A democracia está à beira do abismo na
América Central
Os últimos quinze anos
testemunharam uma tremenda agitação política na América Central. El Salvador
caiu sob um regime repressivo e autoritário, enquanto Honduras se libertou de
um; o presidente Daniel Ortega se isolou cada vez mais de antigos aliados
sandinistas na Nicarágua; e na Guatemala, uma onda popular de indignação contra
uma classe dominante entrincheirada viu um improvável social-democrata assumir
a presidência.
Em meio a ditaduras de fato, reformistas
sitiados e demandas populares por mudanças, a infraestrutura política instalada
como parte da transição pós-guerra da América Central na década de 1990 perdeu
amplamente a legitimidade. Essa exaustão liberal é indicativa de uma crise mais
profunda, a da economia política neoliberal pós-guerra do istmo — que, como o
neoliberalismo no âmbito global, desestabilizou e estagnou. Analiso abaixo essa
crise através da perspectiva dos eventos políticos recentes em El Salvador e
Guatemala. Para isso, começo com a transição para a democracia que se seguiu à
derrota dos movimentos revolucionários da região na década de 1990.
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A transição
Por décadas ao longo do final
do século XX — trinta e seis anos no caso da Guatemala — as repúblicas da
América Central foram abaladas por guerras civis brutais entre regimes
militares anticomunistas apoiados pelos EUA e exércitos de libertação nacional
lutando para libertar as massas empobrecidas do istmo da opressão oligárquica e
da intervenção imperialista. Na década de 1990, no entanto, a região começou a
transição das ditaduras para a democracia liberal e o regime de acumulação
neoliberal. Na Nicarágua, a revolução sandinista de 1979 foi seguida por uma
sangrenta “Guerra dos Contras” com paramilitares apoiados pelos EUA, que durou
uma década, contra o governo recém-estabelecido, finalmente forçando uma
eleição em 1990 que viu os sandinistas perderem o poder. Em El Salvador e na
Guatemala, acordos de paz intermediaram o fim das lutas de libertação nacional
em 1992 e 1996, respectivamente.
Como observa o
historiador Greg Grandin, “o afastamento da América Latina em relação às
ditaduras militares na década de 1980 foi menos uma transição do que uma
conversão para uma definição particular de democracia”. De uma demanda
amplamente concebida por autodeterminação, desenvolvimento econômico equitativo
e bem-estar social, a democracia foi reduzida a uma questão legal de direitos
políticos e liberdades de mercado. Em 1988, Franz Hinkelammert viu logo no início que
a transição democrática era, essencialmente, um eufemismo para ajuste
estrutural. Junto com o “Consenso de Washington” e prescrições políticas para
privatização, desregulamentação e liberalização comercial, a democracia se
tornou “um pacote de medidas a serem aplicadas”. Sob o paradigma imposto pelos
Estados Unidos, seus instrumentos financeiros internacionais do Fundo Monetário
Internacional e do Banco Mundial, e elites locais que se beneficiaram da
reestruturação, são “os negócios e o mercado [que] produzem liberdade, e a
democracia a administra”. Essa nova direita tecnocrática descartaria seus
esquadrões da morte fascistas e sua ditadura em favor do pragmatismo de aço do
capital.
Em El Salvador e na Guatemala, a transição
gerenciada após décadas de atrocidades estatais foi realizada por meio de um
modelo de “verdade e reconciliação” modelo que foi aplicado primeiro no Cone
Sul no início dos anos 1980 para pôr fim aos movimentos de guerrilha daquela
região e às sangrentas campanhas contrarrevolucionárias apoiadas pelos EUA nas
mãos de ditaduras militares implacáveis. Grandin mapeia como as primeiras
comissões da verdade na Bolívia e na Argentina pretendiam levar a processos
contra autoridades que perpetraram as piores atrocidades. No entanto, com os
movimentos revolucionários derrotados, os militares vencedores dessas guerras
de contrainsurgência mantiveram sua impunidade. Como resultado, a missão dessas
comissões mudou, passando de responsabilizar legalmente os perpetradores pela
violência política para questões aparentemente apolíticas de afirmação de
valor, cura nacional e superação da polarização. No discurso oficial, as
comissões da verdade foram transformadas em instrumentos para restaurar uma
ordem liberal fraturada.
Na leitura de Grandin, a Guatemala resistiu
a esse molde. Ele argumenta que a determinação da Comisión de Esclarecimiento Histórico (CEH,
comissão da verdade da Guatemala de 1999) de que a campanha de terror estatal
apoiada pelos EUA que tirou a vida de centenas de milhares de indígenas
guatemaltecos atingiu o limiar do genocídio foi uma postura inequivocamente
política, levando em consideração a história de extrema desigualdade do país
para condenar a classe dominante racista e pedir uma ampla reestruturação do
Estado. Mas o Estado guatemalteco enfrentou as conclusões da CEH com silêncio,
protegendo os perpetradores e negando sistematicamente justiça às suas vítimas.
Como mostra a
acadêmica guatemalteca Gabriela Escobar Urrutia, a memória do conflito na
Guatemala se estabeleceu amplamente nos mesmos padrões desmobilizadores que
prevaleciam em outros lugares, promovendo uma noção de vítimas despolitizadas e
passivas de uma violência irracional e deshistoricizada.
O derramamento de sangue na Guatemala
atingiu uma escala nunca amtes vista no hemisfério. O conflito seguiu o golpe
apoiado pela CIA contra o presidente Jacobo Arbenz em 1954, uma das
intervenções seminais de mudança de regime dos EUA do século XX, que derrubou a
revolução democrática iniciada com a eleição de Juan José Arévalo em 1944 e,
com ela, um projeto social de reforma agrária e democratização em favor do
governo militar anticomunista e do terror de Estado para manter a economia
agrária exportadora profundamente racializada do país. Quando a Unidade
Revolucionária Nacional Guatemalteca (URNG) assinou um acordo com o governo em
29 de dezembro de 1996, a guerra havia causado um dano espantoso. A comissão da
verdade de 1999 relatou 150.000 execuções extrajudiciais e 45.000
desaparecimentos, 93% deles executados pelo Estado, e determinou que o ataque
deliberado e indiscriminado às comunidades indígenas maias por operações de
terra arrasada entre 1981 e 1983, sob o comando do general Efraín Ríos Montt,
equivalia a genocídio.
O conflito na Guatemala foi prolongado e
difuso, e os insurgentes estavam frequentemente divididos e dispersos por um
território grande e diverso. Na pequena e densamente povoada El Salvador, o
exército rebelde tinha cerca de dez mil homens, ocupou importantes faixas de
território liberado no campo e executou uma grande ofensiva na capital no final
de 1989 que ajudou a forçar as negociações. No entanto, ambas as nações
sofreram com campanhas de contrainsurgência apoiadas pelos EUA que arrasaram
aldeias inteiras, massacraram civis, torturaram e executaram dissidentes e
promoveram um espetáculo grotesco de violência estatal. Em El Salvador, a
comissão da verdade de 1993 contabilizou cerca de 75.000 mortes e dez mil
desaparecimentos, atribuindo apenas 5% da violência às guerrilhas.
Em relação à URNG, a Frente Farabundo Martí
de Libertação Nacional (FMLN) de El Salvador entrou nas negociações de paz a
partir de uma posição de força. Os insurgentes reivindicaram os Acordos de 1992
como uma vitória, conquistando a desmilitarização do Estado, a desmobilização
dos insurgentes e uma tênue infraestrutura liberal para a democracia
representativa. A FMLN se tornou um partido político bem-sucedido, ganhando uma
parcela crescente de legisladores e prefeituras ao longo das décadas de 1990 e
2000. Mas o período revolucionário do Terceiro Mundo havia arrefecido, e a
contrarrevolução neoliberal estava em ascensão. Reformas socioeconômicas para
tratar as causas estruturais da guerra civil, como distribuição de terras e
política industrial progressiva, foram deixadas de fora da mesa de negociações
e, enquanto a FMLN ganhou experiência e apoio nas urnas, quatro governos
consecutivos de direita implementaram devastadoras reformas liberalizantes.
Na Guatemala, o acordo veio ainda mais
tarde. Naquela época, a poeira do colapso da União Soviética havia baixado, e
muitos movimentos de esquerda haviam trocado suas aspirações revolucionárias
por organizações sem fins lucrativos, empresas socialmente responsáveis e uma preocupação abstrata com
os direitos humanos. Os Acordos de Paz levaram à desmobilização insurgente e à
participação na vida cívica, à restauração de eleições democráticas e ao
reconhecimento de identidades e direitos indígenas. Mas, assim como em El
Salvador, desigualdades materiais fundamentais permaneceram sem solução. A
esquerda política da Guatemala — e os partidos políticos em geral — assumiram
formas institucionais mais fracas e provisórias.
O resultado em ambas as nações foi um
cenário de vasta desigualdade e empobrecimento. A reestruturação neoliberal
criou um novo papel subordinado para a região em uma economia globalizada
dominada pelos EUA, fornecendo mão de obra barata para fábricas de montagem e
matérias-primas para exportação. As indústrias agroexportadoras e extrativas
continuaram sendo um pilar da acumulação na Guatemala, onde a concentração, a
contaminação ambiental e as desapropriações no campo para dar lugar a
megaprojetos de mineração e energia e monoculturas continuam sendo uma fonte
constante de conflito e deslocamento. A maior parte da população, no entanto,
foi excluída desse modelo. Em 2010, cerca de 60% dos salvadorenhos e 75% dos
guatemaltecos trabalhavam fora
dos mercados formais de trabalho em atividades como vendas ambulantes,
serviços, construção e agricultura, sem acesso a benefícios ou garantias de
salário mínimo.
As crescentes reservas de jovens da classe
trabalhadora excluídos e despossuídos por esse modelo predatório de acumulação
foram empurrados para as faixas mais baixas do mercado de trabalho dos EUA como
trabalhadores migrantes criminalizados ou encontraram subsistência nos
crescentes mercados ilícitos da região, cada vez mais dominados por gangues
criminosas nascidas em prisões dos EUA e bairros de imigrantes da classe
trabalhadora e exportados para a América Central por meio de políticas de
deportação em massa ao longo da década de 1990. E, apesar dos ganhos políticos
de atores como a FMLN de El Salvador e diversos movimentos sociais para se
defender contra os novos cercamentos, o poder executivo e judicial permaneceram
firmemente nas mãos da burguesia oligárquica.
Esta é a economia política do pós-guerra
que finalmente cedeu no final dos anos 2000, quando a hegemonia neoliberal
sofreu um golpe crítico com a crise financeira global e a recessão subsequente.
Em seu rastro, a política, como de costume, foi virada de cabeça para baixo em
ambas as nações, preparando o caminho para as crises democráticas que cada uma
enfrenta hoje.
·
El Salvador
Avitória presidencial da FMLN
em 2009 representou uma primeira ruptura da ordem do pós-guerra, uma rejeição
retumbante das políticas predominantes de austeridade, dependência e corrupção
em favor de uma alternativa social-democrata em um momento de política de
esquerda ascendente em todo o hemisfério. Começando no final da década de 1990,
a “Maré Rosa” de governos progressistas foi eleita democraticamente na América
Latina, respondendo aos fracassos do neoliberalismo com gastos sociais robustos
e políticas redistributivas. Ao longo de dois mandatos (2009–2014 e 2014–2019),
a FMLN promulgou grandes investimentos sociais e reformas democráticas:
removeram taxas de serviço para hospitais públicos e criaram uma rede nacional
de clínicas comunitárias gratuitas e voltadas à medicina preventiva; apoiaram
cooperativas agrícolas nacionais; forneceram refeições e uniformes escolares
públicos gratuitos e de origem local; estabeleceram serviços e proteções para
grupos historicamente excluídos, incluindo mulheres, crianças, comunidade
LGBTQIAPN+ e salvadorenhos indígenas; mecanismos de transparência governamental
obrigatórios; e muito mais. Mas a sagacidade política que permitiu ao partido
alcançar o poder presidencial contribuiria para
sua queda. Em 2019, a FMLN foi ultrapassada por um desertor ambicioso apoiado
por uma coalizão ascendente de interesses burgueses que a própria FMLN havia
fortalecido em um esforço para enfraquecer o partido tradicional de direita e
seus patrocinadores oligárquicos.
O presidente Nayib Bukele, um publicitário
da geração Y e ex-prefeito pelaa FMLN cuja família de ascendência palestina
fazia parte de uma fração favorecida do capital comercial, habilmente se
posicionou como um outsider insurgente. Ele capitalizou a agressiva campanha de
desestabilização da direita contra a governança de esquerda para desacreditar
ambos os lados, traçando falsas equivalências e se autointitulando um salvador
em meio a um establishment político irremediavelmente corrupto. Onde a FMLN
falhou em transformar a vida cotidiana de muitos salvadorenhos no que diz
respeito a insegurança econômica e a violência social, Bukele prometeu
pessoalmente a libertação.
A eleição de Bukele provou ser a segunda
ruptura com a ordem do pós-guerra. Ele desdenhou dos Acordos de Paz afirmando
que eram uma “farsa”, classificando-os como um pacto cínico projetado para
beneficiar vilões conspiradores — em sua narrativa, tanto as guerrilhas quanto
a extrema direita — às custas de uma população civil desamparada, apolítica e
vitimizada. Na prática, ele reverteu de maneira constante seus modestos ganhos.
Em seu primeiro ano como presidente, invadiu a legislatura com os militares
para forçar uma votação sobre um pacote de empréstimos para financiamento de
segurança. Ele aproveitou a pandemia de COVID-19 para declarar um Estado de
exceção militarizado, desencadeando uma crise constitucional prolongada
enquanto a Suprema Corte buscava conter os excessos do executivo. Depois de
garantir a maioria legislativa nas eleições de meio de mandato em 2021, seu
partido demitiu e substituiu ilegalmente o procurador-geral e todos os cinco
magistrados da Câmara Constitucional do tribunal superior, juntamente com
centenas de juízes de tribunais inferiores. Quando o acordo secreto de Bukele
com as principais gangues criminosas do país para reduzir a taxa de homicídios
entrou em colapso em março de 2022 e os assassinatos aumentaram horrivelmente,
seu partido ordenou outro Estado de exceção, suspendendo os direitos
constitucionais ao devido processo legal, representação legal, presunção de
inocência, liberdade de associação e muito mais. Desta vez, ele não encontrou
oposição dos tribunais. O Estado de exceção segue em vigor desde então.
A “guerra contra as gangues” de Bukele viu
cerca de 80.000 pessoas presas em buscas massivas e indiscriminadas somente nos
dois primeiros anos. A repressão militarizada expulsou muitos dos gangsters de
rua de suas esquinas, proporcionando um apreciado alívio às comunidades da
classe trabalhadora alvos de pequenas extorsões e assoladas por violentas guerras
territoriais. Esse sucesso aparente, que esconde a cumplicidade da
administração com o narcotráfico de alto nível e o crime organizado, rendeu a
Bukele boa vontade suficiente para engajá-lo em uma tentativa de reeleição que
desafiava a constituição em fevereiro de 2024. Ao mesmo tempo, ele colocou suas
habilidades publicitárias para funcionar, projetando uma imagem internacional
de linha dura no combate ao crime e aprimorando sua marca como um ícone de
extrema direita. Ele foi a atração principal da Conservative Political Action Conference (CPAC)
em fevereiro de 2024, concedeu várias entrevistas a Tucker Carlson e cortejou
agressivamente o grupo MAGA dos
EUA, recebendo Carlson, Donald Trump Jr. e o congressista Matt Gaetz, que logo
cairia em desgraça, para sua posse em junho de 2024 que marcou o início de um
segundo mandato inconstitucional; Gaetz mais tarde estabeleceu o
“US-El Salvador Caucus” no Congresso
para promover a agenda e a imagem de Bukele em Washington.
Neste período, El Salvador obteve a maior
taxa de encarceramento do mundo. Muitos prisioneiros foram mantidos por quase
três anos sem julgamento, sem acesso a advogados, visitas familiares, cuidados
médicos e até mesmo comida suficiente, enquanto alguns são submetidos à
violência e tortura pelas autoridades. Grupos de direitos humanos identificaram
pelo menos 26.000 inocentes entre os detidos, com mais de 360 mortes confirmadas atrás
das grades, muitas devido a negligência médica, outras indicando homicídio.
Ordens judiciais para libertação por motivos humanitários ou outros são
rotineiramente ignoradas pelas autoridades prisionais.
Após a vitória presidencial de Bukele em
2019, importantes interesses oligárquicos se bandearam para seu campo, enquanto
os políticos de direita que se recusaram foram levados ao exílio ou presos. Mas
o verdadeiro inimigo de Bukele sempre foi a esquerda. Ele começou com processos
gerais de ex-membros do gabinete da FMLN, autoridades eleitas e líderes
partidários por acusações forjadas de corrupção. Sob o Estado de exceção, o
alcance se ampliou para atingir ex-combatentes e líderes de movimentos sociais,
incluindo comunidades organizadas defendendo seus territórios de investidores
apoiados pelo governo e empreendimentos extrativos.
À medida que a administração carente de
dinheiro avança com demissões em massa e austeridade, os líderes sindicais do
setor público foram recebidos com repressão e prisão; mais de 22.000 trabalhadores foram
demitidos desde 2019 e pelo menos dezesseis líderes sindicais foram presos
desde 2022. Junto com os vendedores ambulantes informais, esses setores estão
na linha de frente da estratégia do regime de acumulação por desapropriação.
Tendo falhado em projetar uma economia em torno do Bitcoin após tornar a
volátil criptomoeda em moeda legal em 2021, ele está usando seu Estado policial
para tirar os pobres do litoral e dos centros urbanos do país para abrir
caminho para a especulação imobiliária, o turismo internacional e a exploração
de recursos naturais. Após a recente visita do Secretário de Estado Marco
Rubio, Bukele lançou um
novo, embora improvável, empreendimento: alugar seu sistema penal para os
Estados Unidos armazenarem deportados de qualquer nacionalidade e até mesmo cidadãos
americanos.
Bukele responde aos críticos apontando para
sua popularidade persistente, tendo garantido sua reeleição em fevereiro de
2024 com 83% dos votos. Embora a estratégia incomparável de comunicação e
publicidade internacional do presidente sem dúvida desempenhe um papel
importante na sustentação de seu apoio, grande parte da população estava
disposta a tolerar a repressão em troca de um alívio dos tormentos das gangues.
Esse apoio, no entanto, não é incondicional. Nas eleições gerais de fevereiro
de 2024, os legisladores e prefeitos de Bukele receberam significativamente
menos votos do que ele, mesmo depois de reescreverem todo
o sistema eleitoral do pós-guerra para favorecer seu partido e efetivamente
eliminar a oposição. Desde então, seu partido “Novas Ideias”, que detém uma
supermaioria na legislatura e 64% dos governos municipais, tem sido atormentado
por escândalos de corrupção, enquanto o descontentamento aumenta diante de uma
crise crescente com o aumento do custo de vida e a recente decisão imprudente e
impopular de anular a
histórica proibição de mineração de metais do país em 2017. No entanto, até
agora, resta pouco de qualquer via democrática para um desafio eleitoral.
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Guatemala
Os anos 2010 viram uma série de
desafios a décadas de silêncio estatal, supressão e negação das atrocidades da
guerra, e ao governo racista e corrupto da elite na Guatemala. Talvez o mais
emblemático, esses desafios incluíram o julgamento de 2013 do General Ríos
Montt por genocídio e as mobilizações em massa de 2015 que derrubaram o
presidente Otto Pérez Molina em meio a um escândalo de corrupção metastático.
Ambos os eventos foram conquistas históricas contra a impunidade no país, ao
mesmo tempo em que revelaram os limites nítidos da justiça sob o sistema do
pós-guerra. Essas contradições culminaram com a presidência de Bernardo
Arévalo, eleito em 2023.
Em 2001, comunidades sobreviventes e
organizações de direitos humanos entraram com uma ação judicial contra o
General Efraín Ríos Montt, cujo mandato sangrento como presidente de fato da
Guatemala de 1982 a 1983 foi encerrado por golpes militares. A ação judicial
citou o assassinato de 1.771 indígenas Maya
Ixil guatemaltecos e o deslocamento forçado de dezenas de
milhares de outros mais sob sua liderança como comandante-chefe, pelo qual o
Presidente Ronald Reagan lamentou que
o general estava “tendo uma má reputação”. Mas Ríos Montt foi protegido de
processo como um congressista em exercício com o partido de extrema direita
Frente Republicana Guatemalteca que ele fundou em 1989. Foi somente após o
término de seu mandato em 2012 que a Procuradora Geral Claudia Paz y Paz
apresentou uma acusação contra ele por genocídio e crimes contra a humanidade.
O caso foi a julgamento em 2013.
A acusação, que também teve como alvo o
ex-diretor de inteligência militar José Mauricio Rodríguez Sánchez, foi um
evento dramático e decisivo na história da Guatemala, um acerto de contas há muito
buscado pelas comunidades e organizações que enfrentaram o peso do terror
estatal e um momento radicalizante para uma geração mais jovem do pós-guerra
confrontando sua história pela primeira vez. Em 10 de maio de 2013, Ríos Montt,
de oitenta e sete anos, foi condenado e sentenciado a oitenta anos de prisão.
Mas a vitória durou pouco. Dez dias depois, o Tribunal Constitucional anulou os
procedimentos. O novo julgamento finalmente começou em janeiro de 2015, mas não
havia sido concluído na época da morte do ditador em abril de 2018.
Naquele momento, o país havia experimentado
outro triunfo agridoce. Em 2015, uma investigação da Comissão Internacional
Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG, em espanhol), apoiada pela ONU,
revelou uma elaborada conspiração de fraude alfandegária que acabou implicando tanto
a vice-presidente Roxana Baldetti quanto o presidente Otto Pérez Molina, um
ex-membro das forças especiais Kaibiles treinadas pelos EUA que perpetraram
notórios massacres e atrocidades nos tempos de guerra. A indignação pública foi
galvanizada no maior movimento de protesto em massa do país desde a Revolução
de Outubro de 1944. Em meio a semanas de mobilizações históricas, tanto
Baldetti quanto Pérez Molina foram sucessivamente destituídos de imunidade,
presos, julgados e, eventualmente, condenados por fraude, lavagem de dinheiro e
enriquecimento ilícito.
Comentaristas anunciaram uma
“Primavera Guatemalteca”, e a capital estava eufórica com a celebração. Mas o
enquadramento liberal anticorrupção do movimento, que era liderado por
guatemaltecos de classe média, ladinos (identificação não indígena) em grande
parte urbanos, limitou as
direções nas quais a energia popular poderia ser canalizada. Implícita nos
apelos para a expulsão das maçãs podres estava a noção de um sistema funcional
que precisava apenas ser expurgado de seus elementos nefastos para restaurar a
governança adequada. Essa visão contrastava fortemente com os apelos dos
movimentos indígenas contemporâneos para a refundação da
Guatemala como um Estado plurinacional por meio de uma assembleia constituinte
popular, no estilo do Equador ou da Bolívia. Depois que as multidões se
dispersaram, os eleitores elegeram um comediante apoiado pelos militares, Jimmy Morales, para
substituir Pérez Molina. Quando a CICIG abriu investigações sobre Morales por
financiamento ilícito de campanha, ele se recusou a renovar o mandato da
comissão.
Os anos seguintes viram uma reação massiva
contra juízes, promotores, jornalistas e ativistas. A procuradora-geral María
Consuelo Porras, cujo primeiro mandato começou em 2018 e foi renovado em 2022,
desmantelou a infraestrutura anticorrupção existente e perseguiu dissidentes.
Dezenas de trabalhadores do ramo jurídico e da mídia fugiram para
o exílio, enquanto outros, como o veterano repórter e editor Rubén Zamora,
foram presos. Foi nesse clima de crescente censura, criminalização e repressão
que Bernardo Arévalo foi eleito presidente em 2023.
Filho do primeiro presidente
democraticamente eleito do país, Arévalo concorreu como um candidato improvável
pelo pequeno partido Semilla, de
centro-esquerda. Depois que a concorrente popular favorita Thelma Cabrera, uma
candidata indígena Maia Mam que
concorreu em uma plataforma para uma Assembleia Constitucional popular e
plurinacional, foi impedida de concorrer pelas mesmas práticas de lawfare que têm como alvo ativistas,
jornalistas e juristas, a chapa do Semilla venceu
facilmente no primeiro e no segundo turnos, impulsionada pela profunda
ressonância histórica do nome Arévalo. A base do Semilla era composta em grande parte por
eleitores jovens e urbanos, incluindo muitos politizados pelo julgamento de
Ríos Montt, mas o partido também ganhou apoio em setores rurais e indígenas.
Esse apoio se mostrou crítico quando Porras liderou esforços para
minar os resultados e suspender as credenciais do partido. Poderosas
organizações indígenas — que, juntamente com organizações camponesas, que são
geralmente atores políticos mais relevantes na Guatemala do que os sindicatos
convencionais — convocaram uma
greve nacional por tempo indeterminado, mobilizando bloqueios de estradas por
todo o país e se reunindo na capital para apoiar o presidente eleito quando
legisladores da oposição planejaram uma última tentativa de impedir a posse.
Agora no cargo, Arévalo enfrenta obstrução
deliberada e desestabilização por um procurador-geral inimigo que ele até agora
não conseguiu remover, uma Suprema Corte adversa e um exército inquieto. Com
minoria no Congresso e o poder judiciário capturado pela direita e seus
elementos criminosos associados, o primeiro ano da presidência do Semilla foi caracterizado por uma sensação
de paralisia. Em vez disso, Porras intensificou seus ataques, acelerando
acusações contra políticos do partido, incluindo ordenando a prisão de
um membro do gabinete e fazendo uma cruzada para
banir o Semilla. O governo que
prometeu transformação parece cada vez mais incerto e anêmico.
Fonte:
Por Hilary Goodfriend – Tradução Pedro Silva, para Jacobin Brasil
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