Como o Ocidente destruiu as esperanças
de independência do Congo
O fardo que Patrice Lumumba,
primeiro-ministro da República do Congo, assumiu foi impressionante. Sobre seus
ombros jovens e magros — ele tinha então trinta e quatro anos — repousava o
peso de um país de seis províncias contendo 14 milhões de almas falando três
línguas principais — lingala, suaíli e kikongo — e um número incontável de
dialetos.
Ele herdou um cenário preparado para o desastre.
Funcionários do governo e empresários se demitiam. Profissionais saíam em massa
do país. Os belgas não tinham substitutos qualificados. Havia poucas pessoas em
qualquer área que fossem capazes de assumir responsabilidades. A força de trabalho
era composta apenas por escreventes, operários e trabalhadores braçais. Os
serviços mais básicos começaram a ruir. Como os belgas esperavam.
Em Léopoldville, na véspera da independência, de uma
população de 350.000, havia, pelo menos, 100.000 desempregados. Esse número
aumentaria “milagrosamente” na proclamação da independência, e o povo exigia
“trabalho e um bom salário, de uma vez”. Como o novo governo balançaria uma
varinha mágica e, dentro de dois dias após a proclamação, encontraria uma
solução para a catástrofe que os belgas vinham preparando há oitenta anos?
· Feridas mortais
Antes de 30 de junho, o Congo já estava
mortalmente ferido. Primeiro, houve as rivalidades pessoais e políticas
divisivas, depois os conflitos tribais e, então, as manifestações dos
desempregados. Finalmente, em 5 de julho, foi a vez do exército aumentar as
calamidades do país. Os soldados congoleses se recusaram a seguir obedecendo
aos comandos de seus oficiais belgas. Se amotinaram.
A principal fonte de sua fúria era a regra de que a
patente mais alta que um congolês poderia ter no exército naquela época, após
quinze anos de serviço, era sargento ou primeiro sargento. Poucos meses antes,
na Mesa Redonda Belgo-Congolesa, Patrice Lumumba havia apontado o “sério
problema” da africanização dos escalões superiores do exército.
Um belga, o general [Émile] Janssens, em particular,
era detestado por suas tropas congolesas. Desdenhosamente, ele anunciou que
havia “descartado a independência”. “Isso”, ele disse, era “para os civilizados”.
Com uma ferocidade que refletia com precisão o que
aprenderam com os belgas, o exército se rebelou. Sangue congolês foi derramado
quando os homens se voltaram contra seus oficiais. As represálias dos belgas se
assemelhavam muito às técnicas dos nazistas, por quem eles tinham sido
treinados. Lumumba tentou deter os tumultos, fazendo apelos pessoais a cada
lado por calma e razão.
O navio de Estado estava afundando perigosamente
enquanto más notícias continuavam a se acumular em todos os lugares. Em 4 de julho,
eu estava em Conakry [na Guiné] quando recebi o telegrama do primeiro-ministro
me pedindo para retornar ao Congo. Em 8 de julho, eu estava de volta a Leo com
meus amigos.
· Acendendo o barril
de pólvora
No aeroporto, a polícia belga ainda estava
de serviço. Quando cheguei, o homem que examinou meu passaporte me disse em um
tom agressivo: “Você foi expulsa do Congo. Não pode voltar.”
Georges Grenfell, um ministro de Estado e membro do MNC
[Movimento Nacional Congolês] de Lumumba, estava ao meu lado. Ele tinha sido
enviado a Gana para participar das festividades da proclamação da república.
Nos sentamos juntos no avião depois que ele embarcou em Accra, e ele acabou
intercedendo por mim.
“Você ainda está
tentando fazer a lei aqui? Onde você acha que está, na Bélgica? Esta é a
República independente do Congo. In-de-pen-dente, você entendeu? Sim, esta
mulher foi expulsa, mas o novo governo do Congo a trouxe de volta. Isso lhe
desagrada? Passe-me o telefone.”
O policial belga hesitou, marcando passo. “Para quem
você deseja telefonar?” “O primeiro-ministro, Patrice Lumumba.” “E seu nome?”
“Ministro de Estado Grenfell.” O policial ficou perplexo. “Ninguém veio
encontrá-lo?” “Talvez tenham vindo. Mas o avião estava oito horas atrasado,
sabia?”
Ele nos deixou passar. Pegamos o carro da empresa de
aviação e chegamos em Leo bem na hora do toque de recolher. Lumumba me recebeu
de braços abertos e com as seguintes palavras: “Você está oito dias atrasada!
Já ouviu as notícias?”
“Que o exército se revoltou? Sim, ouvi sobre em Dacar.
De Modibo Keïta. Diga-me… o que aconteceu?”
“Foi a declaração do General Janssens que acendeu o
barril de pólvora. Os homens simplesmente não aguentavam mais. Eles já estavam
trabalhando por salários miseráveis. A ideia de que eles continuariam a ser
comandados pelos oficiais belgas era simplesmente intolerável.”
“E neste momento!”
“Os homens tinham sido ensinados a atirar. Até em seus
próprios irmãos. E eles tinham armas e munição. Então se vingaram onde quer que
pudessem fazê-lo. Tanto em meio à população congolesa, como nos europeus. A
revolta se espalhou cegamente pela cidade, como uma doença. Tem sido terrível.”
“E agora? Como estão as coisas?”
“A partir de hoje, ficaram um pouco melhores. Passei o
dia conversando com os soldados, com [o presidente congolês Joseph] Kasavubu.
Conseguimos acalmá-los. O Camp Leopold está quieto desde então.”
· Desafiando o
destino
Patrice parecia exausto. Ainda assim, ele
teve a coragem de rir enquanto falava comigo, aquele riso que era a marca
registrada de sua esperança e idealismo. Apesar de tudo, ele riu, para desafiar
o destino.
“E você?”, ele me perguntou. “Que notícias traz?” “Na
Guiné, vi o presidente Sékou Touré e [Kwame] Nkrumah. Pedi a eles para nos
fornecer ajuda técnica.”
As notícias da revolta eram assustadoras. Mas a
imprensa belga tornou-as ainda piores do que eram, agravando a situação para
justificar o envio de paraquedistas belgas para estabelecer a ordem. O primeiro
ato dessas tropas belgas foi desarmar os soldados congoleses. Isso aconteceu na
mesma noite em que Moïse Tshombe anunciou a secessão de Katanga. Foi uma
reconquista, pura e simples.
Em Léopoldville, os paraquedistas belgas, em trajes de
combate, tomaram o controle em todos os lugares. Metralhadoras estavam
posicionadas nas encruzilhadas. Jipes controlados por rádio bloqueavam as
principais avenidas. O Aeroporto de N’djili foi cercado pelos paraquedistas
para garantir a evacuação dos europeus que, com bagagem em mãos, fugiam para a
Bélgica.
Havia um tráfego fantástico na praia também, onde
barcos eram alugados por brancos que fugiam para Brazzaville, para grande lucro
de [o líder Congo-Brazzaville Fulbert] Youlou. O pânico nesse êxodo era
terrível de se ver. Centenas de carros foram abandonados nas ruas, dando uma
aparência terrivelmente triste a esta cidade, que estava armada como uma
fortaleza.
Se os congoleses maltratavam os belgas, era
frequentemente para tentar impedi-los de deixar o Congo. Eles não queriam que
os brancos fossem embora. Por todo o país, havia o espetáculo revoltante de
violência e infortúnios de todo tipo.
“A palavra “macaque” (macaco) era usada como
epíteto para os negros pelos europeus, até mesmo pelas crianças.”
Ódio gera ódio. A palavra “macaque” (macaco)
era usada como epíteto para negros pelos europeus, até mesmo pelas crianças. E
os congoleses achavam que a palavra “Falamand”, uma corruptela de
“Flamand ” (flamengo), dita com terrível desprezo, era o insulto
supremo.
No Aeroporto de N’djili, houve incidentes entre os
negros que trabalhavam lá e os europeus que fugiam. Vários congoleses foram
mortos. O general Janssens declarou: “Isso será uma lição para aqueles que
tiveram a sorte de escapar de nossas balas. Se eles não se calarem, estamos
prontos para começar o esporte novamente.”
· Secessão de Katanga
AAssembleia dos Deputados tentou encontrar
um meio de retomar o controle do país, mas se viu paralisada. Com a secessão de
Katanga, o plano dos belgas de manter o controle de seus interesses econômicos
no Congo avançou com diabólico sucesso.
A ideia de Katanga como uma república separada era
realmente como uma caricatura vulgar de um mini Estado em uma opereta. Os
belgas levavam isso muito a sério, no entanto, pois viam na secessão um meio de
escapar da nacionalização das ricas minas de Katanga. Também, os belgas acreditavam,
levaria outras províncias com aspirações tribais à secessão depois dela.
Assim, a Bélgica oficialmente deixaria o Congo, cujas
enormes necessidades e endividamento contínuo, agravados pela fuga de capital e
a repatriação das reservas de ouro e crédito, o deixaram no vermelho por um
longo tempo. Mas ela manteria o prêmio, Katanga, e através de sua secessão [a
Bélgica] esperava também ganhar mais tarde as outras duas úteis províncias de
Kasai e Kivu.
Não posso falar de Katanga sem mencionar seu extraordinário
reservatório de minerais, ainda pouco explorados: ouro, cobalto, cromo,
platina, estanho, diamantes industriais, diamantes para joias, manganês,
níquel, metais raros, urânio, amianto, chumbo, tungstênio e germânio. Acima de
tudo, Katanga produzia cobre, cerca de 350.000 toneladas por ano, de uma veia
de trezentos quilômetros de largura do cobre mais puro já encontrado.
O Congo estava apenas no décimo quinto dia de sua
soberania quando o presidente, Kasavubu, e o primeiro-ministro, Lumumba,
decidiram fazer uma viagem pelo país para acalmar o povo e encontrar uma
solução para os muitos problemas que atingiam tão duramente a jovem nação.
Incansavelmente, Lumumba subiu ao palanque, falando ao
povo. Muitas vezes, ele usava linguagem demagógica. Era o menor dos males. Esta
era uma corrida contra o relógio. Ele tinha que evitar a ruína na qual o país
estava mergulhando.
Quando o avião presidencial retornou ao Aeroporto de
N’djili, perto de Léopoldville, no final da turnê, o embaixador belga se
recusou a dar a Lumumba e ao chefe de Estado as honras da chegada, sob o
pretexto de que queria evitar qualquer provocação de desordem entre os
refugiados belgas que esperavam no aeroporto para partir. Houve, de fato, uma
cena escandalosa.
Um dos belgas puxou a barba do primeiro-ministro e
deu-lhe uma bofetada. “Presidente dos macacos”, gritaram as mulheres europeias
a plenos pulmões. “Nós voltaremos.” “Bastardo… assassino… filho da puta…”
Outros cuspiram-lhe na cara.
Lumumba permaneceu digno. Ele sempre foi e seria digno.
Quando ouvi sobre esse evento vergonhoso, perguntei a mim mesmo quem eram os
selvagens neste caso: os negros ou os brancos?
***
A vitória de Lumumba foi efêmera, e ele sabia disso.
Pouco depois, surgiria nos corredores do poder a figura sinistra escolhida
anteriormente pela Bélgica e pelos Estados Unidos para substituí-lo: Mobutu.
Como a secessão de Katanga, levada a cabo por Tshombe,
a tomada do Congo por Mobutu havia sido preparada na Mesa Redonda. Foi com a
traição dessas duas criaturas que a ruína do Congo foi preparada.
Mobutu, um sargento do exército e membro do MNC, era um
ministro sem pasta no governo de Lumumba. Após a revolta do exército, Lumumba o
fez coronel. Suas atividades anteriores, eu soube depois, incluíam ser um
espião tanto para a inteligência belga quanto para a CIA.
Não bastava que Lumumba tivesse que lidar com o governo
belga e todas as suas manobras inescrupulosas. O jovem Estado, por causa de
suas riquezas e sua evidente fraqueza, também se tornou o peão dos dois
gigantes da política, o Leste e o Oeste. Os ecos da Guerra Fria encontraram uma
nova caixa de ressonância no Congo, este bastião de trustes internacionais.
Aqui, comunismo e capitalismo se enfrentaram como o rinoceronte e o elefante.
A fabulosa Union Minière, vale ressaltar,
era controlada por três grupos de acionistas: a corporação belga, o conselho
especial de Katanga e uma empresa anglo-americana, a Oppenheim de
Beers, por intermédio da Tanganyika Concession Ltd.
Firmemente apoiado por seus dois principais
patrocinadores e seguro da cumplicidade das Nações Unidas, Mobutu levou a cabo
seu golpe de Estado de 14 de setembro, após comprar, com milhões de francos, o
consentimento à sua ascensão ao poder. O tema de seu direito à tomada de poder,
o gancho com o qual ele assegurou a cooperação do Ocidente, era o
anticomunismo. Por causa dele, muitos congoleses morreram, e entre eles, o
melhor filho do país. É verdade que o cobre tem a cor do sangue e da lama.
Os dias que se seguiram à tomada do poder por Mobutu
foram como um apocalipse moderno. O Congo estava à beira da loucura. Kasavubu
pelo menos fingiu estar em conformidade com as leis constitucionais elaboradas
por advogados belgas. Mobutu não fez tais concessões. A democracia foi
completamente derrubada e substituída por uma ditadura militar.
A Assembleia Nacional foi fechada por ordens de Mobutu
e rigorosamente guardada por soldados. A última sessão da assembleia foi aquela
em que Lumumba foi confirmado. Os casques bleus impediram
Lumumba de falar com o povo pelo rádio. [Justin] Bomboko, ministro das relações
exteriores, produziu uma safra de jovens tecnocratas congoleses recém-formados
que agiram como “tropas de choque”, aparecendo em todos os lugares para
justificar a tomada de poder de Mobutu.
Bomboko era, naquele momento, um homem a ser
considerado. Em uma entrevista coletiva na manhã anterior ao golpe de Estado,
ele anunciou as medidas consideradas necessárias para impedir a penetração
comunista no Congo. Essas medidas envolviam a expulsão de certos elementos
indesejáveis: as comunidades ganesa e guineense, os egípcios, Félix Moumié, um
líder camaronês, e… Madame Blouin.
· O calvário de
Lumumba
Quando quando anunciaram no rádio a ordem
para a minha expulsão, minha mãe foi acometida por um ataque cardíaco. Ela foi
hospitalizada imediatamente.
Eu deveria deixar a cidade em vinte e quatro horas, mas
a condição de Joséphine era tão séria que liguei para Mobutu para dizer que não
poderia deixá-la em um estado tão crítico. Ele me informou que uma ordem para
minha prisão havia sido emitida pelo chefe de Estado, Kasavubu, e enviada a ele
para execução. Mas ele me daria mais quarenta e oito horas.
[Antoine] Gizenga foi preso e colocado em uma prisão
subterrânea a vinte e cinco quilômetros de Leo. Ao saber disso, os guerreiros
Moupende, os mais temíveis do Congo, prepararam-se para libertar seu chefe.
Eles enviaram telegramas de advertência a Mobutu: “Se Gizenga não for libertado
amanhã, todos os missionários e europeus de Kwilu serão mortos.” Gizenga foi
libertado em vez de ser transferido, como planejado, para Katanga, onde ele, é
claro, teria sido condenado à morte.
“O calvário de Lumumba começou com a
tomada de poder de Mobutu. Daí em diante, as conspirações contra ele foram
abertamente levadas adiante.”
O calvário de Lumumba começou com a tomada de poder de
Mobutu. Daí em diante, as conspirações contra ele foram abertamente levadas
adiante. A cada dia, Kasavubu cruzava o rio para Brazzaville para consultar
Youlou e a embaixada belga sobre decisões para a jovem república.
Lumumba sabia que sua vida estava nas mãos de Mobutu.
Temendo as intenções de Mobutu, ele se colocou sob a proteção das Nações
Unidas, que posicionaram guardas ao redor de sua residência. Mas as tropas de
Mobutu, com metralhadoras, também cercaram a residência de Lumumba.
Foi então que me lembrei de um apelo que Lumumba,
desolado, fez um dia, na rádio, ao povo:
Meus irmãos congoleses!
Vocês estão vendendo seu país por um copo de cerveja! Uma tragédia está
engolfando nosso país, e a dança continua na Cité Congolaise. Léopoldville é um cabaré barato onde as pessoas pensam apenas em
seus prazeres — dança e cerveja.
O Congo estava afundando, o Congo estava morrendo, e o
melhor de seus filhos logo seria assassinado. Ainda assim, o Congo dançava.
Talvez o coração estivesse menos festivo, mas a dança não parava. Antes do
toque de recolher, em volta das caixas de cerveja, o Congo dançava. Isolado em
sua residência, Patrice Lumumba viveu seus últimos dias com coragem e ousadia.
Fonte:
Por Andrée Blouin – Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil
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