sábado, 8 de março de 2025

Economia é coisa de mulher, mas orçamento para mulheres ainda é pouco transparente

As mulheres são mais da metade da população do Brasil, segundo o Censo de 2022. Esse mesmo levantamento, o mais atualizado que temos, diz que um terço da população feminina do país vivia abaixo da linha da pobreza naquele ano, ou seja, com uma renda diária de aproximadamente R$ 33,80 – dinheiro que mal dá para pagar uma refeição, considerando que o PF (prato feito) custa, em média, R$ 30,80 no país, de acordo com pesquisa da Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT). 

Essa conta que não fecha é uma introdução necessária para falar do orçamento para mulheres do governo federal. É que por trás das cifras milionárias e do economês dos debates existe uma realidade desafiadora e urgente. 

Para este ano, o governo prevê R$ 277 milhões em gastos exclusivos para mulheres. Isto é, ações específicas que beneficiam apenas esse público, que podem estar dentro do Ministério das Mulheres ou não. Fora isso, existem iniciativas, como o Bolsa Família, que são contabilizadas dentro dos gastos não exclusivos, pois beneficiam mulheres e outros públicos. 

Dentro dos R$ 277 milhões, há gastos com enfrentamento da violência contra a mulher e financiamento de serviços como o 180, que é o canal de denúncias, por exemplo. Esse valor ainda pode ser alterado, porque a Lei Orçamentária Anual (LOA) – que contém a programação de todas as despesas públicas e a previsão do dinheiro que vai pagar isso – ainda vai ser votada no Congresso Nacional. A previsão é que isso aconteça na primeira quinzena de março. 

<><> Por que isso importa?

·   Segundo o Censo 2022, o país tem 104 milhões de mulheres, mais da metade da população (51,5%).

·   Um terço dessas mulheres vive abaixo da linha pobreza, ou seja, ganha R$ 33,80 por dia, o que equivale a menos de um salário-mínimo no mês.

Boa parte do orçamento para mulheres previsto para 2025 – mais de 70% dele – vem das chamadas emendas parlamentares, que é quando deputados e senadores indicam o uso de reservas do orçamento para atender a uma questão específica. Isso é ruim porque dificulta a continuidade das políticas públicas, na opinião da deputada federal e professora Luciene Cavalcante (PSOL-SP), já que os parlamentares podem mudar de opinião sobre o que é prioridade. As emendas podem variar ano a ano e dependem da articulação política, não apenas das necessidades da população. “A consequência imediata é a dificuldade de fazer políticas de longa duração”, disse ela em uma audiência no Senado sobre o tema, em 12 de fevereiro deste ano.

Por outro lado, nessa mesma audiência, ela comemorou um aumento de 36% no orçamento das mulheres do ano passado para cá. As chamadas despesas discricionárias, ou seja, que não são obrigatórias e podem ser desfeitas pelo governo, chegam a R$ 143,7 milhões para este ano; eram R$ 92,1 milhões no ano passado. O Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2023 previa R$ 135,7 milhões para as ações focadas na mulher, segundo informou por nota o Ministério do Desenvolvimento e Planejamento. O Ministério das Mulheres foi procurado, mas não respondeu à reportagem.

Acontece que, mesmo com o aumento do valor este ano, a deputada considerou que a previsão pode não ser suficiente. “Tem que perceber se o orçamento tá de acordo com o nosso desafio. Se não tem recursos para elaboração e implementação de políticas públicas, a gente não consegue mudar as realidades”, disse na audiência. 

·        O que falta para o Brasil avançar nas políticas para mulheres? 

O relatório “A Mulher no Orçamento”, do governo federal, publicado no ano passado com dados de 2023, mostra que 94,5% dos gastos que beneficiaram as mulheres naquele ano, nos orçamentos fiscal e da seguridade social, estavam em duas categorias: “Proteção Social” e “Saúde Integral da Mulher”. Esses gastos se traduzem em acesso a serviços públicos como maternidades e atendimentos do SUS, por exemplo.

Saber se o dinheiro que o governo pretende gastar será suficiente ou não para o Brasil avançar nesses quesitos ou em outros problemas como a prevenção dos feminicídios, por exemplo, que aumentaram no ano passado, chegando a 1,4 mil vítimas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, é complexo. Envolve um debate sobre “ações interseccionais”, ou seja, aquelas que incluem mais de uma agenda, para além das mulheres, como questões raciais, por exemplo. 

Uma nota técnica da Rede Orçamento Mulher, publicada em setembro do ano passado, diz que, se forem consideradas somente as ações orçamentárias para mulheres, o valor previsto para este ano cai. Mas, de uma forma transversal, incluindo essas outras agendas, ele aumenta. “Os gastos em que as mulheres são beneficiárias exclusivas e não exclusivas no PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual] 2025 correspondem a R$ 451,2 bilhões”, diz o texto.

As ações que envolvem mais de uma agenda podem, segundo a nota, “em muitos casos, compensar as aparentes reduções orçamentárias […] Assim, é essencial que as políticas públicas continuem a avançar na direção de um planejamento orçamentário que reconheça e atenda às múltiplas dimensões das desigualdades sociais”, completa. 

·        Mais de uma década no escuro

É tão complicado saber quanto dinheiro o governo está destinando para as mulheres e se ele é suficiente ou não porque, entre outras coisas, desde 2011 houve uma série de mudanças nas metodologias orçamentárias, que tornaram tudo menos transparente. Quem diz isso é Rita Leal, consultora legislativa de Orçamento do Senado Federal e cofundadora da iniciativa Elas no Orçamento. 

“Dos anos 2000 a 2010, houve um movimento forte em torno da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma década em que os planos plurianuais [que definem diretrizes orçamentárias] traziam objetivos claros com uma carteira de ações”, conta. “Durante esse período, os movimentos de mulheres e sociais floresceram muito. Foi uma década de atuação intensa junto aos poderes Executivo e Legislativo, com planos nacionais de políticas para mulheres.” 

Mas, a partir de 2011 – durante os governos Dilma (PT), Temer (MDB) e Bolsonaro (PL) –, mudanças na metodologia do orçamento tornaram mais difícil, segundo Leal, identificar os gastos. “As ações do orçamento se tornaram mais genéricas e difíceis de acompanhar. Então, o que predominava era basicamente a força da Lei Maria da Penha se enraizando. Havia algum movimento dentro da máquina pública em torno dessa lei para tratar da violência doméstica, mas outras pautas eram deixadas de lado, como a pobreza que incide sobre mulheres negras nas periferias, a violência na política, a saúde da mulher, a cultura da misoginia”, lista. 

“Hoje, quando se pega as contas do governo, é difícil ver o que de fato é orçamento para mulheres”, diz a consultora. Durante os governos Dilma, Temer e Bolsonaro, houve uma “predominância do fiscalismo”, considera. Quer dizer, uma preocupação com o tamanho do gasto sem considerar tanto para que servia essa despesa a importância de tratar do problema social. 

Ela afirma que, no governo Bolsonaro, “o planejamento para mulheres e o plano plurianual foram praticamente inexistentes”. Mas, em 2020, a bancada feminina no Congresso Nacional conseguiu emplacar uma emenda para obrigar o Executivo a publicar o orçamento específico das mulheres. “Então, a gente tá saindo quase do zero para um orçamento que tenha carimbo para as mulheres. É um renascimento do planejamento do orçamento com metas mais claras, e junto com isso vai renascendo essa agenda de política para mulheres de forma mais ampla”, explica. 

Um relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre orçamento sensível a gênero no Brasil, publicado no ano passado, recomenda o desenvolvimento de “um plano nacional abrangente de igualdade de gênero com objetivos claros”. O Plano Plurianual 2024-2027, do atual governo federal, tem “compromissos claros e prioridades transversais”, segundo a consultora. Houve, ela diz, um refinamento das metodologias para identificar o que de fato era destinado para mulheres dentro do orçamento federal.

O grande desafio agora é melhorar ainda mais para conseguir identificar de fato quais são as políticas que atendem às mulheres. Ela dá alguns exemplos: na educação, existe a necessidade de programas que estimulem as meninas a seguir nas áreas de ciências e tecnologia. Se o país quiser reduzir a diferença salarial entre homens e mulheres, tem que haver isso. Então, secretarias municipais, Ministério da Educação e estados precisam melhorar suas metodologias para que se possa enxergar o que está sendo destinado para essa questão específica. 

A merenda escolar é outro exemplo. Ela tem um peso grande no orçamento atual, porque, se o filho está sendo alimentado na escola, a mãe não vai precisar se preocupar em fornecer todas as refeições, embora essa ação não beneficie apenas as mães. Essa mesma lógica se estende a várias outras iniciativas do governo. 

Rita Leal diz que esse refinamento de dados é um trabalho que envolve muitos ministérios, ou seja, algo que não é simples. E que, como uma nova eleição presidencial se aproxima, não se sabe se esse trabalho terá continuidade. “Temos uma janela de oportunidade, mas não sabemos o que vem pela frente”, comenta. 

Ela reconhece que, embora encampe pautas de gênero e igualdade racial, o governo ainda é masculino e branco. “É preciso alinhar todo o orçamento a uma perspectiva de gênero. A gente precisa fazer com que essa máquina pare e olhe a realidade do país, que é feminina, negra e parda, e não está sendo contemplada”, afirma. 

Para Gilda Cabral, uma das fundadoras do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o governo Lula “não avançou o tanto que se esperava” em relação ao orçamento para as mulheres. O Cfemea é uma das entidades pioneiras no monitoramento da execução de orçamento sensível a gênero no país e criou um monitor que acompanha as ações do Congresso referentes aos direitos das mulheres. 

“Se você não etiqueta ou carimba o gasto para saber o que é da mulher, você pode dizer que o governo gastou o quanto quiser, pode botar tudo o que é gasto nesse valor”, comenta. Ela critica o fato de que o acompanhamento do orçamento público seja algo complicado, distante da realidade das pessoas. Diz que isso dificulta o acompanhamento cidadão do poder público e afirma: “Orçamento é coisa de mulher”. 

“Ninguém precisa saber o que é despesa discricionária, basta que elas saibam o dia que têm que brigar para ter dinheiro para mulher na prefeitura e a quem pedir dinheiro para mulher na Câmara de Vereadores”, argumenta. 

Cabral adianta que o Cfemea está desenvolvendo um aplicativo sobre orçamento público para ações voltadas às mulheres. O objetivo é traduzir as cifras e o economês. “Quando a receita para mulheres for para o município, as usuárias vão receber um aviso pelo WhatsApp. Vai ser simples, para que qualquer um saiba se cadastrar, algo que a pessoa saiba se tem dinheiro para a compra de remédio, a mamografia, o contraceptivo, escola em tempo integral. Ainda está em desenvolvimento, mas é para ser voltado para pessoas vulneráveis que precisam da política pública.”

Fonte: Por Mariama Correia, da Agencia Pública

 

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