Frevo,
folia e maracatu: Carnaval de Pernambuco busca se renovar junto à tradição
O frevo é um senhor de 118
anos que “já nasceu moderno”. Assim descreve o regente Lúcio Henrique Vieira da
Silva, 46 anos. Conhecido como mestre Lúcio, ele comanda a Orquestra Henrique
Dias, além de ser professor do Grêmio Musical Henrique Dias, escola
profissionalizante e um templo do ritmo em Olinda, Pernambuco. “O frevo se
adapta a tudo. Por isso, não existe modernizar o frevo, porque, quanto mais
você pensa em modernizá-lo, mas ele tá à frente”, diz sobre o ritmo que fez
aniversário no dia 9 de fevereiro.
O “senhor moderno” que o
frevo representa é uma boa definição sobre a mistura entre tradição e
reinvenção do Carnaval pernambucano.
Quem chega para passar os dias de Momo no estado logo descobre que a folia é
feita de manifestações com uma história bem antiga e enraizada, mas que se
mantém pulsante através de gerações.
Mestre Lúcio evita ser
chamado de maestro, pelo peso que o título carrega, embora esteja há mais de
dez anos nessa função e já tenha formado dezenas de músicos. “Eu digo que educo
e alfabetizo na linguagem do frevo. Porque, a partir das partituras das
músicas, ensino ritmo, solfejo, teoria musical, tudo que o aluno
precisa.”
<><> Por que
isso importa?
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O legado do Carnaval pernambucano é centenário. O
frevo e o maracatu são patrimônios culturais, e agremiações como o Cariri Olindense,
Patrimônio Vivo de Pernambuco, têm um vasto legado cultural.
A escola Henrique Dias está
prestes a completar 71 anos de existência. Tem uma banda de música, uma
orquestra de frevo, um quinteto e uma orquestra jovem. A maior parte dos
estudantes são crianças e jovens de famílias de baixa renda. As aulas são
gratuitas, embora funcione sem receber nada da prefeitura na cidade berço do
frevo. Quem mantém o espaço são os próprios professores, voluntários e doações
de alguns comerciantes locais. A única exigência feita aos alunos é que estejam
matriculados na escola regular e mantenham um bom desempenho nos estudos.
Quando eles começam a se apresentar, recebem cachê, até mesmo as crianças,
pagas aos responsáveis.
A Orquestra Henrique Dias
arrasta multidões no Carnaval. Tem 54 músicos, entre professores e alunos.
Montar uma boa orquestra de frevo não é simples. Mestre Lúcio diz que é
preciso, no mínimo, uma dupla de sax alto e tenor, um trompete, um trombone, um
caixa, um surdo e um sousafone, popularmente conhecido como tuba. É a tuba –
quem gosta de frevo sabe que o lugar mais privilegiado do bloco é ao lado delas
– que harmoniza a música, faz a marcação junto com o surdo e guia a orquestra.
Dizem que, quanto mais tubas
uma orquestra de frevo tiver, melhor – e a Orquestra Henrique Dias coloca sete
na rua. Houve um tempo em que parte dos músicos, inclusive os tubistas, que se
apresentavam era contratada por fora. Há pelo menos dez anos isso não acontece
mais. Todos os que tocam são crias da escola de música deles.
“Tivemos a preocupação de formar uma juventude
que aprendesse a tocar de uma forma ímpar”, conta o regente. “Queremos
difundir o frevo de forma positiva, porque é um ritmo pouco conhecido no
Brasil, que a mídia não divulga. Os jovens precisam conhecer mais o frevo, mas,
se não tiver ninguém ensinando, não vai ter mais ninguém para tocar.”
Os renovos do frevo são
novos artistas como David Guilherme de Melo, de 12 anos, que estuda trompete na
Henrique Dias. Nascido e criado no bairro do Bonsucesso, sítio histórico de
Olinda, na mesma rua da sede do Homem da Meia-Noite – um dos maiores ícones da
folia de Pernambuco –, o menino já era embalado pelos blocos desde o berço. “Eu
olhava para orquestra e tinha vontade de aprender. Mas nunca imaginava que ia
tocar”, diz.
A mãe, Patrícia de Melo
Wanderley, leva o filho para as aulas de música todos os dias. A família é bem
carnavalesca, mas não tinha músicos antes de Guilherme, que ficou famoso nas
redes sociais depois que um vídeo dele
tocando trompete no muro de casa, durante o Carnaval, viralizou. Desde então,
ele participou de reportagens de TV e tocou em shows de artistas como o cantor
e compositor recifense Lauro.
“Quero ser maestro de frevo para que as
pessoas conheçam mais. E quero tocar no Homem da Meia-Noite”, conta. “É bem
puxado acompanhar ele em todos os ensaios e apresentações, mas vou a todos
porque é o sonho dele e a renovação do Carnaval, a continuidade da cultura,
para não deixar morrer”, diz a mãe.
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“Lá
vem Cariri ali”
Muito antes de Guilherme
nascer, e antes mesmo que eu ou você que me lê estivéssemos por aqui, a Troça
Carnavalesca Mista Cariri Olindense já fazia folia. São 104 anos de tradição. A
agremiação desfila na madrugada do sábado para o domingo de Carnaval, levando
uma chave gigante que abre simbolicamente os folguedos em Olinda – porque, na
época em que foi criada, o Carnaval da cidade começava apenas no domingo,
depois do desfile do Galo da Madrugada no Recife, no Sábado de Zé
Pereira.
A troça fundada em 1921 é
uma das mais antigas de Olinda. Surgiu antes mesmo do Clube Carnavalesco de
Alegoria e Crítica Homem da Meia-Noite, que é uma dissidência do Cariri. O
calunga gigante, que se veste de terno branco e verde com uma cartola, é
reconhecido como Patrimônio Cultural e Imaterial de Pernambuco desde 2006. O
Cariri foi reconhecido como Patrimônio Vivo de Pernambuco em 2016.
A brincadeira começou com
cinco amigos, que criaram a agremiação e foram ao Mercado de São José, no
centro do Recife, para comprar materiais. Chegando lá, se depararam com um
velho mascate, vindo do sertão do Cariri. A foto do velho, que eles tiraram
neste dia, existe até hoje. Os
amigos resolveram homenagear a figura misteriosa adotando o “Cariri”, com sua
roupa de couro, cajado e o seu burrinho, como símbolo.
Durante muito tempo, o
Cariri foi uma agremiação bastante frequentada pela comunidade do bairro do
Bonsucesso, onde está sua sede. Mas, nos últimos anos, virou um certo hype do Carnaval olindense,
conquistando uma legião de novos foliões. Parte desse movimento foi planejada e
parte, espontânea, conta João Pedro Nires, 23 anos, diretor de preservação e
memória do Cariri e estudante de história da Universidade Católica de
Pernambuco (Unicap).
Em 2019, Nires, que é
bisneto de um dos fundadores da agremiação, começou a participar da organização
mais ativamente. “Lembro do Cariri com mais músicos do que foliões”, diz. “Era
gente que brincava o sábado inteiro e ficava ali esperando na pracinha [perto
da sede] até ele sair às 4h da manhã do domingo. A camisa era o ingresso da
festa do bloco, custava pra gente conseguir vender, hoje minha luta é para
atender todo mundo que quer”, conta.
O pai de Nires é o diretor
de comunicação do Cariri desde 2019 e foi ele que deu uma nova cara para as
divulgações do bloco. Transformou a camisa da festa, que era uma espécie de
abadá, em item fashion, comercializada em algodão com desenhos assinados por
artistas visuais (a deste ano tem arte assinada por Joana Lira).
“Criamos o Instagram,
que começou a ficar famoso, mas logo veio a pandemia. Então criamos o Coletivo
Cariri Olindense para nos aproximarmos dos foliões e ajudar a instituição”,
conta Nires. “Começamos a divulgar melhor a história do Cariri, a fazer mais
vídeos e a criar um sentimento de pertencimento nos foliões usando as redes
sociais”, explica.
Para ele, as redes sociais
ajudaram a aproximar as pessoas das agremiações e difundir as tradições de
Olinda. “Gente que nem é da cidade passou a usar as cores dos blocos. O Menino da Tarde [agremiação
carnavalesca que tem um boneco gigante], por exemplo, ano passado só tinha
paulista. Não que isso seja negativo, nem que não tinha turista antes, mas a
quantidade hoje é gritante. Antes, o Menino da Tarde era uma agremiação
restrita às comunidades de Guadalupe, do V8 de Olinda”, lembra.
Com o ingresso de mais
jovens na diretoria, o Cariri certamente ganhou novo gás, mas Nires diz que é
preciso ter “uma equipe diversa: jovens, que saibam dialogar com as
tecnologias, mas também pessoas mais velhas”. Ele ressalta que esse movimento
de renovação do Carnaval olindense não é restrito ao Cariri. Outras agremiações
históricas de Olinda, como o Clube Carnavalesco Misto Elefante de Olinda, que
tem uma diretoria de pessoas abaixo dos 40 anos, também estão se reinventando
nas redes e nas ruas. “Não renovar é que ameaça as tradições”, afirma.
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A
nova geração de mestres do maracatu
O maracatu Estrela Brilhante
é o maior exemplo de renovação de tradições para Nailson Vieira, 23 anos. E ele
é um dos catalisadores dessas mudanças.
Quando Nailson nasceu, o
mestre Barachinha, do maracatu Estrela Dourada, disse à sua mãe : “Em vez de
botar chupeta, dê logo a ele um apito”. Foi um prenúncio. Filho da cultura
popular, o músico é o presidente do Maracatu Estrela Brilhante desde 2020.
Também é o diretor do Bloco Rural Estrelinha, fundado em 1962. As agremiações
são de Nazaré da Mata, que fica a 62 quilômetros do Recife, Zona da Mata
de Pernambuco.
O avô e o pai de Nailson
cantaram em maracatu rural, ou de baque solto, que se distingue do baque
virado, ou nação, por seus ritmos e personagens. O rural sai com os caboclos de
lança, por exemplo. Filho de peixe, com três anos ganhou a primeira fantasia de
burrinha; no ano seguinte, os pais o vestiram de caboclo de lança. Em 2015,
começou a ser músico no maracatu.
“Nunca vivi um ano sem ser num maracatu ou me
preparando para o Carnaval, a gente passa o ano inteiro se preparando”,
diz.
Nem todos os maracatus
conseguiram se adaptar às tecnologias que hoje rodeiam as tradições, na
percepção dele. “Desde as redes sociais, como a burocracia de um edital para
uma apresentação que precisa de uma inscrição online, que hoje se resolve pelo
celular, mas muitas pessoas mais velhas não conseguem. Então, o papel da
juventude é dar suporte”, acredita.
Antes de assumir a
presidência da agremiação, o YouTube era a principal plataforma de divulgação
do ritmo, mas isso acontecia de forma meio espontânea, com vídeos gravados
pelas pessoas que assistiam às apresentações. Hoje, a conta no Instagram virou
o canal oficial de divulgação e tem mais de 7 mil seguidores.
Os maracatus são
manifestações cercadas de mistério, mas as redes sociais pedem exposição.
Balancear isso não é fácil, exige respeito aos limites do místico, defendem os
mestres. “Não se pode mostrar a fantasia antes do Carnaval, tem também uma
parte religiosa onde os maracatus apresentam suas crenças, cada um deposita fé
no seu segredo. É aqui que os mais velhos muitas vezes intervêm”, conta
Nailson. “São os jovens que fazem o maracatu acontecer, mas junto com a velha
guarda, que veio primeiro, e a quem a gente sempre vai dar ouvido porque eles
sabem”, acrescenta.
Estudante de música na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Nailson Vieira é
também trombonista, cantor e compositor. Em seu trabalho autoral, mistura
música popular pernambucana com a base do mangue beat, explorando novas
sonoridades. “Tiro minhas referências de dentro do maracatu, com instrumentos
de percussão e sopro. Transito no que a juventude está acostumada a ouvir, como
um brega, por exemplo.”
Ele apresentou seu trabalho
no Sesc Pompeia, em São Paulo, no ano passado. “Foi incrível porque a gente não
pensa só em resistir pra gente, mas para um Brasil que deposita fé no que há de
maior, que é a nossa identidade cultural.”
Fonte: Por Mariama Correia, da
Agencia Pública
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