministério
responsabilizando-se por parte de seu salário.
Essas formas de
sedução do Poder acabam plantadas em uma categoria que até agora não conseguiu
sistematizar seu próprio código de ética.
Nos últimos tempos,
por exemplo, foram noticiados os métodos do que se denominou de “a máfia do
Ceará”. “Máfia”, no caso, refere-se mais ao fato de serem fechadas e possuírem
regras de lealdade rígida (não em relação ao leitor, mas aos componentes do
grupo).
A máfia cearense
começou a fincar seus alicerces no serviço público quando Flávio Marcílio se
tornou, pela primeira vez, presidente da Câmara, em 1973. Na época, ele trouxe
os primeiros, jornalistas cearenses, que se empregaram nas sucursais e jornais
locais, e foram abrindo caminho para os demais, que se distribuíram por
empregos públicos principalmente na Câmara e no Incra.
Recentemente, ao
assumir novamente a presidência da Câmara após uma disputa em que foi acusado
por seu adversário, Herbert Levy, de ter montado um verdadeiro lobby na
imprensa -Marcílio reinstaurou o empreguismo na casa. Sem maiores formalidades,
nomeou 22 jornalistas para o cargo de assessores de comunicação, recebendo
salários de Cr$ 35 mil. Dez eram conterrâneos e doze estavam diretamente
envolvidos na cobertura da Câmara pelo menos dois dos quais em cargo de chefia,
como coordenadores de equipe. E um jornalista que faz a cobertura do Congresso
simultâneamente para dois grandes diários foi premiado com um cargo de
confiança no gabinete da mesa diretora, com salário de Cr$ 50 mil.
Evidentemente, em nenhum desses casos exigiu-se que os jornalistas abrissem mão
de seus empregos na imprensa.
Repare-se no
seguinte exemplo, colhido ao acaso: um jornalista político de uma grande
publicação, com um salário estimado em Cr$ 50 mil, um emprego no Legislativo,
em cargo de confiança, que lhe rende Cr$ 35 mil, outro emprego, em cargo de
confiança, para a muIher, por mais Cr$ 35 mil; um emprego numa agência de
publicidade, de Cr$ 25 mil; e a suspeita generalizada de que recebe do
governador de seu próprio Estado.
<><> A
reação
Recentemente, houve
uma reação contra esse empreguismo, que produziu alguns frutos importantes.
Pela primeira vez, os jornalistas de Brasília passaram a contestar publicamente
essa forma de cooptação, e encaminharam a Flávio Marcílio um abaixo-assinado
com mais de duzentas assinaturas, protestando contra a nomeação sem concurso,
de seus 22 rapazes.
Ao mesmo tempo,
algumas sucursais decidiram não mais permitir que um setorista continue
trabalhando em uma área onde ele possua empregos desse tipo.
Mas ainda é uma
reação tímida e muito distante da elaboração de um código de ética que ao menos
inibisse tanto a ação dos jornalistas que vendem seus enfoques, como das
publicações que vendem sua linha editorial.
O Poder ao contato
com a imagem portanto, é isso. Ele envolve, seduz, recorre à chantagem
emocional, suborna, engana, ameaça cessar o fluxo de informações. E,
finalmente, passa à pressão direta.
É nesse ponto que
se manifesta a atuação das Divisões de Segurança e Informação, o braço
burocratizado do SNI presente em cada ministério.
As DSI foram estruturadas
praticamente no governo Castello Branco. Cada Ministério possuía uma Seção de
Segurança Nacional, vinculada ao Serviço Federal de Informação e
Contrainformação (SFICI), o embrião do SNI.
Sua função é a de
identificar os inimigos do regime, tanto entre funcionários como os
jornalistas que tentam seu credenciamento junto aos ministérios. Ela está
tecnicamente vinculada ao SNI e administrativamente a Ministério.
Certa vez o
Ministro Jarbas Passarinho comentou, em tom de blague, que no seu ministério havia
mais coronéis que nos regimentos de Brasília.
O DSI tende a
funcionar como todo organismo burocrático. Criado para administrar determinado
problema, sua importância funcional será tanto maior quanto maior for o
problema.
Essa dinâmica,
comum a todo organismo burocrático, faz os DSI agirem com um excesso de zelo
insuspeitado.
– Às vezes, eles
vetam um jornalista, a gente vai saber por que e eles contam que descobriram
que ele participava de movimento estudantil nos tempos de faculdade, conta um
coordenador de comunicação social.
Acrescente-se o
fato de que o sistema de informações não alcançou ainda a desejada eficácia. E,
às vezes, incorre em certos erros vulgares de avaliação das informações.
Há alguns anos, um
repórter do Jornal do Brasil, credenciado no Palácio no governo Médici, pediu
licença de um ano, foi para a Espanha. Quando voltou, pediu novas credenciais e
o Palácio negou. O SNI, que tinha concordado no primeiro credenciamento,
retirou a sua luz verde. O repórter recorreu às suas fontes para apurar as
razões do veto e soube que o SNI tinha encontrado muitas fotos suas ao lado de
Brizola e, por isso, o incluíra no rol dos suspeitos. As fotos eram da época em
que Brizola era o governador do Rio Grande do Sul e jornalista setorista do
Correio do Povo no Palácio Piratini.
O descredenciamento
é um fator de pressão muito grande. Sem ele, os setoristas terão problemas nos
ministérios, não poderão participar das viagens ministeriais e serão sempre
vistos sob suspeição.
<><> Jornalismo
dedutivo
Essa série de
limitações à ação do jornalista provoca inevitáveis reflexos na notícia
veiculada.
Ao sofrer a
intermediação da fonte, por exemplo, a notícia é depurada dos conflitos,
envolvimentos, disputas e influências que caracterizam. todo o processo de
tomada de decisão. O que chega à imprensa é um fato pretensamente objetivo,
politicamente neutro, que contribui para divulgar a imagem asséptica de
Brasília.
– Às vezes, em
algumas reunião do CDE, a notícia que nos chegava através das fontes era de que
o presidente Geisel recomendou isto, recomendou aquilo – conta um setorista da
área econômica. Mais tarde, ficávamos sabendo que o presidente havia dado uma
violenta bronca em determinado ministro, esmurrado a mesa, xingado.
Fonte: Jornal GGN
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