Papa
Francisco: “Se você quer saber o que um povo sente, vá à periferia”
Em 2022, uma conversa do
Papa Francisco com a agência de notícias argentina Telám (dissolvida pelo
presidente Javier Milei em 2024) deixou claro por que ele é atacado e chamado
de “comunista” pela extrema direita. Mario Bergoglio falou
sobre assuntos caros à América Latina, como o papel social da Igreja e as
periferias. Em um contexto de consolidação da extrema direita e seguindo os
pontificados de dois papas conservadores — Bento XVI e João Paulo II — Mario
Bergoglio manteve posições da Igreja Católica sobre a condenação ao aborto, mas tem um olhar crítico
sobre a associação da tecnologia com a comunicação e sobre os perigos das
mudanças climáticas: “O aquecimento do planeta nos tira da construção de
uma sociedade justa e fraterna”, ele disse à jornalista Bernarda Llorente.
Hospitalizado na Itália há
quase três semanas por causa de sucessivas crises respiratórias graves, o
estado de saúde de Francisco suscita debate sobre sua sucessão e sobre o futuro
da Igreja após o primeiro papa latino-americano.
<><> Pós-pandemia
·
Muitos pensavam
que a pandemia havia marcado limites: a extrema desigualdade, a despreocupação
com o aquecimento global, o individualismo exacerbado, o mau funcionamento dos
sistemas políticos e de representação. No entanto, existem setores que insistem
em reconstruir as condições do período pré-pandêmico.
Não estou gostando de como
estamos. Em alguns setores evoluímos, mas, em geral, não me agrada. Veja,
o fato de a África não ter tido vacinas ou ter tido acesso a pouquíssimas doses
significa que a salvação contra a doença foi dosificada por outros interesses.
Isso indica que algo não funcionou.
Não podemos voltar à falsa
segurança das estruturas políticas e econômicas que tínhamos antes. Assim como
digo que da crise não se sai igual, mas que se sai melhor ou pior, digo
que da crise não se sai sozinho. Ou saímos todos, ou não sai ninguém. Se
sai arriscando e dando a mão ao outro. Aí está o social da crise.
Esta é uma crise
civilizacional. E ocorre que a natureza também está em crise. Recordo que há
alguns anos recebi vários chefes de Estado e de governo dos países da
Polinésia. Um deles dizia: “Nosso país está pensando em comprar terras em
Samoa. Em 25 anos talvez não existamos mais, porque o nível do mar está
aumentando muito”. Não nos damos conta, porém há um ditado espanhol que me tem
feito pensar: Deus sempre perdoa. Fiquem tranquilos que Deus perdoa sempre e
nós, os homens, perdoamos de vez em quando. Porém, a natureza não perdoa
nunca. A natureza cobra. Se você utiliza a natureza, ela te responde.
O aquecimento do planeta
também nos tira da construção de uma sociedade justa e fraterna. Não
estamos vivendo em harmonia com o universo, com a Criação. E a golpeamos cada
vez mais. Usamos mal as nossas forças. Tem gente que não imagina o perigo que
hoje a humanidade vive com o aquecimento e o manuseio da natureza.
·
Na encíclica
“Laudato Si’”, você adverte que muitas vezes se fala de ecologia, mas separando
das condições sociais e de desenvolvimento. Quais seriam essas novas regras em
termos econômicos, sociais e políticos?
Tudo está interligado, é
harmônico. Não se pode pensar a pessoa humana sem a natureza, tampouco a
natureza sem a pessoa humana. É como aquela passagem do Gênesis: “Cresçam,
multipliquem-se e dominem a Terra”. Dominar é entrar em harmonia com a Terra
para fazê-la frutificar. E nós temos essa vocação. Há uma expressão dos
indígenas da Amazônia que me encanta: o “bem-viver”. Trata-se de viver em
harmonia com a natureza. Quando me diziam que a “Laudato Si’” era uma linda
encíclica ambiental, eu contestava, pois se trata de uma “encíclica
social”. Porque não podemos separar o social do ambiental. A vida dos
homens e das mulheres se desenvolve no meio ambiente.
Repito: a natureza não
perdoa nunca, não porque seja vingativa, mas porque executamos processos de
degeneração que não estão em harmonia com nosso ser. Há alguns anos fiquei
chocado quando vi a foto de um barco que havia passado pelo Polo Norte pela
primeira vez. O Polo Norte navegável! O que isso quer dizer? Que os gelos
estão derretendo devido ao aquecimento. Quando percebemos essas coisas,
precisamos pará-las.
<><> Jovens,
política e discurso de ódio
·
Considera que
parte da frustração de alguns jovens faz com que sejam seduzidos por discursos
de ódio e opções políticas extremas?
O mundo político é esse
choque de ideias, de posições, que nos purifica e nos faz ir adiante
juntos. Os jovens têm que aprender essa ciência da política, da
convivência, porém também da luta política que nos purifica de egoísmos e nos
leva adiante. É importante ajudar os jovens nesse compromisso
sociopolítico, e que, também, não sejam ingênuos. Ainda que hoje em dia, creio
que a juventude está mais avivada.
Eu confio muito na
juventude. “Sim, porém, eles não vêm à missa”, disse-me um padre. Eu respondo
que é preciso ajudá-los a amadurecer e acompanhá-los. Depois, Deus falará a
cada um. Porém é preciso deixá-los crescer. Se os jovens não forem os
protagonistas da história, estamos fritos. Porque eles são o presente e o
futuro.
·
Desde 2014 você
já afirmava que o mundo estava entrando em uma Terceira Guerra Mundial e hoje
(2022) a realidade não faz mais que confirmar seus prognósticos. A falta de
diálogo e de escuta é um agravante na situação atual?
A expressão que utilizei
aquela vez foi “guerra mundial em capítulos”. Estamos vivendo de perto a guerra
na Ucrânia e por isso nos alarmamos. Porém, pensamos em Ruanda há 25 anos, na
Síria nos últimos dez anos, no Líbano ou Myanmar. Isto está ocorrendo há
tempos. Uma guerra, lamentavelmente, é uma crueldade cotidiana. Na guerra não
se dança o minueto, mata-se. E há toda uma estrutura de venda de armas que
favorece. Uma pessoa especialista em estatística me disse, não me recordo dos
números exatos, que, se, em um ano não fossem fabricadas armas, não haveria
fome no mundo.
Chegou o momento de repensar
o conceito de “guerra justa”. Eu declarei que o uso e a posse de armas
nucleares são imorais. Resolver as coisas com uma guerra é dizer não à
capacidade de diálogo que os homens possuem. Não sabemos nos escutar. Não
permitimos ao outro que diga sua opinião. Mas é preciso escutar.
<><> A crise das
instituições
·
Os organismos
multilaterais estariam falhando ante essas guerras? É possível conseguir a paz
com eles?
Após a Segunda Guerra
Mundial, havia muita esperança nas Nações Unidas. Não quero ofender, sei que tem
gente muito boa que trabalha lá, mas neste momento [a ONU] não tem o poder de
se impor. Ajuda a evitar guerras, mas parar uma guerra, resolver uma situação
de conflito como a que vivemos hoje na Europa, ou como as vividas em outras
partes do mundo, não tem poder. Sem ofensa. É que a constituição que a ONU tem
não lhe dá poder.
Neste momento, coragem e
criatividade são necessárias. Sem essas duas coisas, não teremos instituições
internacionais que possam nos ajudar a superar esses graves conflitos, essas situações
mortais.
<><> A Igreja
Católica na América Latina e as periferias
·
Você conseguiu
cumprir todos os seus objetivos? Quais projetos estão pendentes?
[…] Hoje há uma experiência
do tipo missionário. Preguem a palavra de Deus. Em outras palavras, o essencial
é sair. A Igreja latino-americana tem uma história de proximidade com o
povo muito grande. Se tomarmos as conferências episcopais – Medellín
[Colômbia], depois Puebla [México], Santo Domingo [República Dominicana] e
Aparecida –, foi sempre em diálogo com o povo de Deus. E isso ajudou muito. É
uma Igreja popular, no verdadeiro sentido da palavra. É uma Igreja Povo de
Deus, que se desnaturalizou quando o povo não conseguia se expressar e acabou
sendo uma Igreja de capatazes de estâncias, com os agentes pastorais que
governavam. O povo se expressou cada vez mais religiosamente e acabou sendo o
protagonista de sua história.
Em parte, foi isso que a
Igreja latino-americana experimentou, embora tenha havido tentativas de
ideologização, como instrumento de análise marxista da realidade para a
teologia da libertação. Foi uma instrumentalização ideológica, um caminho de
libertação da Igreja popular latino-americana. […] Mas é uma Igreja que
pode e deve expressar cada vez mais sua piedade popular, por exemplo, sua
religiosidade e sua organização popular.
Quando você descobre que
os misachicos [
pequenas procissões organizadas por famílias ou grupos carregando a imagem de
um santo, típico do noroeste da Argentina], descem de 3 mil metros até os
santos padroeiros do milagre de Salta, há uma entidade religiosa, isso não é
superstição, porque eles se identificam com ela. A Igreja latino-americana
cresceu muito nisso. E é também uma Igreja que soube cultivar as periferias,
porque de lá se vê a verdadeira realidade.
·
Por que a
verdadeira transformação vem da periferia?
Fiquei impressionado com uma
conferência que ouvi de Amelia Podetti, uma filósofa já falecida, que disse: “A
Europa viu o Universo quando Fernão de Magalhães chegou ao Sul”. Em outras
palavras, a Europa se entendeu a partir da maior periferia. A periferia
nos faz entender o centro. Se você quer saber o que um povo sente, vá para a
periferia.
As periferias existenciais,
não só as sociais. Os aposentados, as crianças, os bairros, as fábricas, as
universidades, onde se vive o dia a dia. Aí está o povo. Os lugares onde
as pessoas podem se expressar com maior liberdade. Para mim isso é fundamental.
Uma política do povo que não é populismo.
·
Nos últimos
anos, a América Latina começou a mostrar alternativas ao neoliberalismo
baseadas na construção de projetos populares e inclusivos. Como você vê a
América Latina como região?
A América Latina continua
nesse caminho lento, de luta, do sonho de San Martín e Simón Bolívar pela
unidade da região. Sempre foi e será vítima até que seja totalmente libertada
do imperialismo explorador. Isso é o sonho que todos os países têm. O
sonho de San Martín e Bolívar é uma profecia, esse encontro de todo o povo
latino-americano, além da ideologia, com a soberania. É isso que deve ser trabalhado
para alcançar a unidade latino-americana, onde cada povo sente sua identidade
e, ao mesmo tempo, necessita da identidade do outro. Não é fácil.
<><> Manipulação
midiática
·
Talvez você seja
a voz mais importante do mundo em termos de liderança social e política. Às
vezes sente que, pela sua voz dissonante, você tem a possibilidade de mudar
muitas coisas?
Às vezes eu sentia que era
dissonante, e acho que minha voz pode mudar. Digo o que sinto diante de Deus,
diante dos outros, com honestidade e com desejo de servir. Não estou tão
preocupado se isso vai ou não mudar as coisas. Me convém mais dizer as coisas e
ajudá-los a mudar por conta própria. Acredito que há uma grande força no
mundo, e na América Latina em particular, para mudar as coisas.
·
O mundo tornou-se
cada vez mais desigual e isso também se reflete nos meios de comunicação, a
partir de uma grande concentração de plataformas digitais e redes sociais cada
vez mais poderosas na produção do discurso. Nesse contexto, qual deveria ser o
papel da mídia?
Temos que estar muito
conscientes de que comunicar é envolver-se, e estarmos muito conscientes da
necessidade de se envolver bem. A objetividade, por exemplo. Eu comunico alguma
coisa e digo: “Isso aconteceu, eu acho isso”. É aí que eu me coloco e me abro
para a resposta do outro. Mas se comunico o que aconteceu fazendo recortes, e
sem dizer que estou fazendo esses recortes, sou desonesto porque não comunico a
verdade. Não se pode se comunicar objetivamente uma verdade, porque, se eu a
estou comunicando, vou colocar meu viés nisso. É por isso que é importante
distinguir entre “isso aconteceu” versus “eu acho que é isso”. Hoje,
infelizmente, o “eu acho” distorce a realidade. E isso é muito sério.
·
A tecnologia é
muitas vezes atribuída a uma certa vida própria, como responsável por males que
são cometidos além do uso que é feito. Como recuperar o humanismo neste mundo
altamente tecnológico?
Olha, uma sala de cirurgia é
um lugar onde a tecnologia é usada a milímetro. E, ainda, quais cuidados são
tomados em uma intervenção cirúrgica por meio das novas tecnologias. Porque há
uma vida no meio que deve ser cuidada. O critério é este: que a tecnologia
sempre veja que está trabalhando com vidas humanas. Você tem que pensar nas
salas de cirurgia. Essa é a honestidade que devemos ter sempre, mesmo na
comunicação. Há vidas no meio. Não podemos fazer as coisas como se nada tivesse
acontecido.
<><> Bergoglio e
Francisco
·
Como o papa vê
Bergoglio e como Bergoglio veria Francisco?
Bergoglio nunca imaginou que
acabaria aqui. Nunca. Cheguei ao Vaticano com uma mala pequena, com o que
estava vestindo e um pouco mais. Além disso, deixei os sermões preparados para
o Domingo de Ramos em Buenos Aires. Eu pensei: “Nenhum papa vai tomar posse no
Domingo de Ramos, então no sábado eu viajo de volta para casa”. E quando vejo o
Bergoglio de lá e toda a sua história, as fotografias falam. É a história de
uma vida que andou com muitos dons de Deus, muitos fracassos de minha
parte, muitas posições que não são tão universais.
·
Você sente que
mudou muito sendo papa?
Alguns me dizem que coisas
que estavam no centro da minha personalidade vieram à tona. Que eu me tornei
mais misericordioso. Na minha vida tive períodos rígidos, que exigiam muito.
Mais tarde eu percebi que você não vai por esse caminho, que você tem que saber
dirigir. É essa paternidade que Deus tem. […] Esse saber esperar pelos outros,
típico de um pai. Ele sabe o que está acontecendo com você, mas ele quer que
você simplesmente vá, e está esperando por você como se nada tivesse acontecido.
É um pouco o que eu criticaria hoje sobre aquele Bergoglio. Quando eu era
jesuíta, eu era muito severo. E a vida é bela com o estilo de Deus, sabendo
esperar sempre.
·
Você está ótimo,
Francisco. Teremos o papa e o Francisco por mais um tempo?
O [Deus] lá de cima é quem
diz.
Fonte: Por Bernarda Llorente, da
Agencia Pública
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