Excelência e sofrimento, o adoecimento na universidade
Uma
mulher negra, angustiada por não conseguir dar conta das demandas do
laboratório da universidade onde estudava, me procurou para iniciar um processo
e análise. Ela era a primeira pessoa da família na universidade. Vinculada a
esse laboratório, Joana (o nome é fictício) recebia uma bolsa que lhe permitia
morar na capital. O seu maior temor era precisar voltar para o interior e morar
novamente com a mãe, cujas ações violentas haviam forçado a jovem a fugir de
casa. Com efeito, ela ainda estava conseguindo realizar todas as tarefas do
laboratório com a devida excelência. Era funcional. A questão é a que preço e
por quanto tempo.
A
medicação que ela tomava – cumprindo à risca a ideia de que o capitalismo
produz adoecimento na mesma proporção em que fomenta mecanismos farmacológicos
de seu gerenciamento – já começava a não surtir o efeito desejado. O seu
horizonte de expectativa era achatado. Ela se sentia esmagada, espremida entre
duas situações de violência. De um lado, a casa da mãe, cujo fundamentalismo
religioso a autorizava a perseguir a filha que na cidade grande conseguiu a tão
almejada abertura. De outro, a pressão insana do laboratório por mais
resultados, por mais subsídios para produzir artigos a respeito do tema da sua
pesquisa. O seu trabalho contribuía para resguardar o currículo Lattes do
orientador, por meio do qual o laboratório vinha sendo montado a cada edital
contemplado. Deixar o laboratório remeteria a jovem Joana a uma sensação de
frustração e fracasso, tão comum entre as pessoas negras, e implicaria uma
eventual volta para a casa da mãe, o que era igualmente insustentável. O seu
colapso era iminente ou, para recuperar as ideias de Winnicott, ele já tinha
acontecido, uma vez que Joana já não possuía mecanismos de defesa para lidar
com a situação que enfrentava.
Comecei
o presente texto com essa breve narrativa de um caso clínico para dizer que,
para além das questões singulares que o caso porta, ele é representativo da
situação de uma legião de pessoas que, a exemplo de Joana, estão na universidade
à beira de um colapso. E elas, na sua maioria, têm uma cor específica. Esse
colapso pode se dar na forma de uma evasão da vida universitária (basta ver os
números da evasão, sobretudo após a pandemia de covid-19), mas com um custo
pessoal enorme. Isto é, mesmo quando ocorre a evasão, o adoecimento permanece
junto com a pessoa que deixa a universidade.
Na
engrenagem da universidade, a pesquisa pode continuar sem a participação da
Joana. Afinal, há tantas pessoas como ela à procura de uma bolsa… Parece não fazer
diferença a sua desistência para a excelência do laboratório. Isso não entra na
avaliação da verba da pesquisa. Nada muda no laboratório quando toda a vida de
Joana sofre uma derrocada. Para uma percepção meritocrática da universidade,
talvez Joana não devesse estar ali, pois, mesmo com a política de cotas e os
programas de assistência estudantil, ela fracassou. Joana via o seu projeto de
formação universitária se esvair diante do seu adoecimento, mas a vida do
laboratório se mantinha incólume. O laboratório permanece reconhecido pela sua
excelência na pesquisa que produz sobre as questões raciais e os processos de
escravidão.
Os
incentivos para a presença de Joana na universidade terminam sendo tomados, por
certa lógica meritocrática, como se ela devesse, a todo custo, aproveitar a
oportunidade para estar em pé de igualdade com as pessoas que nunca tiveram que
pegar transporte público para percorrer enormes distâncias, que fizeram os seus
intercâmbio em países europeus onde aprenderam outras línguas e que falam a
linguagem ainda hoje aristocrática da universidade (com exemplos nas aulas que
se referem de forma majoritária à cultura europeia). Joana tentou
desesperadamente atingir esse padrão de excelência que é na sua essência
branco. Talvez essa também seja uma das razões dela ter entrado em colapso. São
várias razões e camadas.
Assim,
a reparação histórica que a política de cotas tenta, com todas as dificuldades,
realizar ainda não é suficiente para que determinados grupos sociais permaneçam
na universidade sem uma carga de adoecimento. É nesse sentido que os dados
coletados na recente pesquisa publicada na revista Nature (Hall,
2023), num contexto americano, mostram que a incidência de sofrimento no corpo
discente é maior ou tem números mais elevados entre as pessoas que compõem as
minorias políticas. É sobre elas, ainda segundo o artigo, que recaem mais
fortemente as práticas de bullying e discriminação responsáveis por aumentar o
seu sofrimento. Ademais, a cota de esforço que pessoas negras, indígenas e/ou
de classes sociais mais precarizadas têm que realizar para dar conta do déficit
de formação é imensa. Isso é ainda mais problemático caso levemos em
consideração que essa formação muitas vezes não dialoga com as sabedorias
locais já existentes nos territórios de onde parte significativa dos estudantes
advém.
O
esforço, então, para percorrer uma formação acadêmica termina sendo uma tarefa
extenuante. As pessoas que conseguem algum destaque, longe de serem a regra,
compõem as exceções e serão devidamente premiadas como exemplo de superação e
de mérito pessoal. Em outras palavras, trata-se do espelhamento da sociedade
capitalista, no qual as pessoas que “vieram de baixo” servem de propaganda para
a manutenção do imperativo de que basta você se esforçar para conseguir.
Com
efeito, é evidente que o adoecimento produzido pelo capitalismo não é
exclusividade da universidade, mas há um ingrediente relevante e que é próprio
da vida universitária, ainda segundo recente pesquisa publicada na
revista Nature, a saber: a identificação, chamada
também de vocação, com o trabalho de pesquisa. Isso termina alimentando a
armadilha do sacrifício como via de acesso ao sistema de produção. Ou seja, na
vida universitária a exigência de produção facilmente desemboca em assédio,
como, aliás, o referido estudo da Nature também
denuncia, visto que a cobrança por resultados é maior quando se faz algo por
vocação.
É
importante sublinhar que a ideia de que faz parte da identificação com a vida
acadêmica realizar todos os sacrifícios possíveis para a produção de
conhecimento ressoa para as pessoas negras como uma armadilha ainda mais
perigosa. Os corpos negros e indígenas foram aqueles sacrificados para a
prosperidade econômica do Brasil. Nesse sentido, ao invés de exigir sacrifícios
individuais para corpos já espoliados historicamente, a universidade poderia
ser lugar privilegiado para a criação de outras formas de produção e
difusão do conhecimento que não elidissem a cadeia produtiva ou as pessoas
responsáveis pela ciência nacional.
O
capitalismo pode ser caracterizado como um sistema que visa aos resultados, na
forma econômica do lucro, antes de qualquer outra coisa e sem oferecer um
cuidado com a cadeia produtiva (a classe trabalhadora). O resultado ou o lucro
é visto como um fim em si mesmo, uma vez que a entrega do produto é a meta
principal do sistema. Quando um agente público ou uma política pública se foca
nos resultados para distribuir recursos, sem considerar o contexto da produção
e a qualidade da vida das pessoas que produzem, ela pouco se difere da lógica
capitalista.
Trata-se,
nesses termos, de uma nova forma de alienação produzida no capitalismo, visto
que os vários estudos sobre sofrimento social, no sentido mais amplo possível,
são por vezes realizados com base na precarização das pessoas que os realizam.
Na medida em que apenas o resultado objetivo, a saber, o produto na forma de um
artigo científico ou relatório, é o que interessa no processo de avaliação,
todo o processo para a produção é negligenciado ou tratado como resolvido pelas
políticas públicas, quando existentes a contento, de financiamento e
assistência estudantil, sem que se questione a lógica da produção para a qual
quase ninguém consegue efetivamente contribuir sem algum grau de adoecimento. O
que, aliás, é bom sublinhar: se aplica ao próprio corpo docente.
Assim,
a promoção de ambientes saudáveis e com um importante grau de diversidade
deveria estar no centro da avaliação do uso dos recursos públicos. Ou seja, a
procura por modos de avaliar a qualidade dos ambientes de pesquisa do ponto de
vista das relações interpessoais e da diversidade do corpo de pesquisadores/as
deveria igualmente ser uma das principais variáveis para se tomar um programa
ou laboratório como excelente. Paridade de gênero, raça e a assimilação de
outros corpos, tomo emprestada a expressão de Sueli Carneiro (2023),
insurgentes e o diálogo com a produção cultural brasileira e com os problemas
mais urgentes do país deveriam ser o elemento central da excelência.
Para
que a excelência não seja sequestrada pela lógica capitalista, é preciso que
ela deixe de ser uma espécie de chancela ou atestado de mérito acadêmico que se
refere à pesquisa apenas no que ela representa de resultado acabado. A pesquisa
é uma coletividade orgânica e deve ser pensada como esse organismo poroso que
se estende por toda a comunidade para o benefício comunitário. A sua principal
preocupação deve ser reparar injustiças históricas das mais diversas ordens
(regionais, de raça, gênero, orientação sexual etc.) e promover o bem-estar da
sua comunidade. Não podemos ter a mentalidade extrativista que a colonialidade
e o capitalismo nos impõem como forma de lidarmos com os nossos próprios
corpos.
Alguns
trabalhos começam a apontar para o fato de que a história de Joana se repete e,
muitas vezes, pode se repetir no seu modo mais dramático (Maia, 2022). Por
isso, não devemos tratar com surpresa o adoecimento que leva estudantes a uma
demissão total de si. Isso não é algo errático, mas um sintoma de que devemos
procurar soluções criativas para que o ambiente universitário não seja um
terreno fértil para o fim da vida. Esse texto se encerra com um convite para
que busquemos atenuar a importância do índice de impacto das produções
científicas e possamos pensar a possibilidade de um índice de felicidade da
comunidade acadêmica.
Fonte: Por Érico Andrade, no Blog da Boitempo
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