segunda-feira, 10 de março de 2025

Leonardo Sakamoto: “Vitória de ‘Ainda Estou Aqui’ provoca ranger de dentes em golpistas”

Como era de se esperar, a vitória de “Ainda Estou Aqui” como Melhor Filme Internacional fez a alegria dos dentistas devido ao ranger de dentes entre fãs da ditadura e golpistas que torciam contra o filme de Walter Salles. Enquanto boa parte do Brasil celebrava, recibos eram passados à exaustão na lojinha do X na madrugada desta segunda (3).

Não me entendam mal, ninguém é obrigado a gostar do filme, do diretor, dos atores, do roteiro, de cinema, da vida. A questão é a razão pela qual “Ainda Estou Aqui” atrai tanto ódio na extrema direita.

Não dei o nome dos santos, só trouxe alguns dos milagres: “O preço da picanha vai cair depois dessa bosta de prêmio?”; “Lula não dá sorte, ele dá dinheiro, Oscar comprado”; “O filme é estrelado por uma atriz comunista e Hollywood é um antro desse tipo de gente”; “Fernanda Torres só conseguiu chegar aonde chegou por ajuda da mamãe”; “Esquerdista comemorando premiação de diretor multimilionário herdeiro de banco”; “Agora, os problemas do Brasil acabaram né? Esse prêmio foi comprado pelo governo para desviar o que realmente importa”; “Oscar lixo premiou um filme lixo cheio de mentiras para ajudar o Lula”, e por aí vai.

Todo esse rancor mostra por que o filme é tão importante, não só para o Brasil como para o mundo.

A repercussão nas redes sociais dos Oscar atropelou todos os outros assuntos, inclusive o Carnaval e postagens tratando sobre um pedido de investigação sobre Eduardo Bolsonaro. Foi clima de final de Copa do Mundo.

Sucesso de público no país, ele reconta um período de censura, violência, arbitrariedades e assassinatos diluindo a política no drama familiar. Dessa forma, traz sutilmente a questão da ditadura para os espectadores, sendo, por isso, mais eficaz em espalhar a mensagem do que um filme engajado.

Por ser didático e focar na família, não ficou restrito à bolha atingiu, inclusive, conservadores. E, o mais importante: muitos jovens que parecem ignorar que a democracia que herdaram custou o suor, o sangue, a tortura e a saudade de muita gente.

Mas a profunda interpretação de Eunice Paiva por Fernanda Torres também conta uma história universal ao mostrar as consequências na vida das famílias que se tornam alvos da violência de regimes ditatoriais. Com a ascensão de governos autoritários, a história escrita por Marcelo Rubens Paiva e adaptada para as telas por Walter Salles é local e global ao mesmo tempo. E isso pegou nos eleitores da academia e no público, que vem lotando salas de cinema mundo afora.

Não à toa, em seu discurso de agradecimento, Walter Salles dedicou o prêmio a Eunice, afirmando “que durante uma perda sofrida em um regime autoritário, decidiu não se curvar e resistir”. Sob os indícios de ameaça para a sua democracia, muitos norte-americanos entendem a importância de história de resistência como essa.

A espetacular vitória do filme não é apenas a consagração de excepcionais interpretações em um baita filme baseado num livro para o qual faltam adjetivos. A luta de Eunice Paiva após seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, ser detido e morto pela ditadura que mandou no Brasil entre 1964 e 1985 é um lembrete ao mundo do que acontece à vida cotidiana quando golpes de Estado têm sucesso. E que, por isso, não podem ser esquecidos, perdoados, anistiados.

Golpes perdoados semeiam outros golpes no futuro. A anistia brasileira a torturadores, assassinos, golpistas e ditadores ajudou a engravidar o país de um extremismo que fez nova tentativa entre outubro de 2022 e 8 de janeiro de 2023, também com a participação de generais, além de civis. Que a merecida premiação lembre que esquecer não é uma possibilidade. Anistiar, muito menos.

 

¨      ‘A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram’. Por Sylvia Debossan Moretzsohn

— Olha, olha, olha!

Na TV, um noticiário sobre Rubens Paiva. Neste 2014, apareciam todos os dias notícias sobre o caso Rubens Paiva. Todos os dias, novidades. Ela sentadinha inerte na cadeira de rodas. Apareceram fotos dele de arquivo na tela. Era a foto do seu ex-marido, era o nome dele, falavam dele, desvendavam segredos sobre a morte dele:

— Olha, olha, olha!

Ela olhava. Com lágrimas. Ouviu a notícia. Começou a dizer baixinho:

— Tadinho, tadinho, tadinho…

É assim que Marcelo Rubens Paiva descreve, no livro Ainda estou aqui, a reação de sua mãe, que, apesar do avançado estágio do Alzheimer, teve a atenção despertada pelo noticiário da TV, sempre ligada na sala – nessa fase da doença, “a TV é um chiclete para os olhos” –, e deu o alerta.

No filme, o que passa na TV é a conclusão do relatório da Comissão Nacional da Verdade. Ouve-se o burburinho da família reunida na varanda. Fernanda Montenegro/Eunice Paiva está sozinha na sala, com ar ausente, diante da tela. De repente os olhos brilham, os músculos da face enrugada se contraem, o rosto se ilumina.

A representação silenciosa daquela emoção é muito mais poderosa do que se reproduzisse o que de fato – segundo o relato de Marcelo – aconteceu.

A conquista do Oscar de melhor filme estrangeiro culmina a trajetória vitoriosa de Ainda estou aqui e lhe confere um reconhecimento público num momento crucial da nossa vida política, quando não apenas os denunciados pela frustrada tentativa de golpe após as eleições de 2022 irão a julgamento como a própria Lei de Anistia de 1979 está entrando novamente em pauta: nesse caso, não se tratará de apreciar exclusivamente os casos de desaparecimentos, como o de Rubens Paiva, mas também os de “graves violações de direitos humanos” naquele período, o que envolve praticamente todo tipo de violência cometida pelos agentes do regime. Como disse o vice-presidente da Comissão de Anistia, José Carlos Moreira da Silva Filho, “o bordão ‘sem anistia’ para golpista, ‘sem anistia’ para quem defende tortura, ‘sem anistia’ para ditadura, agora popularizou-se”. Ainda estou aqui teve esse poderoso efeito fura-bolha, ao levar multidões ao cinema, gente que ignorava aquela história e se sensibilizou com ela, vibrou com a conquista de Fernanda Torres no Globo de Ouro e agora, no meio do carnaval, usou máscaras da atriz e pulou de alegria com vitória no Oscar. A excelente campanha de marketing não atraiu a atenção apenas ao filme: há relatos de pessoas simples – porteiros, diaristas – que ainda não o viram porque preferiram ler o livro primeiro.

Em meados de fevereiro, na entrevista ao programa de Christiane Amanpour, da CNN, após o filme ter sido indicado para concorrer a três categorias do Oscar, Walter Salles destacou que aquela não era uma história sobre um tempo passado, era sobre o tempo presente e a importância da memória. “Rodamos o filme em 2023 sem termos a mais pálida ideia de que teria havido uma tentativa fracassada de golpe de Estado no fim de 2022. Quando o filme estava sendo lançado no Brasil e acolhido pelo público, surgiram as notícias de que a Polícia Federal havia descoberto o plano do golpe. Então, no meio do lançamento do filme é que percebemos que, mais que nunca, o filme era sobre hoje, sobre o que estava acontecendo no país naquele exato momento. Foi uma coincidência extraordinária”.

Por isso é tão importante recordar – e atualizar – esses trechos do discurso de Ulysses Guimarães ao anunciar a nova Constituição, em 5 de outubro de 1988:

Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério.

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo!

A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado.

O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.

A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram.

Naquela época – mais ou menos como ocorreu em Portugal imediatamente após o 25 de Abril –, todos os fascistas haviam desaparecido. Os mais radicais eram no máximo de centro-direita.

Demorou para voltarem a mostrar a cara.

Naquela época talvez fosse possível falar genericamente em “sociedade” contra o Estado, ainda que parte dela tenha apoiado e sustentado o golpe de 64. Mas, na esteira da campanha por anistia ampla, geral e irrestrita e, a seguir, na campanha pelas Diretas, o desejo de mudança prevalecia.

Depois de recuperado o direito de votar para presidente, depois de o país viver o mais longo período de regime democrático de sua história, começou a ressurgir o movimento pelo retorno dos militares, com base na distorção do passado recente. Ditadura? Nunca houve. Ditadura era agora, com o PT no poder. Ditadura é o STF. Ou: ditadura houve sim, mas era necessária, para combater o comunismo e restabelecer a ordem.

Com o golpe jurídico-parlamentar de 2016, um defensor da tortura, da ditadura e do extermínio de opositores teve o caminho aberto para chegar ao poder. Pelo voto, com apoio popular. E por muito pouco – apesar de tudo, apesar, sobretudo, do seu comportamento durante a pandemia – não foi reeleito.

Hoje, é preciso reconhecer que a sociedade não é apenas Rubens Paiva. Mais ou menos metade está, ou ficou, do lado dos facínoras que o mataram.

Por isso é tão importante aproveitar a onda de popularidade que o filme alcançou, para que o bordão “sem anistia” continue a se espalhar, como vem ocorrendo durante este carnaval: para que a consciência do que foi a ditadura saia do gueto da esquerda, para que os facínoras de hoje sejam julgados e condenados pelo que fizeram, e para que tão cedo ninguém ouse pensar em rasgar a Constituição ou homenagear torturadores.

 

Fonte: UOL/Come Ananás

 

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