40 anos de democracia: Nova República começa
com medos e receios
Na
edição de 15 de março de 1985, o Correio Braziliense trazia na
manchete o resumo da longa madrugada precedente à cerimônia de posse do novo
governo, que punha um ponto final em 21 anos de ditadura militar:
"Tancredo operado. Sarney assume — Presidente passa bem. Figueiredo não
transmite o cargo. Ministros assumem hoje mesmo". Mantinha-se o otimismo
sobre a chegada da Nova República ao poder e que a crise na saúde do presidente
eleito fora um contratempo que estava a caminho de ser solucionado.
Na
primeira página, fotos expõem, com nitidez, que a cena política foi
surpreendida pela internação e a consequente cirurgia de Tancredo Neves. Nos registros dos
corredores do Hospital de Base, veem-se ministros do futuro governo: Francisco
Dornelles, da Fazenda; João Sayad, do Planejamento; Pedro Simon, da
Agricultura; José Hugo Castello Branco, do Gabinete Civil; Marco Maciel, da
Educação; Afonso Camargo, dos Transportes; e Leônidas Gonçalves, do Exército.
As expressões faciais variam da preocupação à circunspecção.
Também
traz imagens de três dos garantidores da Nova República: o presidente da
Câmara, Ulysses Guimarães (PMDB-SP); o presidente do Senado, José Fragelli
(PMDB-MS); e o senador Fernando Henrique Cardoso (PMDB-SP).
Mais
abaixo, ainda na primeira página, uma foto de Tancredo cumprimentando o
salesiano dom João de Rezende Costa, arcebispo de Belo Horizonte, na missa no
Santuário Dom Bosco, ilustra que o presidente eleito parecia bem de saúde na
noite do dia 14. As horas seguintes mostrariam que não. Daí por que a edição
foi fechada às 3h15 do dia da posse.
A
cobertura daquela madrugada enfatiza, sobretudo, a discussão sobre quem
assumiria o governo com a impossibilidade de Tancredo. O ministro da Justiça,
Ibrahim Abi-Ackel, bancava, com declaração na primeira página, o nome de
Ulysses. Usava o argumento defendido pelo governo que ora terminava.
"Sarney
não assume porque o vice substitui o presidente nos seus impedimentos e o
sucede no caso de vacância. Amanhã, nem Tancredo é presidente, nem Sarney é
vice", afirmou. Teoricamente, foi por esse motivo que o ainda presidente
João Baptista Figueiredo não passou a faixa presidencial para Sarney — conforme
afirmou em entrevista a Ronaldo Costa Couto, ex-ministro do Interior de
Tancredo, e registrado em Me Esqueçam — Figueiredo, a biografia de uma
Presidência, livro do historiador Bernardo Braga Pasqualette.
Nesta
mesma edição, o Correio publicava o horário das posses dos ministros. Sayad
seria o primeiro, às 12h30, na pasta do Planejamento. O último era Paulo
Lustosa, às 18h, como titular da Desburocratização. Todos nomes de Tancredo,
confirmados pelo presidente eleito nos minutos que precederam sua internação,
por volta das 21h30 de 14 de março.
·
A Constituição
Com o
jornal do dia 15, circulou um caderno especial que dissecava o futuro governo.
Na entrevista concedida por Tancredo, ele frisava que se estava "vivendo
os momentos iniciais de uma transição que, estou certo, nos levará à retomada
de um regime jurídico estável de caráter democrático".
Diz o
presidente eleito: "A tarefa central do meu governo será a construção do
futuro, de forma que não haja retorno, nem às condições de subversão, nem a
situações autoritárias".
Segundo
Tancredo, sua eleição foi resultado de uma grande concertação. "A nossa
eleição foi um pacto político de grandes proporções. Ou alguém duvida de que
tenha sido isso? Esse pacto vai prosseguir", assegurou.
O
presidente eleito também adianta que a Constituição de 1967,
redigida sob o peso da mão militar, seria substituída por outra que espelhasse
a democracia que chegava — tarefa que seria completada em 5 de outubro de 1988,
quando seria promulgada a "constituição cidadã", como classificou-a
Ulysses.
"Nos
primeiros dias do meu governo, será nomeada uma comissão constitucional de alto
nível para elaborar um anteprojeto de constituição. Servirá de base ao grande
debate nacional, que deverá se travar em torno da matéria. Acho que será um
debate muito vibrante e apaixonado. Temos, governo e sociedade, que criar
condições para que a constituinte traduza, com toda autenticidade, o máximo de
representatividade do povo", disse.
·
O escudeiro
Sarney
também mereceu um perfil no caderno especial. Classificado como "um
político hábil, poeta desde os 22 anos, bom de voto e bom de fala", o já
imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) salientava que pretendia renovar
a função de vice, aprofundando a visibilidade garantida por Aureliano Chaves —
e que custou ao político mineiro, futuro ministro de Minas e Energia de
Tancredo — profunda animosidade com Figueiredo.
Lembra
a trajetória de Sarney como um "ex-udenista, ex-arenista e
ex-pedessista" e cita que, desde 1979, aquele que viria assumir o comando
da República por uma trapaça do destino não se sentia à vontade na presidência
da Arena, o partido que dava suporte à ditadura militar em um Congresso
manietado. De acordo com a reportagem, manifestou tal desconforto a Figueiredo
— situação que apenas aumentou dali para diante. Por sinal, na entrevista
concedida ao caderno especial, frisou que o general-presidente demonstrava um
crescente desinteresse pelo jogo do poder.
No
período precedente às eleições de 1982, Sarney percorreu o país para medir a
temperatura do eleitorado e as possibilidades do PDS. Fechou um relatório no
qual alertava o governo para o cansaço com o regime, algo que ele mesmo sentia.
"Os formuladores do poder desejavam manter o 'status quo', colocando em
prática uma engenharia de sobrevivência, explicitando um desejo imanente de
continuidade do regime. Sarney não desejava a continuação pelo continuísmo,
pregando uma evolução institucional segura. Preceituava uma ampla e profunda
revisão constitucional", observa a matéria.
A
reportagem — ilustrada por duas fotos: uma do café da manhã em família, na qual
se veem Sarney, d. Marly, a filha Roseana e o futuro ministro da Administração,
Aluízio Alves, amigo da família de longa data; outra do ainda vice-presidente
com a mãe, d. Kiola — faz, porém, um vaticínio. Diz em certo trecho: "E
saberá, para adocicar-lhe as perspectivas do futuro político, que dos 19
antecessores na função, nove chegaram à Presidência da República por eleição no
período seguinte, renúncia ou impedimento dos presidentes".
·
A restauração
O
suplemento, que trouxe na primeira página uma mensagem de Tancredo —
"Restaurar a democracia é restaurar a República. É edificar a Nova
República, missão que estou recebendo do povo e se transformará em realidade
pela força não apenas de um político, mas de todos os cidadãos
brasileiros" —, expunha os perfis dos homens nos quais o presidente eleito
se apoiou para a transição da ditadura para a democracia: Ulysses, Sarney,
Marco Maciel, Aureliano, Fernando Lyra (futuro ministro da Justiça), Roberto Gusmão
(futuro ministro da Indústria e Comércio), além dos governadores Hélio Garcia
(MG) e Franco Montoro (SP).
Listava,
ainda, o círculo íntimo de confiança de Tancredo. Além de Lyra, o publicitário
Mauro Salles (a quem caberia a comunicação do governo), o sobrinho Dornelles, o
neto Aécio Neves (secretário particular) e Antônia Araújo (secretária
particular e confidente de longa data).
Mas a
história tormou um rumo diferente daquele que vinha se desenhando até a
participação de Tancredo, na missa no Santuário Dom Bosco. Às 10h12 desse mesmo
15 de março, era Sarney, e não o presidente eleito, quem assumia o governo como
solução de continuidade. A confirmação está na manchete da edição do dia 16:
"Nova República já é poder — Sarney governa, Tancredo está bem".
¨
Saída está na Constituição, mas não há convicção
Porém,
não havia total convicção de que a resposta era essa. Formaram-se, então, três
grupos no Hospital de Base. O de Leônidas e Ulysses seguiu para a Granja do
Ipê, onde residia o ainda ministro da Casa Civil, João Leitão de Abreu, que
chancelou Sarney como substituto de Tancredo. O jurista Affonso Arinos de Mello
Franco reforçou que não pairava dúvida sobre quem era o segundo da República.
"O
artigo 77 diz: 'Substituirá o presidente, no caso de impedimento, e suceder-lhe-á
no de vaga, o vice-presidente'. Quer dizer, temos que partir primeiro da
consideração factual, e evidente, de que o vice-presidente da República não é
vice-presidente do presidente. (...) O vice-presidente toma posse não como
presidente, mas como vice-presidente em substituição ao presidente", disse
Arinos à Rede Globo, em entrevista articulada pelo deputado Israel
Pinheiro Filho (PMDB-MG), depois de deixarem o jantar na casa da empresária
Vera Brandt, no Lago Sul. Dois outros juristas, Paulo Brossard e Miguel Reale,
endossaram publicamente essa interpretação.
No
apartamento do ministro Moreira Alves, do Supremo Tribunal Federal, na Asa Sul,
travava-se a mesma discussão. Relato do ministro Sydney Sanches, outro dos 11
do STF, a Bernardo Braga Pasqualette, e publicado em Me Esqueçam —
Figueiredo, a biografia de uma Presidência, mostra que situação não era tão
cristalina assim. Para ele e o ministro Luiz Octavio Gallotti, Ulysses
assumiria a Presidência interinamente.
"Mas
não chegamos a definir posição a respeito. E a decisão da maioria foi sábia,
jurídica e politicamente", relembrou. Ou seja, deu Sarney.
A
dúvida era, sumariamente, a seguinte: como Tancredo estava eleito, mas não
empossado, Sarney estava na mesma situação. Exercendo mandato, apenas Ulysses.
Em entrevista a Ronaldo Costa Couto, cujo trecho foi publicado no livro de
Pasqualette, o presidente João Figueiredo explica por que não
passou a faixa presidencial e, também, por que não deveria ser Sarney a assumir
o Executivo interinamente.
"Os
generais vinham me propor, no caso da impossibilidade, passar o governo ao dr.
Sarney. Eu digo: 'O dr. Sarney não pode'. 'Mas por que?' Eu disse: 'Dr. Leitão
(de Abreu), o senhor é um jurista, eu não sou. Mas, infelizmente, sei ler
português. E estou com a Constituição aqui em frente. E ela diz que no caso de
impedimento do presidente eleito, tomará posse o presidente da Câmara. Durante
30 dias. Se passados 10 dias depois da posse dele, o presidente eleito não
tiver condições, 30 dias após a saída dele haverá uma eleição. (...) Para mim,
quem deveria assumir era o Ulysses", disse Figueiredo. Essa argumentação
era compartilhada por próceres da ditadura que caía, como o ministro da
Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, e o chefe da Casa Militar, general Rubem Ludwig.
Tancredo
adiou o mais que pôde a internação e a consequente cirurgia. Não era para
menos: estava convicto de que, se não assumisse, haveria uma crise política. De
acordo com o livro O Paciente — O caso Tancredo Neves, do médico e
historiador Luís Mir, em um diálogo com o médico Renault Mattos Ribeiro, que o
atendia, na manhã de 14 de março o presidente eleito deixou clara a
preocupação, mas sem ser explícito nas palavras, de que poderia haver um
retrocesso institucional.
"Não
faço de maneira alguma (a operação). Já lhe disse que só depois da posse",
disse Tancredo a Renault.
O
médico, então, responde: "É como se nós estivéssemos ganhando de 1 x 0 e o
outro time vai empatar. E com o empate, nós vamos perder o campeonato,
presidente".
Tancredo
insiste: "Mas você não vai permitir que o outro time empate. Você vai usar
todos os seus recursos e não vai permitir que haja empate coisa nenhuma. Nós
vamos ganhar".
"Sarney
soube imprimir seu estilo", diz ex-ministro Moreira Franco
Em uma
entrevista exclusiva ao Correio, o ex-ministro-chefe da Secretaria-Geral da
Presidência Moreira Franco relembrou os bastidores da transição política de
1985, um dos momentos mais delicados da história recente do Brasil. Moreira
Franco foi uma das figuras-chave desse período e testemunhou de perto os
desafios da transição democrática. Ele fala sobre como a vitória de Tancredo
Neves foi recebida dentro do Partido Democrático Social (PDS), partido que
sustentava o regime militar, e como a saída de José Sarney da legenda para
compor a chapa com Tancredo gerou reações. A seguir, trechos da entrevista:
·
O senhor foi uma das principais lideranças do PDS. Como o
partido reagiu à vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral?
No
PDS, eu fui um dos articuladores da Aliança Liberal, grupo que rompeu com a
candidatura de Paulo Maluf para apoiar Tancredo. Dentro do partido, havia uma
cisão clara. De um lado, aqueles que defendiam a redemocratização e, do outro,
os que resistiam a ela e mantinham apoio ao Maluf.
·
Houve alguma articulação dentro do PDS ou entre os
militares para impedir a posse de Tancredo?
Não.
No PDS, não houve nada nesse sentido. O partido passou por uma disputa interna
entre Paulo Maluf e Mario Andreazza, e Maluf venceu. Após isso, o foco se
voltou para a eleição no colégio eleitoral, que seguiu seu curso normal. O
próprio governo militar fez acordos políticos para garantir uma transição
segura, e Maluf sabia que não tinha maioria e aceitou o resultado.
·
Quando José Sarney deixou o PDS para compor a chapa com
Tancredo, ele foi visto como um traidor?
A
decisão de Sarney gerou reações mistas. Entre os que queriam a
redemocratização, sua escolha foi bem recebida. Mas aqueles que apoiavam Maluf
viam sua saída com resistência. No entanto, era um movimento inevitável, a
candidatura de Maluf não tinha viabilidade no colégio eleitoral, e o próprio
governo já articulava composições para garantir a transição.
·
Caso Tancredo tivesse assumido, o senhor acredita que ele
enfrentaria dificuldades com os militares?
Nenhuma.
Tancredo sempre manteve uma relação respeitosa com as Forças Armadas, mesmo
antes da eleição. A anistia já havia sido aprovada, e o clima era de transição.
O maior problema da época não era a resistência política, mas a grave crise
econômica que o país enfrentava.
·
Quando Sarney foi confirmado como presidente, houve
resistência dentro das Forças Armadas?
Não.
A solução encontrada para a transição foi política e constitucional. O general
Leônidas Pires Gonçalves, que assumiu o Ministério do Exército, foi um dos
principais garantidores da posse de Sarney e defensor da redemocratização. Não
havia clima para qualquer tentativa de reversão do processo democrático.
·
O general Walter Pires teria cogitado impedir a posse de
Sarney. O senhor teve conhecimento disso na época?
Walter
Pires era o ministro do Exército no governo Figueiredo. Nunca tive conhecimento
de que ele tenha feito qualquer movimentação nesse sentido. A transição já
estava consolidada, e havia respaldo político e militar para sua continuidade.
·
Mesmo derrotado no colégio eleitoral, o PDS continuava
sendo um partido forte. Como ele se posicionou nos primeiros meses do governo
Sarney?
O
partido aceitou o resultado e manteve sua estrutura. A oposição mais firme ao
governo Sarney veio do PT, que criticava a forma como a transição foi
conduzida.
·
Sarney assumiu um governo já estruturado por Tancredo. O
senhor acredita que ele teve dificuldades para governar sem um núcleo político
próprio?
Administrar
um governo sem um núcleo político de confiança não é confortável. Sarney herdou
um governo montado por Tancredo, e isso naturalmente trouxe desafios. Mas ele
era um político experiente e soube navegar nesse ambiente, consolidando
alianças ao longo do tempo.
·
O governo Sarney teve uma identidade própria ou apenas
deu continuidade ao projeto de Tancredo?
Todo
governo tem sua identidade própria. Sarney não surgiu do nada no cenário
político. Ele tinha uma longa trajetória, desde os anos 1950, e soube imprimir
seu estilo de governar. A grave crise econômica obrigou Sarney a adotar medidas
emergenciais, o que influenciou sua identidade como presidente.
·
Se Tancredo tivesse assumido, o Brasil teria passado por
um processo diferente de redemocratização?
A
redemocratização aconteceria do mesmo jeito, mas a política econômica seria
completamente diferente. Tancredo conhecia profundamente a máquina do Estado e
tinha um perfil desenvolvimentista. Sem dúvida, seu foco seria criar condições
para o crescimento econômico.
·
Quais foram os maiores desafios enfrentados pelo governo
nos primeiros anos da Nova República?
O
maior desafio foi econômico. A crise da época não era consequência de fatores
externos, mas de problemas estruturais internos que se acumulavam há anos.
Resolver essa situação exigia medidas urgentes, como os planos de estabilização
econômica.
·
Como o senhor avalia o papel de Sarney na consolidação da
democracia brasileira?
Sarney
foi fundamental. Ele tinha experiência, paciência e habilidade para administrar
conflitos. Seu compromisso era garantir que a transição ocorresse sem rupturas
e consolidar a democracia no Brasil. Se tivesse sido outro político no comando,
talvez o processo tivesse sido mais turbulento.
·
O Brasil ainda enfrenta crises cíclicas desde aquele
período. Como o senhor enxerga essa questão?
A
crise econômica que o Brasil enfrentava nos anos 1980 deixou sequelas
profundas, que se refletem até hoje. Desde então, o país alternou momentos de
crescimento com recessões severas, sem conseguir consolidar um modelo de
desenvolvimento sustentável. Esse atraso impacta diretamente o mercado de
trabalho e a estrutura produtiva do Brasil até hoje.
Fonte: Correio Braziliense

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