Decisão do Ibama sobre Belo Monte retoma disputa entre
energia e vida tradicional no Xingu
No último dia 24 de janeiro, beiradeiros e indígenas
moradores da Volta Grande do Xingu foram surpreendidos por algo que há anos não
viam acontecer nesta época do ano: a elevação rápida do nível do rio no trecho
de cerca de 130 quilômetros entre a cidade de Altamira e a Usina Hidrelétrica
de Belo Monte, no Pará. As águas já estavam subindo quando a Norte Energia,
concessionária que opera a hidrelétrica, enviou uma sequência de mensagens
avisando aos moradores que a vazão (volume de água que corre por um determinado
trecho) aumentaria de cerca de 1.800 metros cúbicos por segundo (m3/s)
para mais de 5.000 m³/s já no dia seguinte. Foi o suficiente para, pela
primeira vez em meses, a água entrar em uma das ilhas da Volta Grande do Xingu,
formando um pequeno riacho no chão da mata. Era o sinal que os peixes
esperavam: a chance de depositar suas ovas na água em um local seguro. No dia
seguinte, porém, a vazão diminuiu e o pouco de água que havia entrado na ilha
retrocedeu. Foi quando Jainy Kuruya de Almeida, de 42 anos, encontrou uma cena
horrível: as milhares de ovas recém-depositadas tinham ido parar todas no seco.
Uma sentença de morte, já que elas precisam estar na água para sobreviver. “Dava
para ver os ‘peixinhos’ pulando dentro. Muito triste”, disse ela à reportagem.
O episódio de morte em massa na Volta Grande está no
centro do mais recente capítulo de um longo histórico de disputas entre a Norte
Energia e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (Ibama), responsável pelo licenciamento ambiental do empreendimento,
sobre a quantidade de água para a Volta Grande do Xingu. No último dia 14, o
órgão federal determinou que a empresa mantivesse aquela vazão maior de água na
região até o final do período de defeso (paralisação temporária da pesca para
preservar as espécies), sem reduções que pudessem provocar uma queda abrupta no
nível do rio, levando a novas perdas de ovas, como a flagrada por Jainy.
A questão é que o aumento da vazão só ocorrera a partir
de um fato extraordinário: uma tempestade havia derrubado cinco torres de uma
das linhas de transmissão ligada à usina, provocando o desligamento de algumas
unidades geradoras. Sem a possibilidade de gerar mais energia, a Norte Energia
se viu obrigada a liberar mais água do que o previsto em seu planejamento para
a Volta Grande. Três dias depois da decisão do Ibama, a Norte Energia entrou na
Justiça contra a determinação, argumentando que o problema na linha de
transmissão já havia sido solucionado e que, portanto, já estava apta para
reduzir a vazão e voltar a gerar mais energia. Segundo a empresa, seguir a
determinação do Ibama implicaria perdas para a geração elétrica e danos de
cerca de R$ 16 milhões por mês para a Norte Energia. No último dia 19, a
Justiça acatou os argumentos e autorizou a redução da vazão. À reportagem, o Ibama
afirmou que na segunda-feira (24/02) houve uma reunião entre o órgão, a Agência
Nacional de Águas (ANA) e a União para “para discutir a ação proposta pela
Norte Energia e a liminar concedida pelo juiz da causa”. Ainda de acordo com o
órgão, o Ibama apresentará ao juiz esclarecimentos técnicos sobre a questão.
<><> Por que isso importa?
- Decisão do Ibama de manter vazão de
água mais alta para a Volta Grande do Xingu reacende denúncias de
indígenas e ribeirinhos sobre impactos socioambientais no momento em que
renovação da licença é analisada.
- Embate em torno do chamado hidrograma
escancara o fato de que a usina gera, em média, apenas 31% da sua
capacidade instalada, enquanto o rio, muito seco, não consegue mais
garantir a reprodução de peixes.
<><> Água em disputa
A quantidade de água na Volta Grande do Xingu é um dos
pontos mais sensíveis do processo de renovação da licença de operação da usina,
vencida desde 2021 e atualmente sob análise do Ibama. A explicação é simples:
quanto mais água é liberada para a região, menos água fica disponível para
correr pelas turbinas e gerar energia. Mas a licença de operação da usina
determinou que o controle da vazão fosse feito de forma a atenuar os impactos
para a fauna e para o modo de vida das populações da Volta Grande. “A água hoje
está sendo roubada. Estão roubando a água da reprodução dos peixes”, resume a
beiradeira e pescadora Sara Rodrigues Lima, de 41 anos, sobre a situação da
região em que nasceu e sempre viveu. O “roubo”, como denunciado por Sara,
acontece pela operação da usina, que, ao barrar o fluxo do rio, retirou em
média entre 70% e 80% das águas que antes alimentavam o Xingu no trecho da
Volta Grande. Isso porque a usina opera no modelo chamado “fio d’água”. Outras
hidrelétricas do mesmo porte no Brasil, como Itaipu e Tucuruí, possuem imensos
reservatórios para regular a quantidade de água que passa pelas turbinas. Já
Belo Monte depende do fluxo natural do rio.
Para essa engenharia funcionar, foram necessárias duas
barragens. A primeira, do Pimental, tem uma casa de força pequena, com apenas
seis turbinas. Sua principal função é barrar o fluxo do rio – em um ponto a
cerca de 40 km da cidade de Altamira, logo antes do início da Volta Grande –
para encher o reservatório do Xingu, formado pelo próprio leito do rio. A água
desse reservatório é desviada por meio de um canal para um segundo
reservatório, menor, que alimenta a segunda barragem, a de Belo Monte, onde
está a casa de força principal, com 18 turbinas com 11.000 MW (megawatts) de
potência instalada – para comparação, Itaipu, a maior usina do país, tem
capacidade de 14.000 MW.
Por centenas de milhares de anos, o ciclo do rio esteve
bem demarcado entre períodos de enchente (quando as água começavam a subir, a
partir de novembro), cheia (cujo pico costumava ser em abril), vazante (quando
as águas começam a baixar) e seca (entre agosto e setembro). Era esse pulso do
rio que orientava todos os ritmos da vida na região, da frutificação das
árvores à alimentação e reprodução de peixes e outros animais. Tudo estava
sincronizado – e os povos tradicionais da região, indígenas e beiradeiros,
conheciam essa sincronia como ninguém, dependendo dela para todas as suas
atividades. Até que veio a hidrelétrica. “Hoje em dia quem manda no ciclo é a
Norte Energia. O rio Xingu está sendo escravizado pelo desenvolvimento, um
desenvolvimento que não serve para mim, que sou pescadora, beiradeira e mãe
aqui na Volta Grande”, diz Sara. Para ela e para outras famílias tradicionais
da região, o funcionamento da usina implica massacres – do rio, de um mundo e
de um modo de vida – na medida em que não é mais a natureza que dita o pulso do
Xingu. A regra, agora, é a do “hidrograma”, plano que estipula a vazão a ser
praticada a cada mês na região, definido nas licenças ambientais da usina,
aprovadas pelo Ibama, e estabelecido na outorga da ANA, que concedeu à Norte
Energia o direito de usar o rio Xingu. A empresa chama de “hidrograma de
consenso” – termo contestado por moradores da região – e defende a regra,
alegando que seus impactos já estavam previstos no Estudo de Impacto Ambiental
(EIA), apresentado há mais de uma década, durante o licenciamento.
No final de 2023, um relatório de técnicos do Ibama
chegou a recomendar que a Norte Energia ajustasse o hidrograma para a região da
Volta Grande, com “água suficiente para que a ictiofauna [peixes] se reproduza
nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e março”. A recomendação, no entanto,
não subiu de nível na hierarquia do órgão. Em comunicado à empresa, a Diretoria
de Licenciamento Ambiental do Ibama disse que a questão do hidrograma ainda
estava “sob avaliação institucional” e orientou a Norte Energia a aguardar
novas orientações. Desde então, o órgão só se manifestou em situações pontuais
sobre a vazão, como no último dia 14.
Mais cedo ou mais tarde, porém, o Ibama precisará se
pronunciar de forma definitiva sobre o hidrograma, já que está analisando a
renovação da Licença de Operação da usina, expedida em 2015 e vencida há quase
quatro anos. Uma das medidas que condicionam a operação é, justamente, o
controle das vazões da Volta Grande do Xingu, “sempre com objetivo de mitigar
impactos na qualidade da água, ictiofauna, vegetação aluvial, quelônios, pesca,
navegação e modos de vida da população da Volta Grande”. Questionado sobre esse
e outros pontos, o Ibama não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem. O
órgão tem sido alvo de intensa
pressão pública,
após falas
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e outras autoridades do governo
federal sobre a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas. A Norte Energia,
também questionada pela reportagem, informou que não vai se manifestar. Caso a
empresa ou o órgão decidam se manifestar, esse texto será atualizado.
·
Piracemas secas
Ainda que a queda das torres de transmissão tenha
possibilitado um volume maior de água no final de janeiro, a vazão continuou
muito abaixo da média histórica antes da construção da usina. A reportagem
esteve na região entre os dias 4 e 8 de fevereiro, quando a vazão média foi de
5.579 m³/s – menos da metade da média histórica de 13.544 m³/s para o mês de
fevereiro. Ainda assim, mais do que os 1.600 m³/s previstos pelo hidrograma. Essa
quantidade de água tem sido insuficiente para alagar áreas onde, antes da
usina, havia reprodução de peixes, as chamadas piracemas. No Xingu, a palavra
se refere, simultaneamente, aos meses e aos locais de reprodução. Elas podem estar
localizadas nas ilhas do rio ou em terra firme. Também podem estar conectadas a
um lago ou dependerem exclusivamente do Xingu para encherem de água. A
reportagem esteve em sete piracemas na Volta Grande. Nenhuma delas tinha água
suficiente para que os peixes pudessem entrar para desovar e se alimentar. Duas
estavam completamente secas. Um mau sinal, já que essas piracemas costumavam
alagar primeiro. “O igapó inundava mais de 1 metro, várias frutas caíam na
água. Tanto o pacu como o matrinxã, a curimatá, que entravam para fazer a
desova, vinham se alimentar. Trairão, traíra, arraia também. Tudo você via aqui
nessas ilhas. Agora não dá mais. As frutas caem todas no seco”, explica Josiel
Jacinto Pereira Juruna, de 33 anos.
Josiel é do povo Juruna, autodenominado Yudjá,
conhecido como “os donos do rio” por sua tradição canoeira e modo de vida
intimamente ligado ao Xingu. Ele é coordenador do Monitoramento
Ambiental Territorial Independente (Mati), uma iniciativa inédita no Brasil
formada por cientistas locais, indígenas e beiradeiros, que, em conjunto com
pesquisadores de diferentes universidades, monitora a saúde das piracemas e igapós
da Volta Grande. Em um trabalho diário, os monitores, todos moradores da
região, vão às piracemas sob sua supervisão munidos com seus celulares para
registrar o nível da água marcado nas réguas instaladas nos pontos que sempre
alagaram. “A gente consultou os mais velhos”, diz Josiel. “Quem indicou essa
piracema aqui foi meu pai, que hoje está com 75 anos. Ele nos contou o
histórico dessa piracema. Falou que antes da barragem, no final de novembro, já
entrava peixe aqui.”
Naquele 6 de fevereiro, no entanto, as camadas de
folhas secas no chão e os grandes ninhos de formiga saúva eram sinais claros de
que a piracema do Zé Maria não via água havia meses. O ribeirinho Raimundo da
Cruz e Silva, de 49 anos, explica: as formigas jamais faziam ninho em lugares que
sabiam que ia alagar. Segundo Josiel, se repetir o padrão dos últimos anos, a
água só deve chegar em abril, quando o período de reprodução já terá acabado. Trata-se
de um duplo problema: quantidade de água insuficiente e por tempo também
insuficiente. “Mesmo que seja num nível mais baixo, tem que manter a água por
um período minimamente adequado para que os peixes entrem, desovem, os ovos
consigam eclodir e as larvas possam crescer, para que quando a água baixe,
trazendo esses peixinhos de volta para o rio, eles já estejam num tamanho
grande o suficiente para que não morram tantos”, explica o biólogo Jansen
Zuanon, pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa) e integrante do Mati.
Desde que a usina começou a ser construída e a água do
Xingu, desviada, esse é um dos ciclos, forjados ao longo de milhares de anos
pela natureza, que foram quebrados. O Mati nasceu para traduzir, com dados
científicos, as consequências dessa ruptura, que os Juruna e os beiradeiros já
observavam por viverem no (e do) rio: o fim da reprodução em algumas piracemas
e a queda na quantidade e na qualidade dos peixes, que já não conseguem mais se
alimentar nos igapós.
Os dados contestam também os monitoramentos da Norte
Energia, que afirma, em comunicações oficiais, que a maioria das espécies
“manteve a proporção de peixes maduros” ao longo de 12 anos de estudos e que
algumas mudanças no padrão de reprodução já eram previstas no EIA. Recentemente,
a empresa informou que um levantamento participativo realizado com moradores da
região localizou mais de 140 piracemas e que parte delas teria ficado inundada,
“garantindo a reprodução para os peixes”. A reportagem pediu que a Norte
Energia explicasse como fez esse monitoramento e quais evidências coletou para
afirmar que a reprodução está assegurada. Não obteve resposta.
·
Ovas no seco
Jainy, que encontrou as ovas no seco no último dia 26,
é uma das monitoras do Mati. Ela relata que casos de morte em massa de ovas vem
acontecendo todos os anos. Na piracema do Odilo, monitorada por Josiel, a
primeira vez que o berçário de pequenos peixes se transformou em um cemitério,
como mostrou
reportagem da Sumaúma,
foi em fevereiro de 2023. “Meu pai mesmo falou que nunca tinha visto aquilo
acontecer”, conta Josiel. Desde então, na mesma piracema, ele encontrou ovas no
seco em 2024 e neste ano.
Por trás desses episódios está a variação da vazão na
Volta Grande, que muda em poucos dias, às vezes em poucas horas, segundo os
moradores, que chamam o movimento de “efeito sanfona”. Segundo a outorga da
ANA, a Norte Energia não pode alterar a vazão na região para além de
determinada taxa – o problema é que não se sabe qual a correlação entre essa
vazão e o nível do rio. Mesmo alterações pequenas na vazão podem alterar o
nível do rio e, por consequência, das piracemas. Quando mais água é liberada e
o rio começa a subir, os peixes entendem que é a hora da desova. Se, no
entanto, as comportas são fechadas e o nível do rio desce abruptamente, os
peixes acabam presos em poças ou em lagos, sem ter como voltar para o Xingu. Já
suas ovas vão parar no solo seco. “Os peixes ficam loucos”, diz Raimundo,
morador e liderança comunitária da Volta Grande, que monitora, pelo Mati, a
piracema do Goianinho, nome de sua comunidade.
A reportagem esteve no local: a água marcava menos de
60 centímetros na régua, mas, nesta época, era para já ter passado de 1,50
metro, alagando o igapó – a “floresta de peixes”, como diz Raimundo – onde ele
costumava entrar com uma canoa pequena, o que se tornou impossível desde a
usina.
·
Energia x reprodução
A disputa em torno das águas do Xingu é também uma
questão de calendário. Diante da determinação do Ibama para que a Norte Energia
não reduzisse a vazão até o final do período de defeso, em março, a empresa
alegou que haveria uma perda de 2.400 MWmed (megawatt médio) para o Sistema
Interligado Nacional, “energia suficiente para o abastecimento de mais de 13
milhões de pessoas”. Na ocasião, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS)
enviou uma carta ao órgão ambiental, na qual afirmou que as alterações na
disponibilidade de geração por Belo Monte poderiam “gerar impactos relevantes à
operação do sistema elétrico brasileiro”. Um dos argumentos centrais do ONS é
que entre dezembro e junho, quando chove mais no Norte do país, Belo Monte é
uma das “maiores usinas responsáveis pela geração de energia”, possibilitando,
inclusive, que os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste
sejam poupados para, depois, serem usados no período seco – quando a geração da
usina no Xingu despenca.
O problema é que os meses de enchente e de cheia, os
mais importantes para a geração de energia por Belo Monte, são também
fundamentais para a reprodução dos peixes na região. Isso porque o Xingu é um
rio sazonal, cujo volume aumenta de forma substantiva na cheia e reduz muito na
seca. Não à toa, especialistas e técnicos alertaram, ainda antes da construção
de Belo Monte, que o funcionamento a fio d’água da usina e a sazonalidade do
rio implicariam pouca geração de energia por vários meses do ano. Pesquisas
citadas em um relatório encomendado pelo governo Dilma chamado “Brasil 2040”
estimavam que o quadro se agravaria com secas mais frequentes e intensas
provocadas pelas mudanças climáticas. A previsão era de uma grande redução da
vazão de rios amazônicos até 2040, a ponto de inviabilizar Belo Monte. A
realidade foi ainda mais rápida. Em 2021, por exemplo, ano em que o país
enfrentou uma grave seca, a usina teve que desligar 17 de suas 18 turbinas, por
falta de água. Em setembro do ano passado, ano de seca recorde, Belo Monte
gerou apenas 3% de sua capacidade.
O alerta feito há mais de uma década se mostrou
correto: nos últimos cinco anos, a hidrelétrica gerou, em média, por ano, 3.485
MW médios – cerca de 31% de sua capacidade instalada total –, segundo dados do
ONS. O percentual está abaixo do fator de capacidade da média das hidrelétricas
do país, de 55%. Ainda assim, o Ministério de Minas e Energia (MME) tem
procurado defender o atual regime de vazão. A pasta elaborou uma proposta para
que o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), órgão de assessoramento
do presidente da República para políticas e diretrizes do setor de energia,
declare que a usina tem importância estratégica para a segurança energética do
Brasil. Em uma nota técnica enviada ao Tribunal de Contas da União (TCU) em
dezembro, o MME afirmou que vem atuando junto ao Ibama, à Norte Energia e aos
demais órgãos do setor para “sensibilizar” quanto aos impactos de “alteração no
hidrograma de Belo Monte para a segurança energética”. O próprio documento do
MME afirma que a energia assegurada por Belo Monte é de 4.571 MW – menos da
metade dos 11.000 MW de capacidade instalada. “Seis meses funcionando e seis
meses só gera um pingo de energia. Aí eu não sei por que acabou com a nossa
vida”, questiona Sara Rodrigues.
·
O fim de um jeito de viver
Foi com a renda da pesca que o pai dela, Francisco
Valeriano, criou os filhos, que também passaram a se dedicar à atividade.
Tinham uma renda confortável e nunca precisaram de auxílio governamental. O
futuro, diz Valeriano, “estava garantido”. “A gente não tinha nem possibilidade
de sofrer para ganhar o nosso dinheiro”, sintetiza Orlando Valeriano, 37 anos,
irmão mais novo de Sara, dada a abundância de peixes na Volta Grande. “Os
nossos filhos, o que eles queriam, a gente dava.” Com a queda acentuada na
quantidade de peixes, tudo mudou – para pior. “O que essa empresa fez com a
gente é uma humilhação muito grande”, diz ele. Questionado se alguma
alternativa de renda foi oferecida a eles, Orlando mostra os braços. Francisco,
o pescoço. Estão machucados, com feridas vermelhas. Explicam: “[Estamos]
queimando castanha [processo artesanal de torra de castanhas] para sobreviver”.
A falta de peixes na região não é apenas um problema de
renda e de atividade profissional. Mesmo quem não atuava como pescador
profissional teve a vida transfigurada, porque a alimentação de todos era
baseada nos peixes. Raimundo explica que, antes da usina, obter alimento era
fácil. As pessoas pescavam o próprio peixe e completavam a dieta com alimentos
cultivados em suas roças familiares. Hoje, denunciam que não há peixes
suficientes nem para subsistência. “Tu acha que um ribeirinho tem condições de
ir todo o dia lá no açougue, na cidade, comprar um quilo de carne?”, pergunta
Raimundo. “Não tem condições.” E não tem mesmo. As distâncias são enormes, o
rio não é mais navegável como antes. Ir a Altamira, a mais de uma hora de carro
a depender do ponto na Volta Grande, custa caro, comprar alguma proteína, mais
ainda. O problema econômico é agravado pela insuficiência dos programas de
geração de renda e subsistência, criados pela Norte Energia como medidas
compensatórias, algumas estavam previstas desde a Licença de Operação, de 2015,
outras foram definidas em 2021 em um acordo com o Ibama.
A reportagem ouviu 18 pessoas que vivem ou trabalham na
Volta Grande, todas relataram algum problema nos programas – de atrasos a falta
de assistência e inadequação das ações propostas para aquele ambiente.
Documentos do Ibama corroboram as falhas (a reportagem consultou 180 páginas de
documentos do órgão, entre relatórios técnicos, pareceres e ofícios, além de
mais de 1,8 mil páginas de ações judiciais, comunicações da Norte Energia e
outros documentos públicos de diferentes órgãos do governo federal). Em outubro
do ano passado, por exemplo, um parecer técnico do Ibama apontou que 44 ações
dos programas ainda não haviam sido concluídas, mesmo findado o prazo do acordo
firmado com a empresa. Apenas cinco haviam sido finalizadas – duas com atraso.
Não bastasse, a pesca na Volta Grande era parte de uma
transmissão de conhecimentos, técnicas e saberes passados ao longo de gerações.
Josiel Juruna, por exemplo, aprendeu a pescar com arco e flecha com o pai na
piracema do Odilo. Hoje, não tem onde ensinar a técnica tradicional de seu povo
ao filho pequeno. Uma vida de abundância – de “fartura”, como dizem os
beiradeiros – se transformou na gestão da escassez, provocando alterações tão
violentas e profundas no jeito beiradeiro e juruna de estar no mundo, que
várias famílias têm se visto obrigadas a abandonar a Volta Grande do Xingu. A
própria Norte Energia já informou ao Ibama que, a cada ano, a empresa deixa de
encontrar 10% das famílias que residiam na região. “O insucesso das medidas
mitigadoras propostas [no acordo] nos leva novamente a informar as autoridades
competentes que este empreendimento gera impactos sociais inaceitáveis
relacionados à perda do modo de vida ribeirinho na Volta Grande do Xingu”,
alertou o relatório técnico do Ibama, em outubro do ano passado. O mesmo
documento lembrou, mais uma vez, a necessidade de a Diretoria de Licenciamento
Ambiental indicar um hidrograma “que permita o modo de vida tradicional”.
O Mati já construiu uma sugestão, o chamado “hidrograma
piracema”, segundo o qual a vazão para a Volta Grande em fevereiro seria de
10.000 m³/s – o hidrograma atual prevê 1.600 m³/s. Além de uma maior quantidade
de água para os meses de reprodução, o hidrograma piracema tem outra diferença
fundamental: a vazão começaria a aumentar já em novembro (1500 m³/s em vez dos
atuais 800 m³/s) e só seria reduzida a partir de abril, com o fim da cheia,
emulando mais fielmente o ciclo da natureza. “Belo Monte não é fato consumado”,
disseram indígenas e beiradeiros à reportagem. “O nosso monitoramento vem com a
intenção de manter a vida na Volta Grande, manter a cultura, manter o modo de
vida, manter um povo nessa região, que não quer sair, que vem de gerações, dos
nossos ancestrais”, diz Josiel sobre a proposta do grupo. Recentemente, a Norte
Energia perguntou a algumas famílias se elas sairiam da Volta Grande caso
tivessem a oportunidade, segundo relataram os beiradeiros. Raimundo foi um dos
abordados. Respondeu que não. À reportagem, explicou: “Eu amo esse lugar: é
bom, é a vida da gente. Só uma tragédia para sair daqui”. A família de Sara
também continua firme em seu propósito de “lutar pela vida do rio Xingu”, como
diz a pescadora. “O desenvolvimento, a nossa fartura, que a gente queria que
permanecesse, era o nosso rio correndo livremente.” Resta saber qual
desenvolvimento será considerado pelo órgão licenciador.
Fonte: Por Isabel
Seta, da Agência Pública
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