O SUS pagará o ônus dos planos de saúde privados?
Agência reguladora quer autorizar planos ainda mais
precários que atenderiam 40 milhões de brasileiros. É ardil das operadoras:
lucrar com os mais pobres e, ao final, só encaminhá-los ao SUS. Por lei, custo
deveria ser ressarcido ao governo, mas hoje elas já devem R$ 2 bilhões.
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Breve histórico da
legislação de regência
O primeiro plano de saúde surgido no Brasil foi a Caixa
de Assistência dos Funcionários do Banco do Brasil – a CASSI, num modelo de autogestão,
fundada em 1944. A partir dali foram surgindo outras empresas privadas, num
cenário em que as relações de consumo estavam submetidas aos regramentos do
Código Civil, sem as garantias e direitos relativos à saúde que conquistamos a
partir da Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Foi a CF/88 – promulgada no período de redemocratização
do país, que se iniciou a partir de 1985, chamada com muita propriedade de
Constituição Cidadã – que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), com o
objetivo de universalizar o acesso à saúde, atribuindo ao Estado o dever de
garantir a todos esse serviço essencial.
A CF/88 trouxe ainda a previsão expressa de que a
assistência à saúde é livre à iniciativa privada, que passou a poder participar
de forma complementar do SUS, seguindo suas diretrizes.
Considerando o direito à saúde no âmbito das relações
mantidas com as empresas privadas que operam planos de saúde, é importante ter
em conta que a CF/88 introduziu entre os direitos e garantias fundamentais o
dever de o Estado promover, na forma da lei, a defesa do consumidor. Foi neste
contexto que se deu a edição, em 1990, do Código de Proteção e Defesa do
Consumidor (CDC).
>>>> O Código de Proteção e Defesa do
Consumidor
O CDC é uma lei, ainda hoje, bastante avançada, que estabeleceu
a Política Nacional das Relações de Consumo, com o objetivo de atender às
“necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança,
a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida,
bem como a transparência e harmonia das relações de consumo”, estabelecendo uma
série de princípios, sendo o primeiro deles o “reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”, “ação governamental no
sentido de proteger o consumidor”, bem como “a racionalização e melhoria dos
serviços públicos”.
A lei também estabeleceu uma série de direitos básicos,
de modo a proteger o consumidor de práticas abusivas e de obtenção de
“vantagens exageradas” pelos fornecedores.
Os direitos que vieram com a CF/88 e com o CDC se
tornaram ferramentas jurídicas poderosas para que os consumidores pudessem
enfrentar a oferta de serviços pelas empresas privadas de plano de saúde em
condições incompatíveis com o caráter essencial desses serviços, abalando a
dignidade humana, a segurança e a vida de uma massa cada vez maior de cidadãos
brasileiros, que passaram a comprometer parte significativa de seus orçamentos
para não ficarem sujeitos aos limites aos quais, infelizmente, o SUS está
sujeito, ainda que não possamos deixar de reconhecer sua incontornável e
histórica importância não só para atender dezenas de milhões cidadãos de baixa
renda, mas também para estruturar os sistemas vacinais, promover medidas
preventivas de saúde, distribuir medicamentos a baixo custo ou gratuitos, entre
outras políticas públicas fundamentais para assegurar a saúde dos brasileiros,
dos mais pobres aos mais ricos.
>>>> A judicialização dos contratos de planos
de saúde
Desde os anos 90, diversos tipos de práticas adotadas
pelas empresas privadas de plano de saúde, tais como negativas injustificadas
de cobertura de procedimentos relativos à doenças cobertas pelos contratos,
limitação do tempo de internação, descredenciamentos de médicos, hospitais e
laboratórios sem informação prévia e sem a substituição por outros da mesma
qualidade e aumentos de preços extorsivos para mudança de faixa etária e
aplicação de percentuais de reajustes anuais abusivos, levaram a uma enxurrada
de ações judiciais com base no CDC, com resultados bastante favoráveis aos consumidores.
Esse cenário levou a que, em 1997, as empresas se
mobilizassem por intermédio da ABRANGE – Associação Brasileira de Planos de
Saúde e elaborassem um projeto de lei entregue ao então deputado Pinheiro
Landim (PMDB-CE) que, entre outras disposições, simplesmente revogava o CDC.
Entidades da sociedade civil organizadas, como
Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e PROCONs, por exemplo, se
mobilizaram para que fosse apresentado um substitutivo ao projeto da ABRANGE e
o processo culminou com a aprovação da Lei 9.656, editada em 3 de junho de
1998, regulando a atividade das empresas que operam planos de assistência à
saúde e deixando claro que sua aplicação deve se dar de forma sistemática com o
CDC.
A Lei 9.656/98 estabeleceu que as empresas privadas se
subordinariam à atuação regulatória e fiscalizatória da Agência Nacional de
Saúde Suplementar (ANS), cuja criação se deu pela Lei 9.961, de 28 de janeiro
de 2000.
A mesma lei definiu regimes distintos para os seguintes
tipos de contratação: individual, familiar e coletivo, sendo que este último,
na prática, passou a ser contratado com empresas ou com entidades de
representação de classes. Posteriormente, a partir de 2001, estes planos
passaram a ser classificados como coletivos empresariais e coletivos por
adesão.
Diante deste novo quadro, em 26 de junho de 2000, a ANS
editou a Resolução de Diretoria Colegiada nº 29, estabelecendo normas para
reajuste das mensalidades dos planos de saúde, autorizando variações de preços
com base nos aumentos de custos médicos e de sinistralidade, facilitando
reajustes fixados de forma unilateral pelas empresas e, por outro lado,
dificultando que o consumidor pudesse acompanhar o cabimento dos percentuais
aplicados.
A RDC 29 já foi revogada pela Resolução 462, de 19 de
novembro de 2020, substituída pela hoje vigente Resolução 557, de 14 de
dezembro de 2022, que manteve a classificação dos contratos em individual ou
familiar, coletivo empresarial (quando são contratados diretamente por uma
empresa, contemplando os sócios e empregados vinculados a ela) e coletivo por
adesão (quando são contratados por associações, entidades de classe ou
sindicatos aos quais o consumidor esteja associado, mantendo o mesmo sistema de
reajustes, com a previsão de índices fixados pela agência apenas para os planos
individuais e familiares).
>>>> Pressão das empresas para adesão aos
chamados planos regulados
Considerando a grande quantidade de planos de saúde
contratados antes da vigência da Lei 9.656/98, que definiu um novo padrão de
funcionamento para os contratos de assistência à saúde, foi editada em 25 de
março de 2004 a Lei nº 10.850/2004, determinando que a ANS definisse o Programa
de Incentivo à Adaptação de Contratos (PIAC), para estimular os consumidores a
aderirem aos novos planos contemplados pelo novo modelo.
A partir de então, as empresas passaram a atuar
fortemente junto aos consumidores, incentivando-os para que migrassem para os
novos planos, o que, em milhares de casos, significou perda de garantias
asseguradas pelos contratos anteriores à Lei 9.656/98, tais como manutenção do
plano contratado como individual ou familiar, com condições mais equilibradas
para reajustes anuais do valor do contrato e de aumentos por mudança de faixa
etária.
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A práticas abusivas adotadas
pelas empresas
>>>> A falsa coletivização
Diante do PIAC e da decisão da ANS de flexibilizar as
regras de reajustes anuais para os planos coletivos empresariais e coletivos
por adesão, as empresas passaram a induzir uma grande massa de consumidores a
migrarem para planos coletivos, com o reprovável propósito de se liberarem de
respeitar os limites definidos pela agência, aplicando reajustes abusivos e
dificultando a supervisão da legalidade dos percentuais aplicados, tendo em
vista que resultam de cálculos atuariais complexos, que fogem da possibilidade
de uma simples verificação pelos contratantes dos serviços.
Para ter sucesso na estratégica, as empresas em bloco
passaram a negar a contratação de novos planos individuais e familiares,
explorando a vulnerabilidade de milhões de consumidores, submetendo-os a
contratar em condições extremamente desfavoráveis, uma vez que, diante da
prática adotada pelas operadoras, ficaram sem alternativa.
Vale mencionar que quando o consumidor não atendia aos
requisitos profissionais para aderir a um sindicato ou entidade de classe,
passava a ser estimulado a abrir uma pequena empresa com o único objetivo de
contratar o plano de saúde na modalidade de plano coletivo empresarial, que
contemplavam exclusivamente os membros da família; ou seja, apesar de o
objetivo do consumidor fosse contratar um plano familiar, via-se compelido ou a
se vincular a um plano de sindicato ou entidade de classe, ou a adotar medidas
desvantajosas, como abrir empresa incluindo seus dependentes no plano, se submetendo
à prática abusiva das empresas.
Foi neste contexto que surgiu a atuação mais intensa da
Qualicorp, que se associou com a grande maioria das operadoras dos planos de
saúde para realizar a administração dos milhões de contratos coletivos.
De acordo com a ANS, em 2024 tínhamos 8.703.026 planos
individuais ou familiares; 37.569.585 planos coletivos empresariais e 5.899.628
planos coletivos por adesão.
Na medida em que estes consumidores, compelidos a
contratar planos coletivos, vendo-se premidos a aceitar esta condição por conta
da essencialidade dos serviços de saúde e de sua vulnerabilidade no mercado de
consumo, passaram a sofrer reajustes muito acima da inflação, dos custos
médicos e, sem nenhuma justificativa plausível de aumento da sinistralidade,
milhares de ações judiciais foram propostas e a jurisprudência foi se formando
no sentido de reconhecer o que os tribunais passaram a denominar de “falsa
coletivização”.
Para além da prática abusiva de negar a contratação de
planos individuais/familiares, o que vem ocorrendo há anos, conforme
reconhecido pela reiterada jurisprudência, e sem que a ANS adotasse qualquer
providência para impor às empresas o ajustamento de suas condutas ilegais, como
permite a legislação de defesa do consumidor, as empresas também permanecem
adotando uma série de outros abusos, que vêm sendo barrados nos tribunais.
Porém, o acesso à Justiça no Brasil custa caro e por
isso milhões de brasileiros terminam por serem expulsos de planos para os quais
contribuíram durante anos, pela impossibilidade de continuarem a se submeter a
reajustes muito distantes da inflação.
>>>> Negativa de cobertura de medicamentos e
tratamento de doenças coberta por contrato e prescrito por médico
Vem sendo há anos muito frequente a recusa de cobertura
de medicamentos e/ou tratamentos e intervenções cirúrgicas por parte dos planos
de saúde, sob alegações infundadas e que, apesar de a doença estar contemplada
pelo contrato e haver prescrições médicas específicas para o paciente
consumidor, as empresas resistem em arcar com os custos correspondentes.
Diante da enxurrada de ações judiciais apontando a
resistência reiterada e infundada das operadoras de planos de saúde, o TJSP
editou a Súmula 102, com o seguinte teor: “Súmula 102: Havendo expressa
indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento
sob o argumento da sua natureza experimental ou por não estar previsto no rol
de procedimentos da ANS”, que tem orientado os julgamentos dos casos que se
enquadram nesta situação e refletindo o entendimento pacífico dos tribunais do
país.
Quanto ao STJ, vale considerar que há divergência sobre
a legalidade da Súmula 102, do TJSP surgida no final de 2024, quando a 4ª.
Turma se pronunciou contra a previsão sumular de que, mesmo fora do rol de procedimentos
da ANS o tratamento deve ser custeado pela empresa.
Entretanto, a 3ª. Turma tem confirmado o entendimento
expresso na Súmula 102, do TJSP, no nosso ver de forma acertada e em sintonia
com o caráter essencial dos serviços de assistência à saúde, como estabelecido
pela CF/88.
>>>> Medicamentos de alto custo
As empresas se negam igualmente a cobrir medicamentos
de alto custo, mesmo que estejam aprovados pela Agência de Vigilância Sanitária
(ANVISA) e que constem do rol da ANS. Entretanto, como é possível verificar da
jurisprudência à qual já nos referimos, o rol da ANS tem sido considerado
exemplificativo e não taxativo, como vêm pretendendo as operadoras de plano de
saúde. Também neste caso a jurisprudência tem dado suporte ao direito dos
consumidores, como é possível constatar dos recentes julgamentos proferidos
pelo TJSP.
>>>> Descredenciamento de hospitais e
laboratórios
O mais recente conflito entre consumidores e empresas
de plano de saúde tem sido o descredenciamento de hospitais, laboratórios e de
médicos, sem aviso prévio ao consumidor e, consequentemente, sem nenhuma
justificativa plausível. Porém, mesmo com o descredenciamento em massa, como
vem ocorrendo, os preços abusivos são mantidos, mesmo quando não há a
substituição do hospital ou laboratório descredenciado ou a substituição se dá
por outras empresas sem o mesmo padrão de qualidade.
A questão tem sido bastante controversa, inclusive
porque a ANS, ao invés de exigir das operadoras de plano de saúde que
demonstrem a necessidade do descredenciamento e a substituição por outro
hospital ou laboratório com a mesma qualidade, simplesmente editou norma
impondo que as empresas avisem com antecedência de trinta dias a mudança
radical na execução do contrato.
Trata-se da Resolução Normativa 585, de 18 de agosto de
2023, que entrou em vigor a partir de 31 de dezembro de 2024, de acordo com a
qual é permitida a substituição de entidades hospitalares desde que sejam
equivalentes e mediante comunicação aos consumidores e à ANS com trinta dias de
antecedência.
Ou seja, a ANS está permitindo a modificação
substancial do contrato, mediante mero aviso prévio de trinta dias aos
consumidores e à própria agência, antes mesmo de que tenha havido atuação
fiscalizatória sobre a prática da empresa, jogando para o contratante do
serviço de saúde a difícil tarefa de demonstrar um fato negativo, qual seja, de
que não foi notificado com a antecedência mínima, bem como que haveria
equivalência entre a o hospital descredenciado e os novos prestadores que
passam a integrar a rede.
Felizmente a jurisprudência do TJSP tem dado respostas
positivas para os consumidores, como se pode verificar pelos recentíssimos
julgados neste mês de fevereiro, determinando que as operadoras mantenham a
cobertura dos tratamentos realizados nos hospitais e/ou laboratórios
descredenciados.
>>>> Abusos nos aumentos por mudança de faixa
etária
Em virtude da entrada em vigor do Estatuto do Idoso –
Lei 10.741, de 1º de outubro de de 2003, limitando aumentos nos planos de saúde
para consumidores a partir dos sessenta anos, a ANS editou a Resolução
Normativa nº 63, de 20 de dezembro do mesmo ano, substituída pela Resolução
Normativa nº 563, de dezembro de 2022, estabelecendo faixas etárias e limites
para os percentuais de aumento a serem aplicados entre a primeira e a sétima
faixa e entre a sétima e a décima faixa, sendo que a variação da última faixa
não pode ser superior a seis vezes o valor da primeira.
A despeito da regra estabelecida, as operadoras têm
adotado a prática de jogar para as faixas etárias mais avançadas os maiores
percentuais, com o objetivo que viola a obrigação de boa fé objetiva, conforme
está expresso no CDC, de se livrar dos clientes mais idosos, pela
impossibilidade financeira de manter o contrato.
Os tribunais do país têm identificado as práticas
abusivas na distribuição dos percentuais de reajustes por mudança de faixa
etária, como refletem bem as decisões do TJSP, referenciadas, inclusive, em
decisões so STJ.
Ou seja, em mais esse tema se revelam as práticas
abusivas adotadas pelas operadoras, levando uma enxurrada de ações para o Poder
Judiciário. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, em 2024 houve um
acréscimo de 28% no número de ações propostas por beneficiários de planos de
saúde, chegando a 298,8 mil processos.
Para entender o alcance dos efeitos deletérios destas
práticas, especialmente para os idosos, importante fazer atenção para os
últimos dados divulgados pela ANS indicam que o número de beneficiários de
planos de saúde em 2024 chegou a 52,2 milhões de usuários, sendo que
considerando-se as faixas etárias a partir dos cinquenta anos está em torno de
10 milhões.
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A consulta pública da ANS
pretendendo implantar os chamados planos “Melhoral e copo d’água”
Finalmente, é fundamental trazer à luz a proposta da
ANS, submetida à Consulta Pública nº 151 aberta de 18 de fevereiro deste ano,
com prazo para contribuições até 4 de abril deste ano, prevendo um novo tipo de
plano de saúde em caráter de teste por dois anos, visando atender mais de 40
milhões de brasileiros que não conseguem contratar planos de saúde com os
preços praticados hoje no mercado.
Sob a falsa e deplorável justificativa de que é
necessário oferecer aos brasileiros um plano de saúde mais barato, com o
objetivo de desafogar o SUS, a agência apresentou a “Proposta de Resolução
Normativa que dispõe sobre as regras para constituição e funcionamento de
ambiente regulatório experimental (Sandbox Regulatório) denominado “Plano para
consultas médicas estritamente eletivas e exames” que, na verdade, vem atender
os interesses das operadoras de plano de saúde; fala-se que o preço inicial
destes planos seria de R$ 100 mensais.
Trata-se de proposta que sistematicamente levará o
consumidor de baixa renda que venha a contratar este novo tipo de plano e seja
diagnosticado com doença que demande tratamento especializado, tenha de
recorrer ao SUS. Os planos previstos na proposta de norma excluem, por exemplo
emergências, internações e tratamentos de câncer.
Além disso, segundo a proposta, a contratação se dará
na modalidade de plano coletivo; ou seja, os reajustes anuais não serão
regulados pela ANS e as variações do preço se darão de forma unilateral pela
empresa, levando em conta aumentos de custos médicos e do nível de
sinistralidade seja do plano coletivo empresarial ou coletivo por adesão
correspondente à entidade de classe à qual esteja vinculado o consumidor.
Caso essa proposta seja implantada vai se operar
injustiça social incompatível com o que está assegurado pela CF/88; vai se
viabilizar que em torno de 40 milhões de brasileiros, iludidos pela sedução de
ter um atendimento mais célere, gastem parte considerável de seus orçamentos em
serviços de assistência à saúde precários, enriquecendo ainda mais as empresas
de plano de saúde, terminando por serem atendidos pelo SUS, gastando
inutilmente o seu dinheiro.
Esta proposta da ANS atenta contra o princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana e contra a lógica que orienta o
SUS, importante política pública voltada para a universalização dos serviços de
assistência à saúde.
Talvez muita gente não saiba que as operadoras de plano
de saúde devem hoje ao SUS algo em torno de R$ 2 bilhões, pois, quando seus
clientes apresentam doenças demandando tratamentos de alta complexidade e não
consigam o devido atendimento pela rede credenciada à operadora contratada,
eles são direcionados ao SUS, utilizando hospitais públicos onde se fazem os
investimentos em novas tecnologias como é o caso do INCOR, entre outros
privados que operam com o SUS, como o AC Camargo.
Ocorre que, de acordo com a Lei 9.656/1998, os custos
destes tratamentos arcados pelo SUS devem ser ressarcidos pelas operadoras. Em
2018 a dívida com o SUS alcançava o espantoso patamar de R$ 5,6 bilhões segundo
o Ministério da Saúde.
Por incrível que pareça, a Confederação Nacional de
Saúde (CNS), que representa entidades de empresas do setor hospitalar, em 1998,
ajuizou a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1931, para questionar o art.
32, da lei, que estabelece a obrigação de ressarcimento, sob o argumento cínico
de que cabe ao Estado garantir o acesso à saúde.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por
unanimidade pela constitucionalidade do dispositivo legal e determinou que as
empresas ressarcissem o SUS.
O relator da ação, ministro Marco Aurelio Mello, entendeu
que “A norma impede o enriquecimento ilícito das empresas e perpetuação da
lógica do lucro às custas do erário. Entendimento contrário significa que os
planos de saúde recebem pagamento, mas serviços continuam a ser prestados pelo
Estado, sem contrapartida”.
No julgamento o ministro Alexandre de Moraes
acrescentou que as pessoas só procuram a rede pública quando os planos falham
em prestar o atendimento: “Quem procurou o plano de saúde privado é porque não
está contente com a saúde pública. Se você paga mensalmente o plano de saúde,
já optou. Só vai procurar o SUS quando seu plano falhou. Ou não deu a cobertura
que deveria dar ou deu cobertura abaixo do que se pretendia”, disse. Também
votaram em favor do ressarcimento os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz
Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia.
Por tudo isto, esperamos que a nova proposta
apresentada pela agência seja abortada desde já e que, a despeito da autonomia
e independência das autarquias, como é o caso da ANS, o Ministério da Saúde e o
Ministério da Justiça, este por intermédio da Secretaria Nacional do
Consumidor, adotem providências urgentes para impedir esta medida claramente
inconstitucional, uma vez que, além de aviltar os serviços essenciais de
assistência à saúde, invade a competência do Poder Executivo e do Poder
Legislativo de definirem as políticas públicas para o setor.
Isto porque as agências são meras implementadoras de
políticas públicas definidas nos âmbitos democráticos de representação e não podem
suplantar os poderes competentes.
Fonte: Por Flávia
Lefèvre, em Outra Saúde
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