Leonardo Sakamoto: “Vitória de ‘Ainda Estou Aqui’ provoca
ranger de dentes em golpistas”
Como era de se esperar, a vitória de “Ainda Estou Aqui”
como Melhor Filme Internacional fez a alegria dos dentistas devido ao ranger de
dentes entre fãs da ditadura e golpistas que torciam contra o filme de Walter
Salles. Enquanto boa parte do Brasil celebrava, recibos eram passados à
exaustão na lojinha do X na madrugada desta segunda (3).
Não me entendam mal, ninguém é obrigado a gostar do
filme, do diretor, dos atores, do roteiro, de cinema, da vida. A questão é a
razão pela qual “Ainda Estou Aqui” atrai tanto ódio na extrema direita.
Não dei o nome dos santos, só trouxe alguns dos
milagres: “O preço da picanha vai cair depois dessa bosta de prêmio?”; “Lula
não dá sorte, ele dá dinheiro, Oscar comprado”; “O filme é estrelado por uma
atriz comunista e Hollywood é um antro desse tipo de gente”; “Fernanda Torres
só conseguiu chegar aonde chegou por ajuda da mamãe”; “Esquerdista comemorando
premiação de diretor multimilionário herdeiro de banco”; “Agora, os problemas
do Brasil acabaram né? Esse prêmio foi comprado pelo governo para desviar o que
realmente importa”; “Oscar lixo premiou um filme lixo cheio de mentiras para
ajudar o Lula”, e por aí vai.
Todo esse rancor mostra por que o filme é tão
importante, não só para o Brasil como para o mundo.
A repercussão nas redes sociais dos Oscar atropelou
todos os outros assuntos, inclusive o Carnaval e postagens tratando
sobre um pedido de investigação sobre Eduardo Bolsonaro. Foi clima de
final de Copa do Mundo.
Sucesso de público no país, ele reconta um período de
censura, violência, arbitrariedades e assassinatos diluindo a política no drama
familiar. Dessa forma, traz sutilmente a questão da ditadura para os espectadores,
sendo, por isso, mais eficaz em espalhar a mensagem do que um filme engajado.
Por ser didático e focar na família, não ficou restrito
à bolha atingiu, inclusive, conservadores. E, o mais importante: muitos jovens
que parecem ignorar que a democracia que herdaram custou o suor, o sangue, a
tortura e a saudade de muita gente.
Mas a profunda interpretação de Eunice Paiva por
Fernanda Torres também conta uma história universal ao mostrar as consequências
na vida das famílias que se tornam alvos da violência de regimes ditatoriais.
Com a ascensão de governos autoritários, a história escrita por Marcelo Rubens
Paiva e adaptada para as telas por Walter Salles é local e global ao mesmo
tempo. E isso pegou nos eleitores da academia e no público, que vem lotando
salas de cinema mundo afora.
Não à toa, em seu discurso de agradecimento, Walter
Salles dedicou o prêmio a Eunice, afirmando “que durante uma perda sofrida em
um regime autoritário, decidiu não se curvar e resistir”. Sob os indícios de
ameaça para a sua democracia, muitos norte-americanos entendem a importância de
história de resistência como essa.
A espetacular vitória do filme não é apenas a
consagração de excepcionais interpretações em um baita filme baseado num livro
para o qual faltam adjetivos. A luta de Eunice Paiva após seu marido, o
ex-deputado Rubens Paiva, ser detido e morto pela ditadura que mandou no Brasil
entre 1964 e 1985 é um lembrete ao mundo do que acontece à vida cotidiana
quando golpes de Estado têm sucesso. E que, por isso, não podem ser esquecidos,
perdoados, anistiados.
Golpes perdoados semeiam outros golpes no futuro. A
anistia brasileira a torturadores, assassinos, golpistas e ditadores ajudou a
engravidar o país de um extremismo que fez nova tentativa entre outubro de 2022
e 8 de janeiro de 2023, também com a participação de generais, além de civis.
Que a merecida premiação lembre que esquecer não é uma possibilidade. Anistiar,
muito menos.
¨ ‘A sociedade foi Rubens Paiva, não os
facínoras que o mataram’. Por Sylvia Debossan Moretzsohn
— Olha, olha, olha!
Na TV, um noticiário sobre Rubens Paiva. Neste 2014,
apareciam todos os dias notícias sobre o caso Rubens Paiva. Todos os dias,
novidades. Ela sentadinha inerte na cadeira de rodas. Apareceram fotos dele de
arquivo na tela. Era a foto do seu ex-marido, era o nome dele, falavam dele,
desvendavam segredos sobre a morte dele:
— Olha, olha, olha!
Ela olhava. Com lágrimas. Ouviu a notícia. Começou a
dizer baixinho:
— Tadinho, tadinho, tadinho…
É assim que Marcelo Rubens Paiva descreve, no
livro Ainda estou aqui, a reação de sua mãe, que, apesar do
avançado estágio do Alzheimer, teve a atenção despertada pelo noticiário da TV,
sempre ligada na sala – nessa fase da doença, “a TV é um chiclete para os
olhos” –, e deu o alerta.
No filme, o que passa na TV é a conclusão do relatório
da Comissão Nacional da Verdade. Ouve-se o burburinho da família reunida na
varanda. Fernanda Montenegro/Eunice Paiva está sozinha na sala, com ar ausente,
diante da tela. De repente os olhos brilham, os músculos da face enrugada se
contraem, o rosto se ilumina.
A representação silenciosa daquela emoção é muito mais
poderosa do que se reproduzisse o que de fato – segundo o relato de Marcelo –
aconteceu.
A conquista do Oscar de melhor filme estrangeiro
culmina a trajetória vitoriosa de Ainda estou aqui e lhe confere
um reconhecimento público num momento crucial da nossa vida política, quando
não apenas os denunciados pela frustrada tentativa de golpe após as eleições de
2022 irão a julgamento como a própria Lei
de Anistia de 1979 está entrando novamente em pauta: nesse caso, não
se tratará de apreciar exclusivamente os casos de desaparecimentos, como o de
Rubens Paiva, mas também os de “graves violações de direitos humanos” naquele
período, o que envolve praticamente todo tipo de violência cometida pelos
agentes do regime. Como disse o vice-presidente da Comissão de Anistia, José
Carlos Moreira da Silva Filho, “o bordão ‘sem anistia’ para golpista, ‘sem
anistia’ para quem defende tortura, ‘sem anistia’ para ditadura, agora
popularizou-se”. Ainda estou aqui teve esse
poderoso efeito fura-bolha, ao levar multidões ao cinema, gente que ignorava
aquela história e se sensibilizou com ela, vibrou com a conquista de Fernanda
Torres no Globo de Ouro e agora, no meio do carnaval, usou máscaras da atriz e
pulou de alegria com vitória no Oscar. A excelente campanha de marketing não atraiu
a atenção apenas ao filme: há relatos de pessoas simples – porteiros, diaristas
– que ainda não o viram porque preferiram ler o livro primeiro.
Em meados de fevereiro, na entrevista ao programa de
Christiane Amanpour,
da CNN, após o filme ter sido indicado para concorrer a três categorias do
Oscar, Walter Salles destacou que aquela não era uma história sobre um tempo
passado, era sobre o tempo presente e a importância da memória. “Rodamos o
filme em 2023 sem termos a mais pálida ideia de que teria havido uma tentativa
fracassada de golpe de Estado no fim de 2022. Quando o filme estava sendo
lançado no Brasil e acolhido pelo público, surgiram as notícias de que a
Polícia Federal havia descoberto o plano do golpe. Então, no meio do lançamento
do filme é que percebemos que, mais que nunca, o filme era sobre hoje, sobre o
que estava acontecendo no país naquele exato momento. Foi uma coincidência
extraordinária”.
Por isso é tão importante recordar – e atualizar –
esses trechos do discurso de Ulysses Guimarães ao anunciar a nova Constituição,
em 5 de outubro de 1988:
Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição,
trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas
para a cadeia, o exílio e o cemitério.
Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo!
A sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia
ou o antagonismo do Estado.
O Estado prendeu e exilou. A sociedade, com Teotônio
Vilella, pela anistia, libertou e repatriou.
A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o
mataram.
Naquela época – mais ou menos como ocorreu em Portugal
imediatamente após o 25 de Abril –, todos os fascistas haviam desaparecido. Os
mais radicais eram no máximo de centro-direita.
Demorou para voltarem a mostrar a cara.
Naquela época talvez fosse possível falar genericamente
em “sociedade” contra o Estado, ainda que parte dela tenha apoiado e sustentado
o golpe de 64. Mas, na esteira da campanha por anistia ampla, geral e
irrestrita e, a seguir, na campanha pelas Diretas, o desejo de mudança
prevalecia.
Depois de recuperado o direito de votar para
presidente, depois de o país viver o mais longo período de regime democrático
de sua história, começou a ressurgir o movimento pelo retorno dos militares,
com base na distorção do passado recente. Ditadura? Nunca houve. Ditadura era
agora, com o PT no poder. Ditadura é o STF. Ou: ditadura houve sim, mas era
necessária, para combater o comunismo e restabelecer a ordem.
Com o golpe jurídico-parlamentar de 2016, um defensor
da tortura, da ditadura e do extermínio de opositores teve o caminho aberto
para chegar ao poder. Pelo voto, com apoio popular. E por muito pouco – apesar
de tudo, apesar, sobretudo, do seu comportamento durante a pandemia – não foi
reeleito.
Hoje, é preciso reconhecer que a sociedade não é apenas
Rubens Paiva. Mais ou menos metade está, ou ficou, do lado dos facínoras que o
mataram.
Por isso é tão importante aproveitar a onda de
popularidade que o filme alcançou, para que o bordão “sem anistia” continue a
se espalhar, como vem ocorrendo durante este carnaval: para que a consciência
do que foi a ditadura saia do gueto da esquerda, para que os facínoras de hoje
sejam julgados e condenados pelo que fizeram, e para que tão cedo ninguém ouse
pensar em rasgar a Constituição ou homenagear torturadores.
Fonte: UOL/Come
Ananás
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