O que a
história não conta, o samba canta
Os festejos conhecidos como
entrudos, que aconteciam no Império Romano, no Egito antigo e na Mesopotâmia,
ganharam novas roupagens durante a colonização do Brasil. No país, as pessoas
negras escravizadas incorporaram o samba e fizeram nascer uma das maiores
festas populares do mundo, o Carnaval brasileiro.
A pesquisadora e cientista
da religião Cláudia Alexandre diz que os cantos, expressões e gestos das
pessoas escravizadas, trazidos para a folia, foram, por muitos anos, formas de
comunicação e resistência. “A festa, que muitas vezes foi lida como mero
entretenimento, para os negros era composta por códigos e símbolos muito
elaborados, que significaram – e ainda significam – um grito pela liberdade”,
explica.
Na entrevista para o Pauta
Pública desta semana, Cláudia Alexandre faz um resgate histórico do Carnaval
enquanto espaço político de luta, memória e resistência, destacando o papel
fundamental do samba. Para ela, é essencial conhecer as tradições que sustentam
essa manifestação cultural que resistiu às tentativas de apagamento e se
consolidou como parte inseparável da identidade brasileira.
Para a pesquisadora, há uma
equação que precisa ser solucionada para evitar o esvaziamento das pautas
políticas do Carnaval e proteger sua história. “Não é porque hoje o Carnaval
está digitalizado e precisa ganhar números [em lucros e audiência] que a gente
tem que se perder da nossa história.
Leia os principais pontos da
entrevista o que a história não conta, mas o samba canta – com Cláudia
Alexandre
·
Por que temos o
Carnaval e o que essa festa representa na nossa cultura?
Quando a gente vai acessar
alguns estudiosos, entre eles o professor Luiz Antônio Simas, ele vai falar que a gente faz festa para esquecer as tristezas. Se a
gente for olhar a origem das expressões negro-africanas, que vai culminar nesse
Carnaval que hoje a gente assiste na televisão, que é esse Carnaval das escolas
de samba, a gente vai falar que é esse mesmo o motivo dessa festa, dessa
herança negro-africana que a gente recebe.
Os cantos, as expressões, o
gesto e o corpo foram utilizados pelo negro em cativeiro, em situação de
escravizado, para se comunicar. Então, a festa, que muitas vezes foi lida como
algo de entretenimento, para o negro eram códigos, símbolos muito elaborados
pra se comunicar naquele momento. Então, se a gente for falar da história do
samba, no início, a gente vai falar final do século 18 pro 19 os colonizadores,
quando viam as expressões negro-africanas, não conseguiam saber se era reza, se
era festa.
Então, esse Carnaval
brasileiro que a gente tanto admira, que faz parte da identidade nacional, é
uma forma da gente lembrar nossa própria história, da gente aprender sobre
nós. Se a gente for falar dos sambas-enredos que as escolas de samba nos
trazem – elas trazem a história, principalmente os sambas ligados à cultura
afro, às religiosidades –, ele traz a história de um povo que não tá contada,
não tá contada nos livros. Então, em algum momento, a festa significou um grito
pela liberdade, e hoje ela ainda significa, se você for falar sobre a história
das escolas de samba, atos de resistência.
Mas é preciso estar muito
envolvido com essa festa do Carnaval, é preciso olhar de uma outra forma para a
festa que as escolas de samba ainda mantêm para entender o que significa essa
herança negra que ainda está no Carnaval das escolas de samba. A festa, para
mim, ela é Carnaval, mas ela é canto, ela é a reza com canto e é o canto da
reza.
·
Qual é o papel
do samba na conscientização política?
O samba é o resultado de
lutas pela liberdade. Em algum momento no Brasil, no século 19, a gente teve
leis que criminalizam a expressão do samba. Sambar era proibido, tocar o samba
era proibido, portar um instrumento musical ligado a essas expressões
afro-brasileiras era proibido. Então, o samba, ele já começa ali como uma
linguagem para falar sobre as realidades, sobre o seu cotidiano. Por que o
samba do Rio de Janeiro é tão famoso? Primeiro, pelas expressões que foram
possibilitadas pelo encontro da musicalidade baiana com a musicalidade carioca.
E, num segundo momento, porque o Rio de Janeiro, naquele momento do surgimento
do samba, era a capital do Brasil. E ali, quando o samba surge como um elemento
da identidade nacional, ele surge como esse ato de resistência de negros que
escreviam letras, que faziam seus improvisos, que dançavam nas praças, que
tinham suas rodas de samba invadidas pela polícia, que eram denunciados pela
imprensa, porque, naquele momento, o samba não era só tocar e dançar, também
estava ligado às religiosidades. A gente tem, esse ano, a própria Mangueira,
que está falando sobre a cultura banto, que vai dar origem às escolas de samba
ali no Rio de Janeiro.
Quando você pega o processo
histórico, ele está ligado, primeiramente, a essa forma do negro dizer das suas
riquezas e contribuições para a constituição da sociedade brasileira, mas ele
vai passar por todos os momentos políticos do Brasil. Vai ter um momento em que
ele é perseguido por conta da ditadura; ainda reforçado pela questão racial,
nos momentos dos planos econômicos, você vai ver os sambas-enredo satirizando a
mudança dos momentos em que a moeda era superinstável, e a cada momento vinha
um plano econômico. A gente vai ver a denúncia de resistência contra as
violências, contra as minorias, como aconteceu com a própria Mangueira, quando
ela vai e fala sobre o caso Marielle.
O samba sempre foi assim.
Ele dá voz para uma parcela da população que está esquecida pela política
pública. Então, se a gente for estudar a história do samba a partir das
linguagens da poesia e da escrita, a gente vai ver o quanto a gente consegue
registros e registros de denúncias sobre as desigualdades no Brasil.
·
Você acha que ao
longo do tempo também houve um esvaziamento das pautas políticas do Carnaval,
seja por consequência de apropriação cultural ou econômica?
Até a década de 30 no Rio de
Janeiro, era coisa de preto, vamos dizer assim. Então, era um lugar
discriminado, era um lugar que estava sempre associado ao imaginário de
violência, associado à confusão, à bagunça, então era um espaço totalmente
inferiorizado.
A partir da década de 30, a
gente tem, além da popularização do rádio, da imprensa, da mídia, a gente vai
ter a era Vargas, com aquele ideal de populismo. Aí a gente começa a ver a
aproximação do surgimento da indústria cultural, e, aí sim, tem a ver com
quando você fala de apropriação. Porque se começa a entender que aquela
manifestação, além de muito popular, pode se transformar num produto.
Então, quando há a
midiatização a partir da década de [19]80 e a exploração dessas expressões
culturais pela indústria, pela indústria de consumo, a gente vai perceber duas
coisas. Primeiro, a gente vai perceber que há um esvaziamento, sim, da cultura,
da história, porque é produto, e produto a gente sabe que está voltado ao poder
do capital e o quanto ele pode render economicamente.
A gente tem uma
transformação grande dentro dessa manifestação da escola de samba, o Carnaval
se torna um produto – o Carnaval das escolas de samba, inclusive – e chega à
televisão na década de 80. E aí a gente começa a ver uma padronização desses
desfiles, a gente começa a ver uma interferência no próprio enredo que a escola
de samba traz.
Até a década de 30, o
Carnaval falava da negritude, falava da mulher negra, falava dos reis e rainhas
africanos, falava da situação de miséria, cantava a situação do morro, a
situação da fome, e isso, se estava ligado à população negra, ninguém dava
bola, ninguém reclamava que a escola falava da macumba, ninguém reclamava que a
escola exaltava os orixás, e as escolas surgem exaltando esses terreiros.
Agora, a partir da década de
[19]80, começam a se questionar por que a escola de samba tem que falar de tema
negro, tem que falar de orixá. A escola de samba passa a não ter direito de
falar sobre si. Há, sim, uma interferência, há, sim, uma midiatização.
Há, o que eu sempre falo,
uma equação que precisa ser solucionada, que é a tradição que a gente não pode
perder, e o que a gente pode chamar de modernidade, de transformação do meio
social, para que a gente possa proteger a nossa própria história. Não é porque
hoje o Carnaval está digitalizado, não é porque a gente precisa ganhar números
em audiência e vencer o campeonato que a gente tem que se perder da nossa
história.
Há um provérbio africano que
fala que, se você não sabe de onde você veio, você não conseguirá chegar até
onde você precisa ir. Então, você precisa sempre reverenciar o seu
passado e utilizar essa sabedoria para as suas melhorias no presente.
·
Como você vê o
crescimento dos blocos de rua? Você acha que isso impacta de alguma maneira as
comunidades dos territórios do samba hoje?
Diretamente. Eu vejo que tem
a ver também com a indústria de consumo, tem a ver com os investimentos,
porque, quando você fala do crescimento dos blocos de rua, a gente vai falar de
uma onda. Quando se olha como essa dinâmica dos blocos aconteceu em São Paulo,
é possível ver que grandes marcas investiram na manutenção e na formação e
impulsionaram que novos blocos surgissem. Há uma indústria de produção desse
evento que traz grandes nomes do Carnaval da Bahia, do Carnaval do Rio de
Janeiro, para puxar blocos, trios elétricos em São Paulo, que não era uma
tradição da cidade de São Paulo.
Primeiro, esse grande boom do
bloco de rua, acho que é precisamente de São Paulo, porque as outras capitais
já tinham essa tradição e não têm escola de samba. Então, impacta no sentido de
que o investimento vai ficar sempre em um segmento de poder econômico que está
consumindo os blocos de rua e que deixam de consumir o Carnaval no
sambódromo.
E aí a gente tem uma outra
questão, que são essas marcas que patrocinam isso. Enquanto houver publicidade,
enquanto houver marcas patrocinando, esse Carnaval, em especial de São Paulo,
vai crescer ainda mais. Mas esse mesmo investimento, esse mesmo olhar das
marcas, não está para a manifestação das escolas de samba.
Então, o carnaval de rua de
São Paulo sempre existiu com as marchinhas, com as bandas, mas com esses
blocos, fazendo um carnaval similar ao que acontece nas grandes capitais, ou um
carnaval formatado, isso é uma grande novidade para São Paulo, mas está
totalmente relacionado ao investimento. Existe bloco sem patrocínio? Existe
bloco sem espaço, sem estrutura para continuar, que não seja sustentável?
Existe. Mas os grandes blocos estão trazendo grandes massas para as ruas e têm
alto investimento para o evento.
Fonte: Por Andrea DiP,
Claudia Jardim, Ricardo Terto, Stela Diogo, Ana Alice de Lima, da Agencia
Pública
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