sábado, 8 de março de 2025

Como o Ocidente destruiu as esperanças de independência do Congo

O fardo que Patrice Lumumba, primeiro-ministro da República do Congo, assumiu foi impressionante. Sobre seus ombros jovens e magros — ele tinha então trinta e quatro anos — repousava o peso de um país de seis províncias contendo 14 milhões de almas falando três línguas principais — lingala, suaíli e kikongo — e um número incontável de dialetos.

Ele herdou um cenário preparado para o desastre. Funcionários do governo e empresários se demitiam. Profissionais saíam em massa do país. Os belgas não tinham substitutos qualificados. Havia poucas pessoas em qualquer área que fossem capazes de assumir responsabilidades. A força de trabalho era composta apenas por escreventes, operários e trabalhadores braçais. Os serviços mais básicos começaram a ruir. Como os belgas esperavam.

Em Léopoldville, na véspera da independência, de uma população de 350.000, havia, pelo menos, 100.000 desempregados. Esse número aumentaria “milagrosamente” na proclamação da independência, e o povo exigia “trabalho e um bom salário, de uma vez”. Como o novo governo balançaria uma varinha mágica e, dentro de dois dias após a proclamação, encontraria uma solução para a catástrofe que os belgas vinham preparando há oitenta anos?

·       Feridas mortais

Antes de 30 de junho, o Congo já estava mortalmente ferido. Primeiro, houve as rivalidades pessoais e políticas divisivas, depois os conflitos tribais e, então, as manifestações dos desempregados. Finalmente, em 5 de julho, foi a vez do exército aumentar as calamidades do país. Os soldados congoleses se recusaram a seguir obedecendo aos comandos de seus oficiais belgas. Se amotinaram.

A principal fonte de sua fúria era a regra de que a patente mais alta que um congolês poderia ter no exército naquela época, após quinze anos de serviço, era sargento ou primeiro sargento. Poucos meses antes, na Mesa Redonda Belgo-Congolesa, Patrice Lumumba havia apontado o “sério problema” da africanização dos escalões superiores do exército.

Um belga, o general [Émile] Janssens, em particular, era detestado por suas tropas congolesas. Desdenhosamente, ele anunciou que havia “descartado a independência”. “Isso”, ele disse, era “para os civilizados”.

Com uma ferocidade que refletia com precisão o que aprenderam com os belgas, o exército se rebelou. Sangue congolês foi derramado quando os homens se voltaram contra seus oficiais. As represálias dos belgas se assemelhavam muito às técnicas dos nazistas, por quem eles tinham sido treinados. Lumumba tentou deter os tumultos, fazendo apelos pessoais a cada lado por calma e razão.

O navio de Estado estava afundando perigosamente enquanto más notícias continuavam a se acumular em todos os lugares. Em 4 de julho, eu estava em Conakry [na Guiné] quando recebi o telegrama do primeiro-ministro me pedindo para retornar ao Congo. Em 8 de julho, eu estava de volta a Leo com meus amigos.

·       Acendendo o barril de pólvora

No aeroporto, a polícia belga ainda estava de serviço. Quando cheguei, o homem que examinou meu passaporte me disse em um tom agressivo: “Você foi expulsa do Congo. Não pode voltar.”

Georges Grenfell, um ministro de Estado e membro do MNC [Movimento Nacional Congolês] de Lumumba, estava ao meu lado. Ele tinha sido enviado a Gana para participar das festividades da proclamação da república. Nos sentamos juntos no avião depois que ele embarcou em Accra, e ele acabou intercedendo por mim.

 “Você ainda está tentando fazer a lei aqui? Onde você acha que está, na Bélgica? Esta é a República independente do Congo. In-de-pen-dente, você entendeu? Sim, esta mulher foi expulsa, mas o novo governo do Congo a trouxe de volta. Isso lhe desagrada? Passe-me o telefone.”

O policial belga hesitou, marcando passo. “Para quem você deseja telefonar?” “O primeiro-ministro, Patrice Lumumba.” “E seu nome?” “Ministro de Estado Grenfell.” O policial ficou perplexo. “Ninguém veio encontrá-lo?” “Talvez tenham vindo. Mas o avião estava oito horas atrasado, sabia?”

Ele nos deixou passar. Pegamos o carro da empresa de aviação e chegamos em Leo bem na hora do toque de recolher. Lumumba me recebeu de braços abertos e com as seguintes palavras: “Você está oito dias atrasada! Já ouviu as notícias?”

“Que o exército se revoltou? Sim, ouvi sobre em Dacar. De Modibo Keïta. Diga-me… o que aconteceu?”

“Foi a declaração do General Janssens que acendeu o barril de pólvora. Os homens simplesmente não aguentavam mais. Eles já estavam trabalhando por salários miseráveis. A ideia de que eles continuariam a ser comandados pelos oficiais belgas era simplesmente intolerável.”

“E neste momento!”

“Os homens tinham sido ensinados a atirar. Até em seus próprios irmãos. E eles tinham armas e munição. Então se vingaram onde quer que pudessem fazê-lo. Tanto em meio à população congolesa, como nos europeus. A revolta se espalhou cegamente pela cidade, como uma doença. Tem sido terrível.”

“E agora? Como estão as coisas?”

“A partir de hoje, ficaram um pouco melhores. Passei o dia conversando com os soldados, com [o presidente congolês Joseph] Kasavubu. Conseguimos acalmá-los. O Camp Leopold está quieto desde então.”

·       Desafiando o destino

Patrice parecia exausto. Ainda assim, ele teve a coragem de rir enquanto falava comigo, aquele riso que era a marca registrada de sua esperança e idealismo. Apesar de tudo, ele riu, para desafiar o destino.

“E você?”, ele me perguntou. “Que notícias traz?” “Na Guiné, vi o presidente Sékou Touré e [Kwame] Nkrumah. Pedi a eles para nos fornecer ajuda técnica.”

As notícias da revolta eram assustadoras. Mas a imprensa belga tornou-as ainda piores do que eram, agravando a situação para justificar o envio de paraquedistas belgas para estabelecer a ordem. O primeiro ato dessas tropas belgas foi desarmar os soldados congoleses. Isso aconteceu na mesma noite em que Moïse Tshombe anunciou a secessão de Katanga. Foi uma reconquista, pura e simples.

Em Léopoldville, os paraquedistas belgas, em trajes de combate, tomaram o controle em todos os lugares. Metralhadoras estavam posicionadas nas encruzilhadas. Jipes controlados por rádio bloqueavam as principais avenidas. O Aeroporto de N’djili foi cercado pelos paraquedistas para garantir a evacuação dos europeus que, com bagagem em mãos, fugiam para a Bélgica.

Havia um tráfego fantástico na praia também, onde barcos eram alugados por brancos que fugiam para Brazzaville, para grande lucro de [o líder Congo-Brazzaville Fulbert] Youlou. O pânico nesse êxodo era terrível de se ver. Centenas de carros foram abandonados nas ruas, dando uma aparência terrivelmente triste a esta cidade, que estava armada como uma fortaleza.

Se os congoleses maltratavam os belgas, era frequentemente para tentar impedi-los de deixar o Congo. Eles não queriam que os brancos fossem embora. Por todo o país, havia o espetáculo revoltante de violência e infortúnios de todo tipo.

“A palavra “macaque” (macaco) era usada como epíteto para os negros pelos europeus, até mesmo pelas crianças.”

Ódio gera ódio. A palavra “macaque” (macaco) era usada como epíteto para negros pelos europeus, até mesmo pelas crianças. E os congoleses achavam que a palavra “Falamand”, uma corruptela de “Flamand ” (flamengo), dita com terrível desprezo, era o insulto supremo.

No Aeroporto de N’djili, houve incidentes entre os negros que trabalhavam lá e os europeus que fugiam. Vários congoleses foram mortos. O general Janssens declarou: “Isso será uma lição para aqueles que tiveram a sorte de escapar de nossas balas. Se eles não se calarem, estamos prontos para começar o esporte novamente.”

·       Secessão de Katanga

AAssembleia dos Deputados tentou encontrar um meio de retomar o controle do país, mas se viu paralisada. Com a secessão de Katanga, o plano dos belgas de manter o controle de seus interesses econômicos no Congo avançou com diabólico sucesso.

A ideia de Katanga como uma república separada era realmente como uma caricatura vulgar de um mini Estado em uma opereta. Os belgas levavam isso muito a sério, no entanto, pois viam na secessão um meio de escapar da nacionalização das ricas minas de Katanga. Também, os belgas acreditavam, levaria outras províncias com aspirações tribais à secessão depois dela.

Assim, a Bélgica oficialmente deixaria o Congo, cujas enormes necessidades e endividamento contínuo, agravados pela fuga de capital e a repatriação das reservas de ouro e crédito, o deixaram no vermelho por um longo tempo. Mas ela manteria o prêmio, Katanga, e através de sua secessão [a Bélgica] esperava também ganhar mais tarde as outras duas úteis províncias de Kasai e Kivu.

Não posso falar de Katanga sem mencionar seu extraordinário reservatório de minerais, ainda pouco explorados: ouro, cobalto, cromo, platina, estanho, diamantes industriais, diamantes para joias, manganês, níquel, metais raros, urânio, amianto, chumbo, tungstênio e germânio. Acima de tudo, Katanga produzia cobre, cerca de 350.000 toneladas por ano, de uma veia de trezentos quilômetros de largura do cobre mais puro já encontrado.

O Congo estava apenas no décimo quinto dia de sua soberania quando o presidente, Kasavubu, e o primeiro-ministro, Lumumba, decidiram fazer uma viagem pelo país para acalmar o povo e encontrar uma solução para os muitos problemas que atingiam tão duramente a jovem nação.

Incansavelmente, Lumumba subiu ao palanque, falando ao povo. Muitas vezes, ele usava linguagem demagógica. Era o menor dos males. Esta era uma corrida contra o relógio. Ele tinha que evitar a ruína na qual o país estava mergulhando.

Quando o avião presidencial retornou ao Aeroporto de N’djili, perto de Léopoldville, no final da turnê, o embaixador belga se recusou a dar a Lumumba e ao chefe de Estado as honras da chegada, sob o pretexto de que queria evitar qualquer provocação de desordem entre os refugiados belgas que esperavam no aeroporto para partir. Houve, de fato, uma cena escandalosa.

Um dos belgas puxou a barba do primeiro-ministro e deu-lhe uma bofetada. “Presidente dos macacos”, gritaram as mulheres europeias a plenos pulmões. “Nós voltaremos.” “Bastardo… assassino… filho da puta…” Outros cuspiram-lhe na cara.

Lumumba permaneceu digno. Ele sempre foi e seria digno. Quando ouvi sobre esse evento vergonhoso, perguntei a mim mesmo quem eram os selvagens neste caso: os negros ou os brancos?

***

A vitória de Lumumba foi efêmera, e ele sabia disso. Pouco depois, surgiria nos corredores do poder a figura sinistra escolhida anteriormente pela Bélgica e pelos Estados Unidos para substituí-lo: Mobutu.

Como a secessão de Katanga, levada a cabo por Tshombe, a tomada do Congo por Mobutu havia sido preparada na Mesa Redonda. Foi com a traição dessas duas criaturas que a ruína do Congo foi preparada.

Mobutu, um sargento do exército e membro do MNC, era um ministro sem pasta no governo de Lumumba. Após a revolta do exército, Lumumba o fez coronel. Suas atividades anteriores, eu soube depois, incluíam ser um espião tanto para a inteligência belga quanto para a CIA.

Não bastava que Lumumba tivesse que lidar com o governo belga e todas as suas manobras inescrupulosas. O jovem Estado, por causa de suas riquezas e sua evidente fraqueza, também se tornou o peão dos dois gigantes da política, o Leste e o Oeste. Os ecos da Guerra Fria encontraram uma nova caixa de ressonância no Congo, este bastião de trustes internacionais. Aqui, comunismo e capitalismo se enfrentaram como o rinoceronte e o elefante.

A fabulosa Union Minière, vale ressaltar, era controlada por três grupos de acionistas: a corporação belga, o conselho especial de Katanga e uma empresa anglo-americana, a Oppenheim de Beers, por intermédio da Tanganyika Concession Ltd.

Firmemente apoiado por seus dois principais patrocinadores e seguro da cumplicidade das Nações Unidas, Mobutu levou a cabo seu golpe de Estado de 14 de setembro, após comprar, com milhões de francos, o consentimento à sua ascensão ao poder. O tema de seu direito à tomada de poder, o gancho com o qual ele assegurou a cooperação do Ocidente, era o anticomunismo. Por causa dele, muitos congoleses morreram, e entre eles, o melhor filho do país. É verdade que o cobre tem a cor do sangue e da lama.

Os dias que se seguiram à tomada do poder por Mobutu foram como um apocalipse moderno. O Congo estava à beira da loucura. Kasavubu pelo menos fingiu estar em conformidade com as leis constitucionais elaboradas por advogados belgas. Mobutu não fez tais concessões. A democracia foi completamente derrubada e substituída por uma ditadura militar.

A Assembleia Nacional foi fechada por ordens de Mobutu e rigorosamente guardada por soldados. A última sessão da assembleia foi aquela em que Lumumba foi confirmado. Os casques bleus impediram Lumumba de falar com o povo pelo rádio. [Justin] Bomboko, ministro das relações exteriores, produziu uma safra de jovens tecnocratas congoleses recém-formados que agiram como “tropas de choque”, aparecendo em todos os lugares para justificar a tomada de poder de Mobutu.

Bomboko era, naquele momento, um homem a ser considerado. Em uma entrevista coletiva na manhã anterior ao golpe de Estado, ele anunciou as medidas consideradas necessárias para impedir a penetração comunista no Congo. Essas medidas envolviam a expulsão de certos elementos indesejáveis: as comunidades ganesa e guineense, os egípcios, Félix Moumié, um líder camaronês, e… Madame Blouin.

·       O calvário de Lumumba

Quando quando anunciaram no rádio a ordem para a minha expulsão, minha mãe foi acometida por um ataque cardíaco. Ela foi hospitalizada imediatamente.

Eu deveria deixar a cidade em vinte e quatro horas, mas a condição de Joséphine era tão séria que liguei para Mobutu para dizer que não poderia deixá-la em um estado tão crítico. Ele me informou que uma ordem para minha prisão havia sido emitida pelo chefe de Estado, Kasavubu, e enviada a ele para execução. Mas ele me daria mais quarenta e oito horas.

[Antoine] Gizenga foi preso e colocado em uma prisão subterrânea a vinte e cinco quilômetros de Leo. Ao saber disso, os guerreiros Moupende, os mais temíveis do Congo, prepararam-se para libertar seu chefe. Eles enviaram telegramas de advertência a Mobutu: “Se Gizenga não for libertado amanhã, todos os missionários e europeus de Kwilu serão mortos.” Gizenga foi libertado em vez de ser transferido, como planejado, para Katanga, onde ele, é claro, teria sido condenado à morte.

“O calvário de Lumumba começou com a tomada de poder de Mobutu. Daí em diante, as conspirações contra ele foram abertamente levadas adiante.”

O calvário de Lumumba começou com a tomada de poder de Mobutu. Daí em diante, as conspirações contra ele foram abertamente levadas adiante. A cada dia, Kasavubu cruzava o rio para Brazzaville para consultar Youlou e a embaixada belga sobre decisões para a jovem república.

Lumumba sabia que sua vida estava nas mãos de Mobutu. Temendo as intenções de Mobutu, ele se colocou sob a proteção das Nações Unidas, que posicionaram guardas ao redor de sua residência. Mas as tropas de Mobutu, com metralhadoras, também cercaram a residência de Lumumba.

Foi então que me lembrei de um apelo que Lumumba, desolado, fez um dia, na rádio, ao povo:

Meus irmãos congoleses! Vocês estão vendendo seu país por um copo de cerveja! Uma tragédia está engolfando nosso país, e a dança continua na Cité Congolaise. Léopoldville é um cabaré barato onde as pessoas pensam apenas em seus prazeres — dança e cerveja.

O Congo estava afundando, o Congo estava morrendo, e o melhor de seus filhos logo seria assassinado. Ainda assim, o Congo dançava. Talvez o coração estivesse menos festivo, mas a dança não parava. Antes do toque de recolher, em volta das caixas de cerveja, o Congo dançava. Isolado em sua residência, Patrice Lumumba viveu seus últimos dias com coragem e ousadia.

 

Fonte: Por Andrée Blouin – Tradução Pedro Silva, em Jacobin Brasil

 

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