sábado, 8 de março de 2025

Excelência e sofrimento, o adoecimento na universidade

Uma mulher negra, angustiada por não conseguir dar conta das demandas do laboratório da universidade onde estudava, me procurou para iniciar um processo e análise. Ela era a primeira pessoa da família na universidade. Vinculada a esse laboratório, Joana (o nome é fictício) recebia uma bolsa que lhe permitia morar na capital. O seu maior temor era precisar voltar para o interior e morar novamente com a mãe, cujas ações violentas haviam forçado a jovem a fugir de casa. Com efeito, ela ainda estava conseguindo realizar todas as tarefas do laboratório com a devida excelência. Era funcional. A questão é a que preço e por quanto tempo.

A medicação que ela tomava – cumprindo à risca a ideia de que o capitalismo produz adoecimento na mesma proporção em que fomenta mecanismos farmacológicos de seu gerenciamento – já começava a não surtir o efeito desejado. O seu horizonte de expectativa era achatado. Ela se sentia esmagada, espremida entre duas situações de violência. De um lado, a casa da mãe, cujo fundamentalismo religioso a autorizava a perseguir a filha que na cidade grande conseguiu a tão almejada abertura. De outro, a pressão insana do laboratório por mais resultados, por mais subsídios para produzir artigos a respeito do tema da sua pesquisa. O seu trabalho contribuía para resguardar o currículo Lattes do orientador, por meio do qual o laboratório vinha sendo montado a cada edital contemplado. Deixar o laboratório remeteria a jovem Joana a uma sensação de frustração e fracasso, tão comum entre as pessoas negras, e implicaria uma eventual volta para a casa da mãe, o que era igualmente insustentável. O seu colapso era iminente ou, para recuperar as ideias de Winnicott, ele já tinha acontecido, uma vez que Joana já não possuía mecanismos de defesa para lidar com a situação que enfrentava.

Comecei o presente texto com essa breve narrativa de um caso clínico para dizer que, para além das questões singulares que o caso porta, ele é representativo da situação de uma legião de pessoas que, a exemplo de Joana, estão na universidade à beira de um colapso. E elas, na sua maioria, têm uma cor específica. Esse colapso pode se dar na forma de uma evasão da vida universitária (basta ver os números da evasão, sobretudo após a pandemia de covid-19), mas com um custo pessoal enorme. Isto é, mesmo quando ocorre a evasão, o adoecimento permanece junto com a pessoa que deixa a universidade.

Na engrenagem da universidade, a pesquisa pode continuar sem a participação da Joana. Afinal, há tantas pessoas como ela à procura de uma bolsa… Parece não fazer diferença a sua desistência para a excelência do laboratório. Isso não entra na avaliação da verba da pesquisa. Nada muda no laboratório quando toda a vida de Joana sofre uma derrocada. Para uma percepção meritocrática da universidade, talvez Joana não devesse estar ali, pois, mesmo com a política de cotas e os programas de assistência estudantil, ela fracassou. Joana via o seu projeto de formação universitária se esvair diante do seu adoecimento, mas a vida do laboratório se mantinha incólume. O laboratório permanece reconhecido pela sua excelência na pesquisa que produz sobre as questões raciais e os processos de escravidão.

Os incentivos para a presença de Joana na universidade terminam sendo tomados, por certa lógica meritocrática, como se ela devesse, a todo custo, aproveitar a oportunidade para estar em pé de igualdade com as pessoas que nunca tiveram que pegar transporte público para percorrer enormes distâncias, que fizeram os seus intercâmbio em países europeus onde aprenderam outras línguas e que falam a linguagem ainda hoje aristocrática da universidade (com exemplos nas aulas que se referem de forma majoritária à cultura europeia). Joana tentou desesperadamente atingir esse padrão de excelência que é na sua essência  branco. Talvez essa também seja uma das razões dela ter entrado em colapso. São várias razões e camadas.

Assim, a reparação histórica que a política de cotas tenta, com todas as dificuldades, realizar ainda não é suficiente para que determinados grupos sociais permaneçam na universidade sem uma carga de adoecimento. É nesse sentido que os dados coletados na recente pesquisa publicada na revista Nature (Hall, 2023), num contexto americano, mostram que a incidência de sofrimento no corpo discente é maior ou tem números mais elevados entre as pessoas que compõem as minorias políticas. É sobre elas, ainda segundo o artigo, que recaem mais fortemente as práticas de bullying e discriminação responsáveis por aumentar o seu sofrimento. Ademais, a cota de esforço que pessoas negras, indígenas e/ou de classes sociais mais precarizadas têm que realizar para dar conta do déficit de formação é imensa. Isso é ainda mais problemático caso levemos em consideração que essa formação muitas vezes não dialoga com as sabedorias locais já existentes nos territórios de onde parte significativa dos estudantes advém.

O esforço, então, para percorrer uma formação acadêmica termina sendo uma tarefa extenuante. As pessoas que conseguem algum destaque, longe de serem a regra, compõem as exceções e serão devidamente premiadas como exemplo de superação e de mérito pessoal. Em outras palavras, trata-se do espelhamento da sociedade capitalista, no qual as pessoas que “vieram de baixo” servem de propaganda para a manutenção do imperativo de que basta você se esforçar para conseguir.

Com efeito, é evidente que o adoecimento produzido pelo capitalismo não é exclusividade da universidade, mas há um ingrediente relevante e que é próprio da vida universitária, ainda segundo recente pesquisa publicada na revista Nature, a saber: a identificação, chamada também de vocação, com o trabalho de pesquisa. Isso termina alimentando a armadilha do sacrifício como via de acesso ao sistema de produção. Ou seja, na vida universitária a exigência de produção facilmente desemboca em assédio, como, aliás, o referido estudo da Nature também denuncia, visto que a cobrança por resultados é maior quando se faz algo por vocação.

É importante sublinhar que a ideia de que faz parte da identificação com a vida acadêmica realizar todos os sacrifícios possíveis para a produção de conhecimento ressoa para as pessoas negras como uma armadilha ainda mais perigosa. Os corpos negros e indígenas foram aqueles sacrificados para a prosperidade econômica do Brasil. Nesse sentido, ao invés de exigir sacrifícios individuais para corpos já espoliados historicamente, a universidade poderia ser  lugar privilegiado para a criação de outras formas de produção e difusão do conhecimento que não elidissem a cadeia produtiva ou as pessoas responsáveis pela ciência nacional.

O capitalismo pode ser caracterizado como um sistema que visa aos resultados, na forma econômica do lucro, antes de qualquer outra coisa e sem oferecer um cuidado com a cadeia produtiva (a classe trabalhadora). O resultado ou o lucro é visto como um fim em si mesmo, uma vez que a entrega do produto é a meta principal do sistema. Quando um agente público ou uma política pública se foca nos resultados para distribuir recursos, sem considerar o contexto da produção e a qualidade da vida das pessoas que produzem, ela pouco se difere da lógica capitalista.

Trata-se, nesses termos, de uma nova forma de alienação produzida no capitalismo, visto que os vários estudos sobre sofrimento social, no sentido mais amplo possível, são por vezes realizados com base na precarização das pessoas que os realizam. Na medida em que apenas o resultado objetivo, a saber, o produto na forma de um artigo científico ou relatório, é o que interessa no processo de avaliação, todo o processo para a produção é negligenciado ou tratado como resolvido pelas políticas públicas, quando existentes a contento, de financiamento e assistência estudantil, sem que se questione a lógica da produção para a qual quase ninguém consegue efetivamente contribuir sem algum grau de adoecimento. O que, aliás, é bom sublinhar: se aplica ao próprio corpo docente.

Assim, a promoção de ambientes saudáveis e com um importante grau de diversidade deveria estar no centro da avaliação do uso dos recursos públicos. Ou seja, a procura por modos de avaliar a qualidade dos ambientes de pesquisa do ponto de vista das relações interpessoais e da diversidade do corpo de pesquisadores/as deveria igualmente ser uma das principais variáveis para se tomar um programa ou laboratório como excelente. Paridade de gênero, raça e a assimilação de outros corpos, tomo emprestada a expressão de Sueli Carneiro (2023), insurgentes e o diálogo com a produção cultural brasileira e com os problemas mais urgentes do país deveriam ser o elemento central da excelência.

Para que a excelência não seja sequestrada pela lógica capitalista, é preciso que ela deixe de ser uma espécie de chancela ou atestado de mérito acadêmico que se refere à pesquisa apenas no que ela representa de resultado acabado. A pesquisa é uma coletividade orgânica e deve ser pensada como esse organismo poroso que se estende por toda a comunidade para o benefício comunitário. A sua principal preocupação deve ser reparar injustiças históricas das mais diversas ordens (regionais, de raça, gênero, orientação sexual etc.) e promover o bem-estar da sua comunidade. Não podemos ter a mentalidade extrativista que a colonialidade e o capitalismo nos impõem como forma de lidarmos com os nossos próprios corpos.

Alguns trabalhos começam a apontar para o fato de que a história de Joana se repete e, muitas vezes, pode se repetir no seu modo mais dramático (Maia, 2022). Por isso, não devemos tratar com surpresa o adoecimento que leva estudantes a uma demissão total de si. Isso não é algo errático, mas um sintoma de que devemos procurar soluções criativas para que o ambiente universitário não seja um terreno fértil para o fim da vida. Esse texto se encerra com um convite para que busquemos atenuar a importância do índice de impacto das produções científicas e possamos pensar a possibilidade de um índice de felicidade da comunidade acadêmica.

 

Fonte: Por Érico Andrade, no Blog da Boitempo

 

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