‘A violência gera
lucro ao converter vidas e corpos em mercadorias’, afirma Sayak Valencia
A violência não é só
consequência de um capitalismo insustentável – ela é um de
seus motores essenciais. Este é o recorte de Capitalismo
Gore, livro em que a teórica e transfeminista mexicana
Sayak Valencia expõe as relações cínicas entre neoliberalismo, narcotráfico e
patriarcado. O texto chega agora ao Brasil pela editora Sobinfluência, em
pré-venda, com lançamento previsto para este mês.
Se você acha que já viu de tudo quando se trata de distopia, espere até
entender como a violência, em sua forma mais absurda, virou commodity,
alimentando não apenas o crime organizado, mas também o entretenimento global e
os discursos políticos de extrema direita.
De acordo com Sayak, o sistema não apenas se beneficia do sangue
derramado como precisa dele para se manter ativo. Ela expõe, assim, como
assassinatos, tortura e massacres são incorporados à mecânica produtiva,
criando nichos de mercado e consolidando novas possibilidades de exploração.
A autora, que cresceu em Tijuana, no olho do furacão da violência narco,
desenvolveu o conceito de “capitalismo gore” para descrever esse círculo
vicioso onde corpos são consumidos e descartados como bens transacionáveis. O
termo “gore” vem do inglês e é usado para descrever cenas de violência extrema,
com sangue e mutilação, sendo frequentemente associado a filmes e literatura de
horror. A violência, em sua análise, deixa de ser um acidente e passa a ser uma
engrenagem formatada, uma estratégia de poder.
Do cartel mexicano ao Vale do Silício, do extermínio de populações
racializadas à estetização da brutalidade nas redes sociais e no audiovisual,
tudo está interligado.
Na entrevista a seguir, Sayak Valencia detalha essas conexões e fala da
interseção entre neoliberalismo, necropolítica e resistência transfeminista.
Para ela, se há alguma esperança de escapar desse pesadelo, está nas fissuras,
nas alianças interseccionais e nas práticas de cuidado que subvertem o
espetáculo de dentro para fora.
LEIA A ENTREVISTA:
·
Como você se define
politicamente? Poderia contar um pouco sobre como suas experiências pessoais a
levaram a defender e professar as ideias pelas quais luta?
Sayak Valencia – Eu
me defino como transfeminista. Entendo o prefixo “trans” em seu sentido
etimológico de movimento, portanto, para mim, o transfeminismo é a ampliação do
sujeito político dos feminismos, incluindo a justiça social.
Minha militância transfeminista surge em resposta à violência
necropolítica contra mulheres cis e trans, assim como contra sujeitos
feminizados em todos os lugares, especialmente nas fronteiras do mundo. O
transfeminismo no qual milito considera os estados de trânsito de gênero,
migração, mestiçagem, vulnerabilidade, raça e classe como elementos
transversais para formar alianças emancipatórias contra a violência cis-hetero-patriarcal
e racista dirigida a todos os corpos.
Vale destacar que nasci e vivo em uma fronteira, Tijuana, e, como pessoa
fronteiriça, sei que qualquer aliança que não seja interseccional nos leva a
repetir os antigos padrões do poder (necro)patriarcal.
·
Como você chegou a essa
formulação do conceito de ‘capitalismo gore’ e quais foram as principais
influências teóricas para desenvolvê-lo?
“Capitalismo gore” é uma proposta à qual cheguei durante a elaboração da
minha tese de doutorado, combinando minhas vivências na fronteira de Tijuana —
onde o narcotráfico, o machismo e a violência necropolítica são cotidianos —
com um referencial crítico baseado nos estudos feministas e de gênero, na
literatura, no decolonialismo e na perspectiva marxista feminista.
Meu trabalho se caracteriza pela transdisciplinaridade, e minhas
principais influências teóricas vieram de feministas mexicanas como Cherrie
Moraga, Chela Sandoval e Gloria Anzaldúa, além de pensadoras afro-americanas
como Angela Davis. Também me inspirei na leitura atenta de Achille Mbembe,
Michel Foucault, Rosi Braidotti, Judith Butler e Montserrat Galcerán.
Com esse referencial crítico, busquei formular uma nova maneira de
enunciar a relação entre violência, capitalismo, gênero e contextos neocoloniais
no cenário fronteiriço do norte do México.
·
No livro, você argumenta
que a violência se tornou um produto dentro do capitalismo neoliberal. Como
esse processo de mercantilização da violência se manifesta?
A violência, como já apontava Marx e como sustenta Silvia Federici, é
uma forma altamente produtiva de economia. No entanto, sua instrumentalização
muda conforme o tempo e o contexto. No cenário contemporâneo, essa violência
gera lucro para o mercado (necro)liberal ao converter vidas e corpos em mercadorias.
Alguns se tornam rentáveis por meio do extermínio — como vimos
recentemente em Gaza —, enquanto outros são explorados por um cerco estético
disseminado pelos meios de comunicação e redes digitais.
Esse processo normaliza a violência e cria nichos de consumo,
especialmente no entretenimento e na cultura visual, onde assassinatos,
sequestros, estupros e outras atrocidades são promovidos como mensagens
centrais. Assim, a violência não apenas se torna conteúdo desejável, mas também
gera um consenso social que legitima sua reprodução e consumo.
·
Você sugere que a lógica
do narcotráfico e a do estado neoliberal são semelhantes. Poderia explicar
melhor essa relação e como essas estruturas se retroalimentam?
A lógica do estado (pelo menos no México) se baseia em uma estrutura
machista, onde o Pater Familias se coloca como proprietário
das vidas sob seu domínio.
Durante décadas, o estado mexicano construiu ativamente um mito da
masculinidade guerreira, desafiadora, heterossexual, cisgênero, machista e
violenta, que reivindica a posse sobre os corpos de mulheres e pessoas
racializadas. Esse discurso foi disseminado socialmente como um símbolo de
orgulho nacional.
Nessa narrativa, sucesso e legitimidade social se vinculam à ideia do
“homem que se faz por si mesmo”, um princípio que também está presente no
neoliberalismo, que prega o empreendedorismo individual a qualquer custo —
inclusive na criação de empresas criminosas. O narcotráfico herda essa lógica e
a reforça, incorporando a necessidade de ser provedor a qualquer custo como um
meio de ascensão social.
Essa interseção entre machismo, violência, necro-estado e narcotráfico
no neoliberalismo não é velada, mas explícita, manifestando-se na
violência gore que se espalha tanto no crime organizado quanto
na política internacional.
Isso se reflete nas políticas cínicas, misóginas e violentas de governos
fascistas e ultraconservadores, como os de Donald Trump, Javier Milei e,
anteriormente, Jair Bolsonaro, além do fortalecimento de figuras tecnofeudais
como Elon Musk.
·
Você critica a
masculinidade vinculada à cultura do narco. De que maneira a construção de
gênero contribui para a perpetuação da violência no México e no mundo?
Minha crítica se direciona especialmente à necromasculinidade, ou seja,
não a todas as masculinidades, mas àquela que transforma a violência — tanto de
baixa quanto de alta intensidade — em uma ferramenta de trabalho e de governo
sobre os corpos mais vulneráveis.
Essa crítica não é apenas uma denúncia, mas também um convite para
refletir sobre como podemos construir e visibilizar outras formas de
masculinidade que não sigam o mandato do domínio e da violência, que hoje
parecem ser a base da masculinidade machista. Acredito que já existem formas
mais saudáveis e justas de viver a identidade masculina, e é essencial
torná-las visíveis como alternativas reais para as novas gerações.
·
Falando especificamente
sobre o papel da mídia e do entretenimento, como você acredita que séries,
filmes e videogames romantizam ou problematizam a cultura do narco? E como os
meios de comunicação influenciam a percepção global sobre essas dinâmicas de
poder e violência?
É evidente que muitos dos meios de comunicação, tanto tradicionais
quanto digitais, funcionam como grandes máquinas de controle e propaganda. Os
conteúdos que distribuem, seja nas notícias diárias ou no entretenimento, não
são neutros; pelo contrário, ajudam a posicionar, normalizar e reforçar
discursos que glamourizam a violência e a morte como formas de trabalho.
Nesse sentido, considero fundamental exigir responsabilidade e ética dos
grandes conglomerados de informação, para que não contribuam com a
desinformação e mostrem de forma crítica as verdadeiras consequências sociais
da violência.
·
O que você pensa sobre o
conceito de empreendedorismo promovido pelo neoliberalismo e sua relação com a
precarização dos direitos trabalhistas? Como essa visão se aplica ao contexto
latino-americano?
Sem dúvida, há uma conexão entre o discurso do empreendedorismo
neoliberal e a desregulamentação dos direitos trabalhistas. No entanto, a
questão não é simples nem de resposta rápida, pois o trabalho tradicional ainda
existe, embora em condições cada vez mais precárias, enquanto o trabalho
desregulado é glamourizado pelo neoliberalismo. Essa lógica impõe uma estética
que mistura trabalho, vida e lazer como se fossem indistinguíveis.
O ideal máximo dessa visão exalta a ideia de ser “empresário de si
mesmo”, incentivando a adesão ao mundo dos influenciadores, podcasters,
instagramers e youtubers como uma fórmula “mágica” de ascensão financeira com
mínimo esforço. Contudo, essa promessa também empurra populações marginalizadas
para os circuitos da economia informal e, muitas vezes, para a economia
criminal, ampliando desigualdades e fragilizando ainda mais os direitos
sociais.
·
As marcas e empresas
incorporaram, nos últimos anos, discursos feministas, antirracistas e
libertários em geral em suas campanhas publicitárias. Você vê isso como uma
oportunidade de transformação ou apenas como mais uma faceta do espetáculo
distópico do mercado?
Procuro não adotar uma visão dicotômica sobre nenhum fenômeno e vejo que
ambas as coisas acontecem. Explico: a instrumentalização das demandas
progressistas pelo mercado cria um consenso ambíguo, pois, ao mesmo tempo que
transforma essas pautas em produtos lucrativos sem necessariamente aplicá-las
na realidade social, também pode disseminá-las em larga escala. Isso pode
servir como uma semente para despertar uma sensibilidade diferente, mais justa,
especialmente entre os consumidores mais jovens, que talvez não tivessem acesso
a essas discussões por outros meios.
Com a vitória de Donald Trump e a ascensão da
extrema direita na política mundial, como essa crise global reforça ou altera
sua análise sobre a política da morte?
Basicamente, com o avanço das ultradireitas no mundo, vemos o capitalismo gore
se manifestar de forma ainda mais explícita, sem disfarces, inclusive em
contextos que antes pareciam democráticos, como o Norte Global.
No caso de Trump, fica evidente que o autoritarismo não apenas retrocede
em termos de liberdades sociais, mas também se torna letal para populações
vulneráveis, como imigrantes, pessoas racializadas, pessoas trans, mulheres e
diversas dissidências de gênero e sexualidade.
·
Você acredita que as
redes sociais e os coletivos autônomos estão conseguindo criar alternativas
eficazes para combater essa lógica de poder e violência?
Acredito que diversas formas de organização coletiva, incluindo os
movimentos feministas, antirracistas, indígenas em defesa do território e pelos
direitos sexuais e reprodutivos têm construído formas de resistência e
transformação na micropolítica.
Esses movimentos foram capazes de criar gramáticas e léxicos que hoje
ecoam no discurso público, influenciando (em diferentes graus) a consciência
sobre justiça social. Seus impactos não são medidos pelos padrões de sucesso
neoliberal, mas pela construção de um senso comum voltado à justiça para as
maiorias.
Prova disso é a reação neoconservadora, que muitas vezes se apropria de
conceitos progressistas para distorcê-los, como Milei fez com a ideia de
“liberdade”, utilizando-a para justificar um projeto malthusiano distante da
democracia e da justiça social.
·
Seu livro apresenta um
diagnóstico contundente sobre o capitalismo gore. Existe um caminho possível
para escapar desse ciclo de violência e exploração?
As alternativas que existem e têm existido há séculos são políticas, mas
não se equiparam à política tradicional de partidos, pois fazem política a
partir de outros lugares e apostam pela sustentabilidade da vida e pela justiça
social. Exemplos disso são os movimentos pela terra, os movimentos
antirracistas, os movimentos camponeses e operários, os movimentos
(trans)feministas, entre outros.
Quanto às suas estratégias de organização, em alguns casos são
micropolíticas, comunitárias e afetivas. Essas alternativas são políticas no
sentido de que tecem laços, criam uma ética do cuidado e são contextuais, ou
seja, não funcionam da mesma maneira para todos os territórios. São movimentos
de longo prazo que estão tecendo a sustentabilidade da vida em seus próprios
contextos e buscando garantir que a memória das lutas e suas conquistas não
desapareçam.
Não é um problema que não sejam movimentos totais, mas sim
interseccionais, pois, como vimos, todo projeto totalitário e identitário
levado ao extremo pode desembocar em um autoritarismo desenfreado que continua
alimentando e expandindo o capitalismo gore no mundo contemporâneo.
Fonte: Por Eduardo
Ribeiro, em The Intercept
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