40 anos de democracia: Nova República é
pressionada pela economia
O agora presidente em exercício José Sarney
estava montado sobre um cavalo xucro de nome Brasil. Em aproximadamente 30
dias, tempo entre assumir o cargo para o qual Tancredo Neves fora eleito, e a
morte do presidente, em 21 de abril de 1985, ele conviveu com a angústia de
acompanhar a saúde do homem que deveria estar à frente do governo e a
necessidade de consolidar a Nova República com urgência de decisões. O dia a
dia de um país em movimento, e ansioso por respostas rápidas, obrigou à adoção
de medidas e a tomadas de decisão muito além das diretrizes traçadas no período
entre a vitória no Colégio Eleitoral e a posse, em 15 de março de 1985.
A manchete do Correio
Braziliense de 18 de março de 1985, que trouxe a cobertura da primeira
reunião ministerial conduzida por Sarney, no dia anterior, um domingo, atesta a
onipresença do presidente hospitalizado nas discussões de governo: "É
proibido gastar, ordem de Tancredo — Ministério só poderá anunciar obras depois
de fazer o levantamento de sua situação financeira", avisa o título na primeira
página. Sarney, mais uma vez, reafirmou seu compromisso com o presidente
internado e, em novo discurso, pediu empenho do primeiro escalão que não
nomeara.
"É proibido gastar. Pretendemos orientar
a aplicação daquela parcela dos fundos públicos hoje desperdiçada em obras
adiáveis, consumo injustificado e programas de baixo ou nenhum rendimento
(...). A luta contra a inflação exige coragem e abnegação. Exige, também, a
articulação de um pacto social justo, no qual cada um possa vislumbrar, ao
final do embate, recompensas ao esforço realizado. (...) As chamadas mordomias
constituem um dos símbolos mais execrados do abuso e da prepotência. É chegada
a hora de proceder a um amplo levantamento dessa situação e de propor medidas
cabíveis para a sua redução", exortou Sarney.
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O alinhamento
Mas o presidente interino também cobrou,
sutilmente, respeito dos ministros àquele que ocupava o comando do governo na
ausência do titular, pois ali estava por uma circunstância, não por um desejo
ou vaidade. "É indispensável manter-se a ordem. Sem ordem não chegamos à
parte alguma. Sem ordem não há progresso, não há democracia, não há produção,
não há bem-estar social. Não há segurança para cidadão", advertiu.
O aviso tinha razão de ser. Sarney via com
clareza que os integrantes do ministério deviam fidelidade a Tancredo, ainda
que com todos tivesse bom relacionamento e os conhecesse de longa data. No
depoimento a Regina Echeverria, em Sarney, a Biografia, o ex-presidente aponta
que os ministros Francisco Dornelles (Fazenda) e José Hugo Castello Branco
(Casa Civil) tutelavam seus atos para que não nomeasse, no segundo escalão do
governo, nomes que lhe fossem ligados. No terceiro, Sarney soube pouco do que
acontecera — os ministros foram preenchendo os postos sem informar as escolhas
ao Palácio do Planalto.
Como disse Fernando César Mesquita,
ex-porta-voz da Presidência, ao repórter Vanílson Oliveira, do Correio
Braziliense, Sarney teve a possibilidade de nomear Jorge Murad como secretário
pessoal — a pedido da filha, Roseana, com quem era casado — e o imortal da
Academia Brasileira de Letras (ABL) Marcos Vilaça para assessorá-lo. Também
trouxe Joaquim Campelo Marques, coautor do Dicionário Aurélio, a quem incumbiu
zelar pela boa redação da Língua Portuguesa nos documentos oficiais. Por
deferência ao clã Neves, nomeou d. Risoleta, mulher de Tancredo, presidente da
Legião Brasileira de Assistência (LBA) — autarquia que prestava amparo social
às famílias abaixo da linha da pobreza, extinta em 1995.
Mas não era apenas dentro do governo que
Sarney enfrentava resistências. Seu relacionamento com o presidente da Câmara
dos Deputados, Ulysses Guimarães, era de altos e baixos. O Senhor Diretas
trabalhava com a certeza de que o interino era somente a pessoa a esquentar a
cadeira até que o titular, em breve, a ocupasse. E, por causa disso, não tinha
pudores em tomar providências para que a Nova República realmente se instalasse
— como relata Luís Gutemberg em Moisés, codinome Ulysses Guimarães: uma
biografia:
"Essa coabitação do poder aconteceu de
modo natural. Sarney não reagiu. Aceitou passivo, como uma fatalidade. Que
Ulysses Guimarães exercesse sua autoridade de Moisés diante da Terra Prometida
para qual havia conduzido o povo de Deus desde o Egito. Nem de longe imaginava
que o transitório era Ulysses, e não ele", observa Gutemberg.
·
O dia a dia
Da primeira reunião ministerial, em 17 de
março, saíram decisões. No dia seguinte, o Diário Oficial da União reabilitou
os mandatos de 164 sindicalistas, que os haviam perdido por perseguição da
ditadura militar. Um deles era o do hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Mais uma: o Banco Central liquidava extrajudicialmente o Brasilinvest,
instituição financeira que pertencia ao empresário Mário Garnero, por causa de
irregularidades.
Além disso, foram suspensas mais de 100
concessões de emissoras de rádio e tevê assinadas pelo então presidente João
Baptista Figueiredo, nos momentos finais do seu governo — os atos de anulação
foram publicados em 19 de março. E na esteira do esquadrinhamento dos derradeiros
atos da ditadura, Sarney determinou a retirada do Congresso de 300 projetos de
lei para reanálise na Casa Civil.
Não parou aí. Foi restabelecida a autonomia
administrativa de 31 municípios classificados como Área de Segurança Nacional.
Além disso, o Palácio do Planalto remeteu ao Congresso um projeto de lei que
liberava 900 bilhões de cruzeiros para socorro dos grupos financeiros
Sulbrasileiro — que estava sob intervenção do BC desde 7 de janeiro de 1985 — e
Habitasul. Antes, ambos tentaram uma fusão justamente com o liquidado
Brasilinvest.
Sarney ainda se reuniu com a chefe da missão
do Fundo Monetário Internacional (FMI) para o Brasil, a economista chilena Ana
Maria Jul, que veio cobrar do governo o cumprimento das medidas acertadas em
novembro de 1982. Três anos antes, o país pediu (e recebeu) da instituição
multilateral US$ 4,5 bilhões. Em troca, comprometeu-se a arrochar salários,
aumentar impostos e restringir importações e crédito interno. Os termos foram
negociados por Ernane Galvêas, então ministro da Fazenda do governo Figueiredo.
Sobre a saúde de Tancredo, Sarney vinha sendo
mantido à parte, conforme observa à biógrafa Regina Echeverria. Só soube que o
presidente eleito seria transferido de Brasília para o Instituto do Coração, em
São Paulo, pela filha Roseana, que estava na casa de amigos quando receberam um
telefonema informando a remoção. Atribui esse afastamento ao general Ivan de
Sousa Mendes, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), que era
ligado ao político maranhense Victorino Freire, desafeto de Sarney.
"Ele nunca teve a noção de que falava
com o presidente da República, a quem devia lealdade e transparência",
lamentou, conforme registrado em Sarney, a Biografia. Sousa Mendes, porém,
mantinha Ulysses e o general Ernesto Geisel, penúltimo presidente da ditadura
militar, a par de tudo que se passava com Tancredo.
Para não ser driblado, Sarney recorreu à
amizade com os médicos Fúlvio Pileggi e Giovanni Bellotti, ambos do Hospital do
Coração, para saber da saúde do presidente eleito. Inclusive, foi por eles que
teve conhecimento da segunda cirurgia e que o quadro de Tancredo se agravava.
Porém, é preciso ressaltar que Sarney não
guardou mágoa de Sousa Mendes, que morreu em fevereiro de 2010. À época, por
meio de nota, o ex-presidente disse que "o general Ivan, colaborador de
meu governo na condição de ministro da Informação, foi um profissional de
extrema competência e grande compromisso com seus deveres institucionais".
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O problema
Ulysses, por sua vez, incomodava com os
espaços que tentava reservar para si. Apesar de elogios à condução que Sarney
fazia do recém-começado governo por peemedebistas — como o ministro da Justiça,
Fernando Lyra, e o líder do partido na Câmara, Pimenta da Veiga — e por
petistas menos radicais — como o deputado Airton Soares, que votou em Tancredo
no Colégio Eleitoral e foi punido pela cúpula do PT de então —, o Senhor
Diretas agia sem consultar o presidente em exercício. Segundo relatado em
Sarney, a Biografia, chegou ao ponto de, por conta própria, convocar para uma
reunião 10 ministros do PMDB, mais as lideranças do partido. Sarney não foi
avisado. O tema eram as nomeações de segundo e terceiro escalões.
Nesse momento, o presidente da Câmara teria
dito aos presentes: "O que eu fazia com Tancredo, vou fazer com
Sarney", afirmou, para protesto de Lyra e do senador Fernando Henrique
Cardoso.
Essa tentativa de impor a duplicidade de
comando resultava no rápido desgaste da imagem do presidente em exercício.
Analistas da cena política à época (como o jornalista Paulo Francis)
menosprezavam a interinidade vivida por Sarney. Preferiam considerá-lo, de
saída, inepto para substituir o carismático Tancredo. Para isso, davam maior
peso à trajetória política que construíra pré-rompimento com a ditadura
militar. E à medida que a saúde do presidente eleito se agravava, muitos
expunham, em críticas agressivas, o ceticismo sobre o sucesso de um eventual
governo Sarney.
"Eu o ouvia (Ulysses) em todas as
decisões e nomeações. Com isso, evitava abrir uma frente que seria fatal para
minha frágil legitimidade. Ulysses sentiu-se confortável e adquiriu confiança
em que eu jamais faria um jogo para afastar o PMDB. Ele também sabia que eu não
tentaria impor um projeto pessoal. Não podia perder de vista o dever moral de
governar com o PMDB de Tancredo, e não hostilizá-lo. Mas isso, em política, não
é fácil", explicou Sarney a Regina Echeverria.
As decisões do presidente em exercício,
porém, receberam o endosso do presidente internado, que serviram para deixar
claro a quem o governo deveria respeitar — e, aos demais poderes, a quem se
dirigir. Em 23 de março de 1985, Tancredo escreve a Sarney e expõe a confiança
no substituto: "A Nação está registrando o exemplo de irrepreensível
correção moral que o prezado amigo lhe transmite no exercício da Presidência da
República", frisa, logo no começo da carta.
Em 25 de março, Sarney devolve a gentileza.
"Seu generoso julgamento é motivo de grande orgulho. Melhor recompensa
minha modesta vida pública não poderia ter", diz, também em mensagem escrita.
Não por coincidência, em 22 de março a manchete do Correio Braziliense foi:
"Sarney: País não pode ficar parado — Presidente em exercício tem respaldo
político e militar para começar a governar de fato".
Segundo Thomas Skidmore, em Brasil: de Castelo
a Tancredo, já na condição de definitivo por conta do quadro irreversível de
saúde daquele com o qual formara a chapa no Colégio Eleitoral, Sarney fez a
seguinte observação sobre o quadro político e econômico que teria de domar.
"Eu, sem o desejar, sem ter tido tempo
para preparar-me, tornei-me o responsável pela maior dívida externa sobre a
face da terra, bem como da maior dívida interna. Minha herança incluiu a maior
recessão de nossa história, a mais alta taxa de desemprego, um clima sem precedentes
de violência, desintegração política potencial e a mais alta taxa de inflação
da história do nosso país — 250% ao ano, com a perspectiva de atingir
1.000%", anotou.
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O pacote
Por causa da difícil situação econômica do
Brasil, um pacotaço de medidas restritivas é baixado em 18 de março. Segundo a
manchete do Correio Braziliense do dia seguinte — "Nova República
desembrulha o primeiro pacote de arrocho" —, eram seis os principais
pontos a serem implantados pelo governo: 1) ministérios tinham 30 dias para cortar
10% dos próprios orçamentos; 2) empréstimos dos bancos oficiais eram suspensos
por seis meses; 3) execuções orçamentárias de cada pasta do governo seriam
escrutinadas — e eventualmente liberadas — pela Fazenda; 4) estavam suspensas
as contratações nos órgãos da administração direta e indireta; 5) punição para
autarquia ou estatal que não saldar o empréstimo externo que fizera; e 6)
regras de rolagem da dívida interna das empresas junto aos bancos deveriam ser
cumpridas conforme os termos já ajustados.
Os maus números da economia eram a principal
preocupação na arrancada da Nova República. Em 23 de março, o Correio
Braziliense registra na manchete: "Correção monetária muda para atacar
especulação — Com a mudança de cálculo, Banco Central espera reduzir a
inflação".
Em paralelo, a comissão da constituinte, em
que se daria os primeiros passos para a Carta a ser promulgada em 5 de outubro
de 1998 — a criação da Assembleia Nacional Constituinte nasceu de um proposta
de emenda à Constituição (PEC) enviada por Sarney ao Congresso, em julho de
1985 —, aguardaria a retomada da Presidência por Tancredo. Segundo o ministro
Fernando Lyra, da Justiça, o decreto da criação do colegiado estava pronto e
tinha sido analisado pelo jurista Affonso Arinos, que a encabeçaria, e teria
como secretário-executivo o jornalista Mauro Santayana.
Porém, segundo o hoje deputado Aécio Neves
(PSDB-MG), então secretário particular de Tancredo, em depoimento à memória da
Câmara dos Deputados, Sarney deixou a missão de formular a nova Constituição
totalmente a cargo do Congresso. Para Aécio, que foi constituinte, a Carta de
1988 é o principal legado do ex-presidente ao Brasil. "Do ponto de vista
político, foi ele que permitiu que o Brasil discutisse e aprovasse uma
Constituição sem qualquer interferência do Poder Executivo", garante.
Fonte: Correio Braziliense

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