Roberto
Amaral: Como deter o avanço da direita?
Os
números das eleições parlamentares da Alemanha confirmam o cenário antevisto
pela unanimidade dos analistas, tão claras eram as evidências do crescimento da
extrema-direita e do neonazismo, que lá floresceu para incendiar o mundo e
construir uma era de horror. Agora, com matizes tirados da modernidade,
ressurge ameaçador, empolgando majoritariamente a Europa Ocidental, em crise
econômica, política e mesmo de identidade. O neonazismo é uma doença que nem a
guerra, nem a fome, nem a barbárie dos campos de concentração conseguiram
erradicar. Nascida com a crise de 1929-1930, recrudesce com o esgotamento
capitalista e a falência das alternativas até aqui cogitadas.
Lá e
cá, sempre que a esquerda, na busca do voto conservador (ou da governança,
governabilidade, composição, conciliação, ou disso ou daquilo), abandona seu
leito natural e se alia à direita – muitas vezes subsumindo seu discurso –, é
esta quem avança eleitoralmente e, principalmente, vence politicamente. Hoje, a
direita dirige o discurso planetário e é vitoriosa do ponto de vista
ideológico, pois seus valores se fazem presentes em todo o mundo, instalando-se
no pensar, no formular e no fazer dos adversários históricos, que assim se
transformam em reprodutores inconscientes dessa ideologia.
O
capitalismo, além de dominar o aparato militar, avança sobre corações e mentes:
o Estado de bem-estar social, promessa da social-democracia do pós-guerra, foi
substituído pelo neoliberalismo. O indivíduo toma o lugar da sociedade. Os EUA,
em declínio, reivindicam a unipolaridade, e o trumpismo vitorioso é a voz da
“nova” ordem mundial: belicismo, intolerância, expansionismo, avanço do
sionismo, nacionalismo excludente, racismo desabrido.
A
ascensão de Hitler em 1933 foi alimentada pela crise econômica que chegara ao
seu clímax em 1930, mas foi facilitada pelo recuo da social-democracia.
Doutrinariamente oportunista, essa corrente viu na ascensão do futuro Führer um
meio de derrotar seus inimigos figadais: os comunistas. Hitler esmagou a ambos.
O
fracasso do governo de centro-esquerda (SPD) semeou o crescimento dos
neonazistas nas eleições deste ano, assegurando à AfD seu resultado mais
expressivo desde sua fundação, em 2013, e garantindo o retorno da direita
(CDU/CSU) ao posto que Angela Merkel controlou durante dezesseis anos.
<><>
A direita capitaliza as frustrações populares.
As eleições alemãs expuseram, mais
uma vez, o avanço das forças reacionárias caminhando pelo terreno deixado livre
pela esquerda tradicional.
Quando um lado recua incondicionalmente
e não como condição preparatória para o ataque, esse movimento deixa de ser
tático: cada recuo torna-se condicionante do próximo. O outro lado, em
contraste, negocia cada recuo seu; recua quando é necessário, taticamente, para
evitar ou minimizar perdas – ou ainda para tomar impulso e voltar a avançar.
Quando as tropas russas de
Kutouzov, na campanha de 1812, abriram caminho para o ingresso do exército
napoleônico, não estavam de fato recuando, mas se preparando para uma ofensiva:
a Batalha de Borodino. Derrotados no front de Stalingrado, em
1943, os exércitos nazistas recuavam sob o peso da grande derrota. Não era um
recuo tático, desejado como artimanha, mas o fim da linha.
Em 1938, no regresso a Londres
após o Acordo de Munique, Neville Chamberlain, primeiro-ministro britânico,
declarava que a Europa havia conquistado a paz. Mas os fatos mostrariam que a
capitulação do Reino Unido simplesmente oferecia mais tempo ao nazismo para
preparar-se para a guerra. Já no ano seguinte, a Alemanha avançava sobre os
Sudetos, na então Tchecoslováquia. O que se seguiu é conhecido.
Nossa história também registra uma
sucessão de recuos aparentemente táticos que se converteram em derrotas
estratégicas. Na contemporaneidade, é exemplar o recuo das forças progressistas
em 1961, ao concordarem com a reforma constitucional negociada entre Tancredo
Neves e os militares sediciosos, que esvaziava os poderes do presidente da
República, quando a nação, de pé e nas ruas, clamava por avanço. Ali, com nosso
recuo, começava a construção do golpe de 1964 e o avanço da direita comandado
pelas baionetas.
O crescimento da direita, onda que
percorre o mundo, é fruto da crise do capitalismo (como nos anos 1920-1940)
somada ao desencanto das grandes massas com governos de esquerda e
centro-esquerda que falham em resolver seus problemas. O quadro se agrava
quando a esquerda abdica da luta concreta.
Nas últimas eleições alemãs, confirmando todos os prognósticos, o fracasso do
governo da social-democracia de Scholz foi o outro lado do assustador
crescimento da direita, que agora chega também à América do Sul e se instala
confortavelmente entre nós, alimentada pelos primeiros passos do trumpismo
arrogante no governo do mais poderoso e belicoso império moderno. A direita de
Friedrich Merz (CDU/CSU) e Merkel (que governou entre 2005 e 2021) sagrou-se
majoritária, com 28,6% dos votos, os quais, somados aos 20,8% conquistados pela
direita fascista (AfD), totalizam 49% dos votos e das cadeiras no Parlamento. O
nome do novo primeiro-ministro já foi anunciado: Friedrich Merz, líder da CDU.
Se a grande vitória sorriu para a
direita, o grande perdedor foi o SPD, partido da social-democracia, até aqui
liderado por Olaf Scholz, que obteve apenas 16,4%, uma queda vertiginosa de 50%
em relação à última eleição. Outro partido que perdeu substância eleitoral foi
o Grüne (Verdes), que mais definha quanto mais se aproxima da direita. Obteve
8,8% dos votos, uma queda de 38% em comparação com os números de 2021. Se
somarmos os votos da direita tradicional (CDU/CSU), liderada por Friedrich Merz
(28,6%), aos votos dados à extrema-direita neonazista da AfD, liderada por
Alice Weidel (20,8%), vemos que 49,2% do eleitorado alemão se alinhou com a
direita e extrema-direita nesta eleição. A direita nazista obteve seus maiores
ganhos na antiga RDA, e no Oeste da RFA, sua área mais pobre.
Seria bom que a esquerda brasileira se pusesse a pensar sobre esses números.
Entretanto, é preciso registrar
que a extrema-direita teve um grande salto: cresceu nada menos que 79,5% no
apoio do eleitorado, dobrando sua bancada no Bundestag. E a esquerda? O Die
Linke, apesar de possuir, ainda, uma pequena bancada, cresceu 41%. Aliás, nesta
eleição, cresceram apenas a extrema-direita (AfD) e a esquerda socialista (o
citado Die Linke), ou seja, as forças que não tomaram emprestado ao adversário
seus programas.
Entre nós, o crescimento da direita – e, consequentemente, a crise das
esquerdas – é uma constante desde julho de 2013. Desde então, a perplexidade
domina as reflexões. Em 2022, um grande arco de alianças permitiu, com
dificuldade, deter o avanço do neofascismo com a eleição de Lula, mas não
ofereceu meios para a construção de uma maioria política. E a intentona de
janeiro de 2023 (ainda não totalmente desvelada) demonstra o nível de
infiltração do extremismo de direita nas estruturas do Estado, a começar pelas
forças armadas.
Nas eleições que garantiram o
retorno de Lula à Presidência, o candidato da direita obteve, no segundo turno,
49,1% dos votos. A esquerda foi derrotada na maioria dos governos estaduais que
disputou, perdeu nas eleições para a Câmara dos Deputados (80 cadeiras num
coletivo de 513) e no Senado conquistou apenas seis das 27 em disputa. Assim, o
governo nasce minoritário e refém de uma aliança parlamentar conservadora, na
qual fisiologismo é mato. Esse arranjo instala, sem reforma constitucional e
sem consulta à soberania popular, um estranho “presidencialismo”, mais que
mitigado, no qual o Congresso controla a governança por meio do controle da
elaboração do orçamento da União e da aplicação das verbas públicas (pela qual
não tem, contudo, qualquer responsabilidade) por um sistema esdrúxulo de
emendas.
Limitado politicamente e
condicionado pela maioria conservadora tanto do ponto de vista político quanto
programático, o nosso é um governo ainda – ainda! – indefinido. Não podendo ser
um projeto de centro-esquerda, trata-se de um governo por ser – e cada vez mais
próximo de um pleito decisivo para os rumos do país.
As pesquisas de opinião pública
registram a desaprovação do governo, a queda da popularidade de Lula e a
ascendência do pensamento de direita, que já se fazia sentir desde as eleições
de 2018. Essas mesmas pesquisas (vide 163ª Pesquisa CNT de Opinião, 24/02/2025)
mostram que 31,8% do eleitorado se declara de direita, 18,8% de esquerda e
16,3% “de centro, centro-direita e centro-esquerda”. Agora, são os números que
expõem a disputa que não conseguimos enfrentar: a batalha ideológica, a
construção de um pensamento próprio e a defesa de nossas teses.
Uma das formas de ajudar o governo
a sair das cordas é a esquerda retomar o proselitismo e assumir a ação
política. Uma das formas de o governo ajudar a esquerda e o movimento
democrático-progressista de um modo geral é abandonar o taticismo estéril, o
enredamento numa governabilidade duvidosa, e construir um projeto estratégico
claro. A experiência mostra que jamais avançamos – e jamais avançaremos –
governados no pensamento e na ação por um projeto de conciliação. Este tem sido
o principal instrumento ideológico da classe dominante para a conservação
do statu quo, do qual depende sua sobrevivência. Mas a esquerda
deve ser, sempre, movimento, ação e mudança.
Há sempre uma esperança. Desta
vez, precisamos olhar para o fracasso da centro-esquerda alemã, considerar a
ascensão (embora severina) da esquerda socialista (buscando entendê-la),
arregaçar as mangas e focar no enfrentamento à direita, com discurso e
organização adequados.
¨ “Temos a pior ideologia dominante, no
pior momento possível”, afirma George Monbiot
“Imaginemos que os habitantes da União Soviética nunca
tivessem ouvido falar de comunismo. É mais ou menos assim que estamos no
momento: a ideologia dominante de nosso tempo, que afeta quase todos os
aspectos de nossas vidas, não tem nome para a maioria de nós. Se você a
menciona, provavelmente, será ignorado pelas pessoas ou, então, reagirão com
uma mistura de perplexidade e desdém: “O que você quer dizer? O que é isso?””.
O primeiro parágrafo de A doutrina invisível:
a história secreta do neoliberalismo é um punhal profundo, uma
interpelação incômoda, mas necessária, aos milhões de cidadãos que se opõem a
um capitalismo selvagem que, mais do que nunca, ameaça todos os
pilares das democracias modernas. Nas primeiras
vinte páginas, seus autores, o jornalista britânico George Monbiot e
o cineasta estadunidense Peter Hutchison, nos dão várias bofetadas. A mensagem seria: como
esperamos deter a ascensão dos Trumps e os Milei,
se nem sequer conhecemos a ideologia – seus postulados, seus lobbies, seus
mecanismos – que os impulsiona? “As crises acontecem, mas não compreendemos
suas raízes comuns. Não conseguimos reconhecer que todos os desastres surgem ou
são agravados pela mesma ideologia coerente, uma ideologia que tem, ou ao menos
tinha, um nome. “Qual pode ser o poder maior do que operar sem um nome?”,
questionam. Os autores definem o neoliberalismo como “uma ideologia
cuja crença central é que a competição é a característica que define a
humanidade”. É uma doutrina que nos apresenta como “gananciosos e egoístas”,
algo nada ruim, porque essa ganância e egoísmo “iluminam o caminho para
melhorar a sociedade, gerando a riqueza que acabará enriquecendo a todos”. Sentado
no escritório de sua casa em Londres, Monbiot – jornalista, estudioso, escritor,
ambientalista e ativista político, a quem Nelson Mandela entregou um
Prêmio Global das Nações Unidas por ser um
destacado defensor ambiental – aceita a proposta de apresentar o fio condutor
do livro. Admite que está preocupado com a apropriação da palavra “liberdade”
pelos neoliberais. O autoritarismo presente para ocultar que estamos
diante de um sistema econômico “que leva ao colapso ambiental”. Pede foco no
triângulo formado por fascismo, neoliberalismo e redes
sociais – “pensávamos que os meios de comunicação tradicionais eram ruins
o suficiente, mas em comparação a Elon Musk ou Mark Zuckerberg, os empresários
dos meios de comunicação parecem dirigir uma clínica de yoga”, ironiza –, e
convida para a construção de “contranarrativas eficazes” para lutar contra este
monstro enorme.
<><> Eis a entrevista.
·
Poucas vezes na história moderna convivemos com tantas crises
simultâneas: crise das democracias liberais, crise climática, crise da
desinformação, crise da saúde pública. Existe alguma dessas crises que não seja
influenciada pelo neoliberalismo?
Acredito que o neoliberalismo contribuiu
para todas elas. Não é a única causa. Há outros sistemas que também
contribuíram para essas crises. No entanto, sem dúvidas, o neoliberalismo as acelerou e
exacerbou. O problema é que quando mais precisamos de uma ação política eficaz
para enfrentar todas essas crises, o neoliberalismo nos diz que
os governos não existem para produzir qualquer ação política eficaz. Muito pelo
contrário. Os governos devem ficar de lado e não estorvar. Os governos devem permitir
que o poder econômico faça o que quiser. Os governos devem derrubar as
proteções públicas e todas aquelas regulamentações que incomodam o poder
econômico. Temos a pior ideologia dominante, no pior momento possível.
·
Por que essa ideologia dominante é tão invisível?
O neoliberalismo fez um esforço muito grande e deliberado para
disfarçar suas ideias. Desde aproximadamente meados dos anos 1950, os
pensadores neoliberais pararam de usar o termo neoliberalismo. De fato, não
usaram nenhum termo para se descreverem, pois queriam criar a impressão de que
estavam descrevendo a ordem natural. É assim que o mundo funciona, é assim que
a seleção natural funciona. Para o neoliberalismo, os seres humanos são egoístas e gananciosos. Não só
temos que aceitar e abraçar isto, pois o egoísmo e a ganância tornarão todos
mais ricos e, por um efeito cascata, o dinheiro chegará aos pobres. No entanto,
graças a um amplo leque de estudos científicos, sabemos que os seres humanos
não são primordialmente egoístas e gananciosos, exceto uma pequena proporção
que chamamos de psicopatas. A maioria de nós tem algo de egoísmo e ganância,
mas outros valores são mais importantes para nós, como a empatia e o altruísmo,
a comunidade, a família, a pertença e a bondade para com os outros. Queremos um
mundo melhor para nós, mas também para as outras pessoas. No entanto, o neoliberalismo nos diz que
somos psicopatas e que essa é a nossa única maneira de ser.
·
Estamos entrando em uma nova fase do neoliberalismo? A Argentina, por
exemplo, teve um governo com essa ideologia nos anos 1990, o de Carlos Menem.
Como um personagem tão disruptivo como Javier Milei se encaixa?
Milei é um exemplo clássico de neoliberalismo. Chegou ao poder
com a ajuda de uma rede neoliberal, a Rede Atlas, que coordena as atividades
dos think tanks neoliberais de todo o mundo. Eles forneceram
grande parte de sua política, de sua mensagem e seu marketing.
Vemos um esforço coordenado a nível mundial, apoiado por algumas das pessoas e
corporações mais ricas do planeta, para implementar uma forma específica de
política. A Argentina é agora um
exemplo clássico de como esse sistema funciona e Milei é um exemplo perfeito de um político
neoliberal que corta o Estado de bem-estar social, que destrói os serviços públicos, que
abre os recursos às corporações, que derruba regulamentações que protegem os
cidadãos comuns. Sua única preocupação é satisfazer o capital e seus
lobistas. Milei representa o
grande sonho neoliberal.
·
Precisa do autoritarismo para enterrar as desigualdades que gerou?
Uma das grandes ironias do neoliberalismo é que aqueles
que primeiro formularam essa ideologia, como Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, disseram que
estavam salvando o mundo do totalitarismo. Afirmavam que qualquer tentativa de gerar ação e
tomada de decisão coletivas, de usar a política para mudar a vida das pessoas,
era um caminho escorregadio em direção ao stalinismo ou ao nazismo. Que isso nos levaria ao totalitarismo. No entanto, como essas políticas
são extremamente impopulares e afetam a maioria dos cidadãos, os Estados
precisam se tornar cada vez mais autoritários. E enquanto desregulamenta a
economia, oprime aqueles que tentam interferir em seu programa pró-capital. Voltemos
ao exemplo da Argentina. Milei diz que defende a liberdade,
fala sempre em liberdade. Contudo, é um
presidente muito autoritário. A liberdade é
uma palavra que o neoliberalismo usa como
arma. Se se opõe ao que eles pedem, você é contra a liberdade. São muito cuidadosos em não
especificar a liberdade para quem,
porque há bem poucas liberdades universais. A liberdade para um grupo é cativeiro
para outro grupo. A liberdade do
chefe para explorar seus trabalhadores é cativeiro para os trabalhadores. A
liberdade da corporação para despejar produtos químicos em um rio é uma perda
de liberdade para as pessoas que vivem daquele rio. Milei e tantos outros líderes políticos
buscam a liberdade dos ricos, o que leva ao cativeiro dos pobres.
·
Como se combate esse triunfo narrativo? A palavra liberdade é muito
poderosa e mobiliza.
Esse triunfo narrativo é muito perigoso. Somos todos a
favor da liberdade. Todos nós
queremos liberdade. E a liberdade é um valor excelente. É um valor que todos
nós devemos buscar. No entanto, devemos reconhecer que a liberdade geral da
sociedade depende da restrição das liberdades de pessoas extremamente poderosas
e destrutivas. Então, quando Elon Musk é
livre, as liberdades em todo os Estados Unidos são amplamente reduzidas. Um caso clássico é o
desmantelamento que está promovendo da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento
Internacional (USAID). O homem mais rico do mundo quer destruir
esta agência. E o resultado é que algumas das pessoas mais pobres do mundo
precisam ficar sem comida, sem remédios, sem a ajuda essencial que necessitam.
Ele é mais livre. Em consequência, eles são menos livres. Então, a liberdade é
sempre um equilíbrio. Se quer libertar a população em seu conjunto, você tem
que restringir muitas atividades do capital.
·
Julia Steinberger, uma estudiosa de referência no movimento climático,
diz que não há vitória possível para o conhecimento científico, caso os
tentáculos do neoliberalismo não sejam desmascarados. Você concorda?
Concordo plenamente. Julia é uma heroína para mim. É uma
pensadora e cientista maravilhosa e uma das poucas que é capaz de
contextualizar a ciência climática politicamente.
O neoliberalismo é fortemente
contra a ciência climática e a
ambiental. Está constantemente buscando caluniá-las, retirar o seu
financiamento, restringi-las. Ajudou a espalhar ficções conspiratórias escandalosas
sobre cientistas do clima, dizendo que pesquisam só por dinheiro. Porque,
como todos sabemos, se você quer ser um bilionário, torne-se um cientista do
clima, assim, um dia você conseguirá até pagar o seu aluguel. Não se torne um
executivo do petróleo porque que não recebem dinheiro algum. Ironia à parte, é
tudo tão ridículo que as pessoas que geram conhecimento valioso por muito pouco
dinheiro são consideradas opressoras. Simplesmente por dizer aos neoliberais
coisas que não querem ouvir: que esse sistema econômico não regulamentado leva
ao colapso ambiental.
·
As redes sociais são o braço comunicativo do neoliberalismo?
Precisamos entender que o capitalismo é muito criativo em seus
ataques à democracia. E encontrou duas ferramentas muito poderosas: o fascismo e o neoliberalismo. Agora, vemos um
híbrido de fascismo e neoliberalismo em figuras
como Trump, Milei ou Victor Orbán, e um de seus instrumentos mais
poderosos são as redes sociais. Pensávamos que os
meios de comunicação tradicionais eram ruins o suficiente. Víamos a Fox News e a Rupert Murdoch como
desproporcionalmente poderosas. No entanto, em comparação a Elon Musk ou Mark Zuckerberg, os empresários
dos meios de comunicação parecem dirigir uma clínica de yoga. Agora, vemos
surgir um conjunto de poderes ainda muito mais perigosos dos que os meios de
comunicação tradicionais. E a razão para isso é que as redes sociais penetram
em nossas vidas de forma muito mais profunda do que os meios de comunicação
tradicionais. Envolvem nossas mentes de forma muito mais eficaz e nos recrutam
como soldados rasos contra nossos próprios interesses.
·
Portanto, mais desinformação, mais neoliberalismo.
A desinformação é essencial para qualquer sistema que atue contra
os interesses da maioria da população. Trata-se de um sistema deliberadamente
desenhado para agir em benefício das pessoas mais ricas do mundo, interesses
que são diametralmente opostos aos interesses da grande maioria dos cidadãos do
mundo. Portanto, sim, a única maneira de manter esse sistema vivo é por meio
da desinformação. O neoliberalismo se sente
muito cômodo no campo da desinformação.
·
Qual o papel da Inteligência Artificial nessa ideologia?
Estamos falando de uma tecnologia que pode ser usada de
forma positiva e negativa, mas que não deixa de ser uma tecnologia muito
ameaçadora. Atualmente, pode ser usada para nos manipular em um grau ainda mais
sofisticado, com um nível superior ao que até agora as ferramentas informáticas
padrão utilizaram. Isso representa uma ameaça adicional. Tornará muito mais
fácil fazer vídeos deepfake, por exemplo, e que a reputação de
muitas pessoas que lutam contra essa ideologia seja destruída por esses vídeos.
Em definitivo, a IA vai gerar uma
proliferação de desinformação muito maior
do que a que vimos até agora.
·
Quais são os elementos que trazem esperança, se existem, para pensar que
o neoliberalismo pode ser derrotado?
Uma coisa que aprendi nesses 40 anos em que trabalho
como jornalista e ativista é que nunca se sabe de onde surgirá a esperança. Alguns anos atrás, eu estava me
sentindo muito deprimido pelos problemas climáticos. Pensava que ninguém conseguiria lidar com
isso, que nada iria mudar. De repente, uma estudante de 15 anos se senta fora
do parlamento sueco e tudo começa a mudar. Os seres humanos são infinitamente
inventivos. Temos um amplo leque de ferramentas à nossa disposição. O que não
está bem é que nos tornamos muito passivos. Não conseguimos desenvolver
contranarrativas eficazes. Não conseguimos desenvolver uma história que
explique para onde vamos e como chegaremos lá. Ficamos muito presos ao passado,
obcecados com triunfos passados. Não há como voltar na história com uma
política como esta. Temos que desenvolver novos sistemas, novos sistemas de
pensamento, novas ideologias. E podemos aprender coisas com a forma como os
neoliberais operaram. Eles entenderam como criar uma mudança de sistema. E é a
mudança de sistema que devemos buscar. Nosso livro é uma contribuição para
pensarmos no que podemos fazer para acabar com todas essas crises que estamos
atravessando.
Fonte: Brasil
247/IHU
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