Economia é
coisa de mulher, mas orçamento para mulheres ainda é pouco transparente
As mulheres são mais da
metade da população do Brasil, segundo o Censo de 2022. Esse mesmo
levantamento, o mais atualizado que temos, diz que um terço da população
feminina do país vivia abaixo da linha da pobreza naquele ano, ou seja, com uma
renda diária de aproximadamente R$ 33,80 – dinheiro que mal dá para pagar uma
refeição, considerando que o PF (prato feito) custa, em média, R$ 30,80 no
país, de acordo com pesquisa da
Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT).
Essa conta que não fecha é
uma introdução necessária para falar do orçamento para mulheres do governo
federal. É que por trás das cifras milionárias e do economês dos debates existe
uma realidade desafiadora e urgente.
Para este ano, o governo
prevê R$ 277 milhões em gastos exclusivos para mulheres. Isto é, ações
específicas que beneficiam apenas esse público, que podem estar dentro do
Ministério das Mulheres ou não. Fora isso, existem iniciativas, como o Bolsa
Família, que são contabilizadas dentro dos gastos não exclusivos, pois
beneficiam mulheres e outros públicos.
Dentro dos R$ 277 milhões,
há gastos com enfrentamento da violência contra a mulher e financiamento de
serviços como o 180, que é o canal de denúncias, por exemplo. Esse valor ainda
pode ser alterado, porque a Lei Orçamentária Anual (LOA) – que contém a programação
de todas as despesas públicas e a previsão do dinheiro que vai pagar isso –
ainda vai ser votada no Congresso Nacional. A previsão é que isso aconteça na
primeira quinzena de março.
<><> Por que
isso importa?
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Segundo o Censo 2022, o país tem 104 milhões de
mulheres, mais da metade da população (51,5%).
·
Um terço dessas mulheres vive abaixo da linha
pobreza, ou seja, ganha R$ 33,80 por dia, o que equivale a menos de um
salário-mínimo no mês.
Boa parte do orçamento para
mulheres previsto para 2025 – mais de 70% dele – vem das chamadas emendas
parlamentares, que é quando deputados e senadores indicam o uso de reservas do
orçamento para atender a uma questão específica. Isso é ruim porque
dificulta a continuidade das políticas públicas, na opinião da deputada federal
e professora Luciene Cavalcante (PSOL-SP), já que os parlamentares podem
mudar de opinião sobre o que é prioridade. As emendas podem variar ano a
ano e dependem da articulação política, não apenas das necessidades da
população. “A consequência imediata é a dificuldade de fazer políticas de
longa duração”, disse ela em uma audiência no Senado
sobre o tema, em 12 de fevereiro deste ano.
Por outro lado, nessa mesma
audiência, ela comemorou um aumento de 36% no orçamento das mulheres do ano
passado para cá. As chamadas despesas discricionárias, ou seja, que não
são obrigatórias e podem ser desfeitas pelo governo, chegam a R$ 143,7 milhões
para este ano; eram R$ 92,1 milhões no ano passado. O Projeto de Lei
Orçamentária Anual de 2023 previa R$ 135,7 milhões para as ações focadas na
mulher, segundo informou por nota o Ministério do Desenvolvimento e
Planejamento. O Ministério das Mulheres foi procurado, mas não respondeu à
reportagem.
Acontece que, mesmo com o
aumento do valor este ano, a deputada considerou que a previsão pode não ser
suficiente. “Tem que perceber se o orçamento tá de acordo com o nosso desafio.
Se não tem recursos para elaboração e implementação de políticas públicas, a
gente não consegue mudar as realidades”, disse na audiência.
·
O
que falta para o Brasil avançar nas políticas para mulheres?
O relatório “A Mulher no Orçamento”, do governo federal, publicado no ano passado com dados de 2023, mostra
que 94,5% dos gastos que beneficiaram as mulheres naquele ano, nos orçamentos
fiscal e da seguridade social, estavam em duas categorias: “Proteção Social” e
“Saúde Integral da Mulher”. Esses gastos se traduzem em acesso a serviços
públicos como maternidades e atendimentos do SUS, por exemplo.
Saber se o dinheiro que o
governo pretende gastar será suficiente ou não para o Brasil avançar nesses
quesitos ou em outros problemas como a prevenção dos feminicídios, por exemplo,
que aumentaram no ano passado, chegando a 1,4 mil vítimas no país, segundo o
Anuário Brasileiro de Segurança Pública, é complexo. Envolve um debate sobre
“ações interseccionais”, ou seja, aquelas que incluem mais de uma agenda, para
além das mulheres, como questões raciais, por exemplo.
Uma nota técnica da Rede
Orçamento Mulher, publicada em setembro do ano passado, diz que, se forem
consideradas somente as ações orçamentárias para mulheres, o valor previsto
para este ano cai. Mas, de uma forma transversal, incluindo essas outras
agendas, ele aumenta. “Os gastos em que as mulheres são beneficiárias
exclusivas e não exclusivas no PLOA [Projeto de Lei Orçamentária Anual] 2025
correspondem a R$ 451,2 bilhões”, diz o texto.
As ações que envolvem mais
de uma agenda podem, segundo a nota, “em muitos casos, compensar as aparentes
reduções orçamentárias […] Assim, é essencial que as políticas públicas
continuem a avançar na direção de um planejamento orçamentário que reconheça e
atenda às múltiplas dimensões das desigualdades sociais”, completa.
·
Mais
de uma década no escuro
É tão complicado saber
quanto dinheiro o governo está destinando para as mulheres e se ele é
suficiente ou não porque, entre outras coisas, desde 2011 houve uma série de
mudanças nas metodologias orçamentárias, que tornaram tudo menos transparente.
Quem diz isso é Rita Leal, consultora legislativa de Orçamento do Senado
Federal e cofundadora da iniciativa Elas no Orçamento.
“Dos anos 2000 a 2010, houve
um movimento forte em torno da Lei de Responsabilidade Fiscal, uma década em
que os planos plurianuais [que definem diretrizes orçamentárias] traziam
objetivos claros com uma carteira de ações”, conta. “Durante esse período, os
movimentos de mulheres e sociais floresceram muito. Foi uma década de atuação
intensa junto aos poderes Executivo e Legislativo, com planos nacionais de
políticas para mulheres.”
Mas, a partir de 2011 –
durante os governos Dilma (PT), Temer (MDB) e Bolsonaro (PL) –, mudanças na
metodologia do orçamento tornaram mais difícil, segundo Leal, identificar os
gastos. “As ações do orçamento se tornaram mais genéricas e difíceis de
acompanhar. Então, o que predominava era basicamente a força da Lei Maria
da Penha se enraizando. Havia algum movimento dentro da máquina pública em
torno dessa lei para tratar da violência doméstica, mas outras pautas eram
deixadas de lado, como a pobreza que incide sobre mulheres negras nas
periferias, a violência na política, a saúde da mulher, a cultura da
misoginia”, lista.
“Hoje, quando se pega as
contas do governo, é difícil ver o que de fato é orçamento para mulheres”, diz
a consultora. Durante os governos Dilma, Temer e Bolsonaro, houve uma
“predominância do fiscalismo”, considera. Quer dizer, uma preocupação com o
tamanho do gasto sem considerar tanto para que servia essa despesa a
importância de tratar do problema social.
Ela afirma que, no governo
Bolsonaro, “o planejamento para mulheres e o plano plurianual foram
praticamente inexistentes”. Mas, em 2020, a bancada feminina no Congresso
Nacional conseguiu emplacar uma emenda para obrigar o Executivo a publicar o
orçamento específico das mulheres. “Então, a gente tá saindo quase do zero para
um orçamento que tenha carimbo para as mulheres. É um renascimento do
planejamento do orçamento com metas mais claras, e junto com isso vai
renascendo essa agenda de política para mulheres de forma mais ampla”,
explica.
Um relatório da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre
orçamento sensível a gênero no Brasil, publicado no ano passado, recomenda o
desenvolvimento de “um plano nacional abrangente de igualdade de gênero com
objetivos claros”. O Plano Plurianual 2024-2027, do atual governo federal, tem
“compromissos claros e prioridades transversais”, segundo a consultora. Houve,
ela diz, um refinamento das metodologias para identificar o que de fato era
destinado para mulheres dentro do orçamento federal.
O grande desafio agora é
melhorar ainda mais para conseguir identificar de fato quais são as políticas
que atendem às mulheres. Ela dá alguns exemplos: na educação, existe a
necessidade de programas que estimulem as meninas a seguir nas áreas de
ciências e tecnologia. Se o país quiser reduzir a diferença salarial entre
homens e mulheres, tem que haver isso. Então, secretarias municipais,
Ministério da Educação e estados precisam melhorar suas metodologias para que
se possa enxergar o que está sendo destinado para essa questão
específica.
A merenda escolar é outro
exemplo. Ela tem um peso grande no orçamento atual, porque, se o filho está
sendo alimentado na escola, a mãe não vai precisar se preocupar em fornecer
todas as refeições, embora essa ação não beneficie apenas as mães. Essa mesma
lógica se estende a várias outras iniciativas do governo.
Rita Leal diz que esse
refinamento de dados é um trabalho que envolve muitos ministérios, ou seja,
algo que não é simples. E que, como uma nova eleição presidencial se aproxima,
não se sabe se esse trabalho terá continuidade. “Temos uma janela de
oportunidade, mas não sabemos o que vem pela frente”, comenta.
Ela reconhece que, embora
encampe pautas de gênero e igualdade racial, o governo ainda é masculino e
branco. “É preciso alinhar todo o orçamento a uma perspectiva de gênero. A
gente precisa fazer com que essa máquina pare e olhe a realidade do país, que é
feminina, negra e parda, e não está sendo contemplada”, afirma.
Para Gilda Cabral, uma das
fundadoras do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), o governo Lula
“não avançou o tanto que se esperava” em relação ao orçamento para as
mulheres. O Cfemea é uma das entidades pioneiras no monitoramento da
execução de orçamento sensível a gênero no país e criou um monitor que
acompanha as ações do Congresso referentes aos direitos das mulheres.
“Se você não etiqueta ou
carimba o gasto para saber o que é da mulher, você pode dizer que o governo
gastou o quanto quiser, pode botar tudo o que é gasto nesse valor”, comenta.
Ela critica o fato de que o acompanhamento do orçamento público seja algo
complicado, distante da realidade das pessoas. Diz que isso dificulta o
acompanhamento cidadão do poder público e afirma: “Orçamento é coisa de
mulher”.
“Ninguém precisa saber o que
é despesa discricionária, basta que elas saibam o dia que têm que brigar
para ter dinheiro para mulher na prefeitura e a quem pedir dinheiro para mulher
na Câmara de Vereadores”, argumenta.
Cabral adianta que o Cfemea
está desenvolvendo um aplicativo sobre orçamento público para ações voltadas às
mulheres. O objetivo é traduzir as cifras e o economês. “Quando a receita para
mulheres for para o município, as usuárias vão receber um aviso pelo WhatsApp.
Vai ser simples, para que qualquer um saiba se cadastrar, algo que a pessoa
saiba se tem dinheiro para a compra de remédio, a mamografia, o contraceptivo,
escola em tempo integral. Ainda está em desenvolvimento, mas é para ser voltado
para pessoas vulneráveis que precisam da política pública.”
Fonte: Por Mariama
Correia, da Agencia Pública
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