Valério Arcary: O que é a crise de direção
Crise de direção é uma ideia poderosa. O
conceito busca explicar que existe um hiato entre os interesses dos
trabalhadores e a capacidade da classe de construir organizações sociais ou
políticas que controlam, e lideranças que estejam à altura de defendê-las, seja
por imaturidade objetiva – juventude, hetereogeneidade – ou subjetiva –
pouca instrução, falta de tradição –, o que nos remete ao baixo nível de
consciência de classe. O conceito se aplica, frequentemente, à representação
popular, porque a classe dominante não tem as mesmas dificuldades. Os
capitalistas detêm controle da riqueza e do poder, e podem selecionar nas
fileiras de suas famílias, ou entre talentos de outras classes, os seus chefes
políticos. Ainda que não seja incomum a baixa qualidade de seus partidos, não
ocorrem dissidências sociais nas lideranças burguesas. Lideranças dos partidos
que defendem a ordem capitalista podem ser mais conservadoras ou liberais, mais
extremistas de direita ou mais democráticas, mas não vacilam e nunca renegam os
interesses que representam. “Diásporas” de classe são raras.
Existem duas posições extremas, mas
igualmente equivocadas sobre o tema da crise de direção nos movimentos dos
trabalhadores e seus aliados, ou seja, da esquerda. A primeira é daqueles que argumentam
que este conceito é errado ou o subestimam, e defendem que corresponde a uma
teoria moral da “traição”. É justo que a história deixa lições, mas não perdoa
ninguém. Esse reducionismo – “as massas merecem os partidos que têm” – é um
exagero abrupto. A ingenuidade, inexperiência, e insegurança das massas não
explica tudo. A segunda é daqueles que a superestimam e consideram que a chave
de explicação de todas as derrotas é o papel das direções. É justo que os
impasses da luta pelo socialismo, depois de tantas crises do capitalismo e
revoluções interrompidas e derrotadas, não podem ser entendidas sem o papel de
aparelhos que desenvolveram interesses próprios. A presença da socialdemocracia
e do estalinismo, as duas forças mais influentes na esquerda do século XX na
Europa e, em menor medida, nos países periféricos, dividiu as classes
trabalhadoras, e seus erros foram chave para muitas derrotas, mas isso não
explica tudo. O maior obstáculo de todas as revoluções foi a
contrarrevolução.
Um exemplo clássico da primeira posição, que
foi chave na divisão entre a maioria da socialdemocracia europeia e sua ala
esquerda, liderada por Lênin e Trotsky na célebre conferência de Zimmerwald de
1915, pode ser encontrado na avaliação do que foi o comportamento do proletariado
diante da Primeira Guerra Mundial: suas responsabilidades na conflagração, e
sua fragilidade diante do apelo do discurso nacionalista-imperialista,
sobretudo na França e Alemanha, mas, também, na Inglaterra e Rússia. É um fato
inquestionável que a maioria dos trabalhadores europeus apoiou a política
beligerante de seus governos no início da guerra, e esse estado de espírito
exerceu uma enorme pressão sobre os seus partidos. Mas também é verdade que nem
todas as classes operárias da Europa seguiram o caminho dos alemães e
franceses: os suíços e os italianos não o fizeram, e não foram os únicos. Mais
importante, em pouco tempo, as atrocidades e aberrações exigidas pela guerra de
trincheiras deslocaram a opinião dos setores mais massivos da classe de apoio
entusiástico para hesitação e, depois, para a hostilidade à guerra. Finalmente,
é vital compreender qual foi a dinâmica dos fatos, na sua articulação causal,
de conjunto: a mesma classe trabalhadora que sucumbiu ao apelo nacionalista no
início da Guerra, protagonizou na Rússia em 1917 a primeira revolução
socialista da história e, em 1918 uma fulminante revolução política democrática
que derrubou o Kaiser na Alemanha, e proclamou a República.
Na avaliação de um processo histórico é
preciso evitar perder a perspectiva da totalidade: por isso mesmo deve ser
considerado enigmático o balanço “irônico” de uma suposta “traição” do
proletariado alemão contra si mesmo e contra os interesses dos trabalhadores
europeus, como se não fosse comum às classes populares agirem contra os seus
interesses. Não só o fazem, dentro de certos limites, e por um certo período de
tempo até que os acontecimentos mesmos demonstrem pela força viva das suas
consequência, quem está sendo beneficiado, e quem está sendo prejudicado, como
o fazem de forma recorrente. Não é nada excepcional. Ao contrário, essa é uma
das regularidades históricas mais frequentes, e por isso mesmo é que a história
tem um grau de incerteza e imprevisibilidade tão elevado. Os oprimidos são, na
maioria das circunstâncias, não só dominados, mas dirigidos pela classe
dominante. Isso é a crise de direção.
As massas não aprendem política na escola. Os
trabalhadores, como todas as classes sociais ascendentes no passado histórico,
passaram pela cruel escola do aprendizado político-prático para construir pela
experiência uma consciência de onde estavam localizados os seus interesses de
classe. Nada substitui essa experiência. Não parece, portanto, razoável retirar
conclusões teóricas definitivas sobre o nacionalismo “incorrigível” do
proletariado dos países centrais, ou reformismo “teimoso” dos países
periféricos. O tema é vital porque, se os trabalhadores dos países centrais não
os impedirem, os imperialismos modernos, provavelmente, arrastarão a humanidade
em novas hecatombes guerreiras que ameaçam a sobrevivência do que entendemos
como civilização. Mas a experiência somente não é o bastante. Sem a incidência
da luta política de organizações revolucionárias a maioria dos trabalhadores
não se eleva à consciência da luta pelo poder. Outra questão mais complexa,
portanto, diz respeito às relações do proletariado com suas direções: que a
socialdemocracia se adaptou às pressões de sua base social é um fato
incontroverso e, nesse sentido, em um tribunal da história, se existisse, não
haveria “absolvição” para o proletariado alemão. Afinal, a socialdemocracia não
teria feito senão o que os trabalhadores que o apoiavam queriam (e esperavam)
que ela fizesse. Seria então razoável a conclusão que considera a dificuldade
dos explorados e oprimidos se organizarem, fundamentalmente, pelo papel de
lideranças pouco consequentes uma “teoria das traições”, ou uma versão
conspirativa da luta política? Nenhuma classe na sociedade contemporânea pode
se expressar somente através de um partido, nem a burguesia, nem a classe
média, nem os trabalhadores.. Há uma inevitável luta de partidos na esquerda,
entre os mais moderados que apostam em uma reforma do capitalismo, e os mais
radicais que apostam em ir além do capitalismo, portanto, na necessidade de uma
transformação revolucionária e, entre estas posições extremas, mediações
intermediárias.
A forma dominante dos regimes políticos nos
países centrais, desde da derrota do nazifascismo em 1945, e na América Latina
desde a restauração capitalista na URSS em 1989/91, foram democracias liberais
que garantiram legalidade às correntes socialistas e comunistas. A existência
de organizações de esquerda com participação nos parlamentos e, mais
excepcionalmente, com acesso aos governos, exerceu pressões gigantescas de
adaptação à ordem. As ilusões reformistas não morrem sozinhas. Tudo é uma
questão de proporção. As massas não são, politicamente, inocentes. Mas as
responsabilidades das direções e dos seus atos nunca foi, historicamente,
irrelevante. Todo aparelho político desenvolve, em alguma medida, interesses
próprios.
Portanto, as escolhas dos sujeitos sociais
não absolvem as responsabilidades dos sujeitos políticos. Todos os partidos de
esquerda, mais moderados ou radicais, tiveram relações conflitantes com suas
bases sociais em algum momento. Grandes direções são aquelas que tiveram a
lucidez e a coragem de defender os interesses de sua base social, até contra a
vontade delas, correndo o risco de ficar em minoria. Existe nas sociedades
modernas de forma ininterrupta uma luta política entre os partidos que
expressam, ou buscam traduzir os conflitos de interesse na sociedade; mas
existe, também, para além de uma luta entre os partidos para conquistar o apoio
de sua base social, uma disputa da base social das outras classes cujo apoio
aspiram, ou necessitam, para as posições que, em cada momento, correspondem
melhor à defesa de seus interesses. Isso significa que existe sempre uma
defasagem entre as necessidades objetivas das classes, e o grau de consciência ou
estado de espírito, humor, ânimo que a classe tem sobre os seus
interesses. E em momentos de súbitas viradas do curso das situações políticas o
hiato é maior.
Esse hiato é ainda mais acentuado entre os
trabalhadores do que entre as classes dominantes, pela razão arqui-conhecida de
que os trabalhadores têm sempre que vencer uma enorme quantidade de obstáculos
materiais, culturais, políticos e ideológicos para se afirmar e constituir como
classe independente. A democracia não é um regime político de luta entre os
iguais: as classes proprietárias lutam para exercer e preservar um domínio e um
controle sobre a vida material, e, também, sobre a vida cultural e política dos
trabalhadores, em condições de superioridade que são incomparáveis. A burguesia
luta por uma hegemonia sobre toda a sociedade, sob a bandeira dos seus valores
e seus interesses, que são sempre apresentados como os interesses de todos: ela
não ambiciona somente dominar, ela quer dirigir. A luta para conquistar
hegemonia socialista entre as massas populares, dividir e arrastar uma parcela
das camadas médias, é a chave da estratégia.
Os partidos de esquerda foram assim,
historicamente, um instrumento de organização e resistência. Devem ser um ponto
de apoio para que a classe possa se defender: essa é a sua utilidade e, se
fracassarem nesse elementar propósito, tendem a perder autoridade, audiência e
respeito. Por isso, a fórmula simples que propõe resolver a questão da
representação política com a “equação do reflexo” – triunfam aqueles que dizem
aquilo que as massas querem ouvir – é estéril. O problema é imensamente mais
complexo, porque todas as classes têm a expectativa de que as suas direções
vejam além do que elas mesmas foram capazes de perceber. Não perdoam os
dirigentes que se adaptaram às pressões do momento e, ziguezagueando de acordo
com as flutuações dos humores instáveis das multidões falaram, em cada momento,
aquilo que a maioria queria ouvir. A história revela à exaustão que as classes
podem ser impiedosas e inflexíveis com os seus dirigentes. Esse julgamento
severo só se impõe diante de acontecimentos terríveis que exigem enormes
sacrifícios, que transtornam a tal ponto as circunstâncias da vida da sociedade
que fazem as grandes massas, em condições normais, politicamente desinteressadas,
entrarem no palco da história como personagens principais. Essas circunstâncias
são as crises revolucionárias. Por último, como organizações que se apresentam
e constroem como direção de classe, ou disputando com os partidos burgueses a
direção da classe, os partidos operários se propõem, em cada circunstância,
interpretar onde estão depositados os interesses da classe que pretendem
representar. Mas os partidos operários não atuam fora das pressões sociais da
politica: estão inseridos em uma ordem econômico-social desigual, e portanto
expressam maior ou menor capacidade de resistir às pressões das classes
dirigentes da sociedade.
Existe assim uma intransferível
responsabilidade moral e política, em uma esfera diferente das
responsabilidades das massas, que é própria das organizações políticas e suas
direções. No caso dos partidos que se reivindicam de esquerda essa
responsabilidade parece ser, historicamente, ainda maior, dado a enorme
dificuldade de uma classe ao mesmo tempo explorada materialmente, oprimida
culturalmente e dominada politicamente construir a sua independência. Nesse
sentido, quando o SPD apoiou os créditos de guerra, e defendeu perante a sua
classe que os interesses do proletariado eram indissolúveis dos interesses da
Alemanha, o SPD traiu os trabalhadores, e seus dirigentes não podem ser
absolvidos pelas circunstâncias transitórias que levaram a maioria da classe a
ter a mesma opinião. Relativamente poucos anos depois, a maioria da classe
percebeu que os seus interesses não eram os mesmos que os do seu governo. Mas
tiveram que fazê-lo sozinhos pelo caminho da experiência, porque não
encontraram na sua poderosa organização um alerta. Este tipo de defasagem
política entre e classe e direção também afeta as outras classes da sociedade,
inclusive a burguesia. É célebre o exemplo de Churchill e sua luta, durante
anos, contra a maioria da burguesia inglesa sobre a necessidade do Reino Unido
se preparar para o esforço de guerra contra o nazismo. O que, no entanto,
parece ser específico à condição do proletariado, é que, como classe
ascendente, ele tem uma enorme dependência de encontrar nas suas organizações
um ponto de apoio, porque é consciente que sua força depende de sua unidade, e
por isso os seus setores mais massivos preferem estar mal organizados do que
desorganizados. A burguesia troca de chefes muito mais facilmente e mais
rápido.
Fonte: Opera Mundi

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