Pinga, s.f. – um papo com o pai dos bêbados
Fala-se muita bobagem sobre cachaça. Às
vezes, como se fosse a verdade mais profunda do planeta. Alguém pode objetar
que se fala bobagem sobre quase tudo, ainda mais hoje em dia, em que a mentira
nunca teve pernas tão longas. Olha, é verdade, mas aí a gente pode contestar
que, se tem uma coisa sobre a qual não vale a pena falar bobagem, porque é bem
melhor não falar nada e beber — nem que seja pra falar bobagem sobre
outras coisas —, é a cachaça. Então, bora beber uma boa branquinha e fazer um esforço
pra falar um pouco menos de bobagem. Ou então falar bobagem em plena
consciência, o que já é um pecado a menos — ou a mais? Sabe lá… mas pelo menos
é mais divertido.
Hoje o assunto é… pinga! E vamos começar com
a palavra “pinga”. Ora, todo mundo sabe por que a pinga se chama assim, não é
mesmo? Pois é, mas aí é que o caldo desanda… Um jeito de falar bobagem é dizer
uma meia verdade. Por exemplo, quando você vê uma coisa e diz aquilo que vê.
Você pode não estar falando nenhuma mentira, uma vez que está sendo fiel aos
próprios olhos. Mas nada garante que esteja dizendo a verdade sobre a coisa. Só
sei que nada sei. Muito bem, começamos com filosofia, que, como todos sabem, é
uma das artes do bar.
Antes de prosseguir, vamos colocar o jogo na
mesa. Esta prosa é a abrideira de uma série que nós, Maurício e Maurício, o
Carneiro e o Ayer, e vice-versa, resolvemos escrever, para compartilhar com
vocês. Não sabemos quantas garrafas serão emborcadas aqui, nem até quando… mas
podem ter certeza de que a leitura terá o preparo cuidadoso de quem seleciona
os melhores ingredientes que tem à disposição, trabalha-os meticulosamente e
serve, porém, com uma pitada de displicência, pra o convidado ficar bem à vontade
pra beber fartamente, sem cerimônia. Serão coisas sobre cachaça e todos os seus
etcéteras. Se for de seu gosto, leia e compartilhe sem moderação – e se puder
passar pra deixar um comentário, será sempre muito bem-vindo.
- Um trago erudito
Então vamos lá: de onde vem a pinga? Não a
pinga em si, a palavra pinga… Ora, essa é fácil! Todo mundo sabe que a pinga se
chama assim porque o alambique… pinga – do verbo pingar. Nada mais óbvio,
papo encerrado, boa noite, vamos ao próximo bar.
Calma lá! Não é bem assim. Ou melhor, até é
assim, mas não é só assim. E talvez a história que explique
por que a gente chama pinga de pinga seja, na verdade, outra…
É curioso, pois, muitas vezes, a gente ainda
ouve um papo assim. O camarada mostra a garrafa de uma caninha especial e diz:
esta aqui é uma verdadeira cachaça, é de alambique! Aquela ali não, ela é
industrial, isso aí é pinga! Pelo menos em São Paulo se ouve esse tipo de
ideia. Mas a cachaça dita industrial é produzida em destiladores contínuos de
coluna, ou seja, um tipo de equipamento no qual a pinga… não pinga! Quem pinga
é justamente o alambique, e ainda assim mais no comecinho do processo. Essa
contradição talvez nos diga alguma coisa.
Estamos falando aqui de um uso recente da
palavra pinga. Mas as palavras, como tantas coisas, também têm a sua história,
e muitas vezes ela se transforma com o tempo. Toda palavra traz em si a marca
de sua origem, mas também as cicatrizes das batalhas que enfrentou, essa
guerreira…
Então, pra começar a falar da pinga,
resolvemos ver como é que o vocábulo aparece nos dicionários, este companheiro
mal apelidado de “pai dos burros”, já que nunca se viu burro que queira mesmo
conhecer a palavra na sua filigrana – seria melhor chamá-lo de “parceiro
dos humildes”, pois é quando a gente se sente ignorante – como todo ser humano
que sabe alguma coisa – que vai procurar saber os significados dicionarizados
de uma palavra. Alcemos então o nosso amigo ad hoc como “pai
dos bêbados”, pois não?
Aqui cabe um comentário: ao contrário do que
muita gente pensa, o dicionário não é quem dá “a última palavra”, não é a lei
eterna em matéria de uma língua. O dicionário de língua portuguesa, por
exemplo, na verdade é feito por gente muito atenta aos usos da língua e procura
registrar os diferentes significados que as pessoas atribuem às palavras nas
suas vidas. Daí os múltiplos sentidos de uma palavra. Daí também que ao longo
dos séculos – e até mais amiúde pelas décadas – os dicionários vão
mudando, principalmente para acrescentar novas palavras que vão surgindo ou
novas acepções de velhas palavras.
Se a gente consultar o primeiro dicionário da
língua portuguesa, o Dicionário Portuguez Latino, elaborado entre
1712 e 1728 pelo padre francês Raphael Bluteau, o verbete “pinga” diz
que ela é a “gota que cai de um lambique ou outra cousa”.
— Bingo! E aí, Maurícios, não estão
satisfeitos? “gota que cai de um lam-bi-que”! Precisa mais alguma
coisa?
— Calma… vamos chegar lá.
Pois bem, acontece que essa acepção que está
no primeiro dicionário simplesmente desaparece dos dicionários que vieram
depois! E isso por praticamente dois séculos! Por exemplo, no Diccionario
da Língua Portugueza, do lexicógrafo pernambucano Antonio de Moraes Silva,
publicado em Lisboa em 1789 (consultamos a segunda edição, de 1813), a definição
do verbete fica no campo da gota, mas o alambique some da jogada. Diz ali que a
pinga é “gota que cai, uma porção mínima” e exemplifica: “Nem
pinga d’água, nem pinga de sangue lhe ficou no corpo”. Ainda menciona que
“boa pinga” pode significa “vinho bom”.
A palavra “pinga”, segundo o dicionário
Aurélio, tem sua origem no latim, derivada de pendicare, que
significa “pender”, e é associada ao sentido de “gota” ou “pequena
quantidade de líquido”. Seu uso pelos portugueses remonta, pelo menos, ao
início do século XVI, geralmente com esse significado: pequenas porções. Em
1517, a palavra já aparece associada ao vinho, como registrada pelo grande
dramaturgo português, Gil Vicente, em uma de suas obras mais conhecidas,
o Auto da Barca do Inferno. Nessa obra satírica que retrata o juízo
final, há um diálogo entre o Diabo e o Frade, em que o primeiro menciona:
“Devoto padre marido, deveis de ter cá algum vinho pingado.” Vejam
que aqui o assunto é vinho, e ainda vamos ver isso mais de perto, mas o
“pingado” é bem claramente o “fracionado”.
Ao longo de todo o século XIX, a pinga vai
sempre aparecer no dicionário como um sinônimo do que hoje chamamos “pingo”, no
masculino, mas também como algo próximo de um trago, uma dose, um bocado de uma
bebida. Porém, não é só que não fala em aguardente ou cachaça como sinônimo,
invariavelmente, todos os exemplos são dados com outra bebida: o vinho! Vimos o
exemplo do dicionário Moraes.
No Grande Dicionário
Portuguez ou Thesouro da Língua Portugueza, publicado sob a direção do
Frei Domingos Vieira em 1871, o registro se mantém muito próximo ao de
Moraes. Diz: “Gotta que cae. Termo popular e jocoso. — Bella pinga;
vinho bom”. E o mesmo ocorre com a 7a edição do Moraes, de 1877, com a
diferença de indicar que a pinga pode referir-se não só a vinho como a liquor
e, até, rapé!
No conjunto de obras consultado nesta breve
pesquisa (que não teve qualquer pretensão de ser exaustiva), a primeira
aparição de “pinga” como sinônimo de “Aguardente, cachaça, parati” ocorre em
1944, no Dicionário de Sinônimos e Antônimos da Língua Portuguesa, de
Francisco Fernandes, em sua 3a edição revisada pelo grande estudioso da língua
Celso Luft. Do ano seguinte, consultamos a 10 edição do Moraes, agora como o
título Grande Dicionário da Língua Portuguesa, que também registra essa
acepção: “Bras. Pop. Bebida alcoólica, especialmente aguardente.” O
mesmo aparece no dicionário de Laudelino Freire (2a edição, 1954) e finalmente
no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, o famoso Aurélio, com uma
formulação muito parecida. Interessante atentar para o exemplo oferecido
pelo Aurélio para a primeira acepção da pinga – “Gole, golo, trago” –, uma
citação de Histórias Rústicas, de Virgílio Várzea: “Assim entregue o boi à
multidão, os laçadores subiram à casa do Vidal, à tomar uma pinga da
branca”. “Pinga da branca” quer dizer um “trago de aguardente” (poderia ser
uma pinga de vinho…).
- A pinga e suas
hipóteses
Feito esse pequeno percurso pelos pais dos
bêbados, que conclusão podemos tirar? Bem, conclusão, talvez nenhuma… mas
algumas boas hipóteses. A primeira é a de que, embora a pinga tenha aparecido
associada ao alambique lá no primeiro dicionário do Bluteau, no início do
século XVIII, essa relação, tendo desaparecido dos vocabulários seguintes, não
parece tem uma linha de continuidade com a ideia que se faz hoje, e que
mencionamos no início deste texto. Pode ser que esse sentido tenha permanecido
vivo no falar popular, mas o sentido que ganhou proeminência nos registros
posteriores foi o de “pequena quantidade de líquido” e, depois, esse líquido
sendo especificado como bebida alcoólica, em especial o vinho.
A segunda é a de que a pinga como sinônimo de
bebida parece ser um uso bastante popular, e por isso registrado tardiamente
nos dicionários. E mais tardiamente quando se tratava da mais popular das
bebidas, a caninha. Nossa pesquisa não permite dizer que nenhum dicionário
registrou pinga como aguardente antes de 1944, é possível que tenha acontecido.
E no entanto, na literatura, podemos citar o célebre poema de Poesia
Pau Brasil, de Oswald de Andrade, publicado em 1924 (e bem mais tarde
musicado por João Bosco): “No baile da corte, / foi o Conde d’Eu quem disse
para dona Benvinda / Que farinha de Suruí / Pinga de Parati / Fumo de
Baependi / É comê bebê pitá e caí”. E também a famosa Moda da
Pinga, composta no interior de São Paulo, foi gravada pela primeira vez por
Raul Torres, em 1937.
Pedir uma pinga na venda devia ser algo muito
comum. Não se anotava uma “barrica de pinga” num inventário (podia ser de
aguardente ou de cachaça, que eram coisas diferentes), mas para pedir no
balcão, pelo menos para os lados de São Paulo, Rio e Minas (a julgar por alguns
exemplos), pode-se imaginar que a palavra usada era pinga. Sendo a “pinga”
quase sempre de “cachaça”, aos poucos foi se tornando um sinônimo da aguardente
brasileira, e excluindo a possibilidade de se referir a outras bebidas.
A essas duas hipóteses, podemos acrescentar
uma terceira: será que ao diferenciar a “cachaça” – mais tradicional, de
qualidade, de alambique – da “pinga” – industrial, mais barata
– a questão não seja justamente o campo de associação que as duas palavras
trazem no consumo da caninha? Cachaça é a que se busca no alambique, pinga é a
que se pede no balcão. Nada a ver, portanto, com o fato de que o “alambique
pinga”.
Bom, minha gente, por hoje é só. Tomemos cada
qual a sua pinga e bora seguir com essa prosa, nos próximos artigos que vamos
publicar por aqui. Fiquem atentos que temos muito assunto pra
compartilhar.
Fonte:
Por Maurício Ayer e Maurício Carneiro, em Outras Palavras

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