segunda-feira, 10 de março de 2025

‘A violência gera lucro ao converter vidas e corpos em mercadorias’, afirma Sayak Valencia

A violência não é só consequência de um capitalismo insustentável – ela é um de seus motores essenciais. Este é o recorte de Capitalismo Gore, livro em que a teórica e transfeminista mexicana Sayak Valencia expõe as relações cínicas entre neoliberalismo, narcotráfico e patriarcado. O texto chega agora ao Brasil pela editora Sobinfluência, em pré-venda, com lançamento previsto para este mês.

Se você acha que já viu de tudo quando se trata de distopia, espere até entender como a violência, em sua forma mais absurda, virou commodity, alimentando não apenas o crime organizado, mas também o entretenimento global e os discursos políticos de extrema direita. 

De acordo com Sayak, o sistema não apenas se beneficia do sangue derramado como precisa dele para se manter ativo. Ela expõe, assim, como assassinatos, tortura e massacres são incorporados à mecânica produtiva, criando nichos de mercado e consolidando novas possibilidades de exploração.

A autora, que cresceu em Tijuana, no olho do furacão da violência narco, desenvolveu o conceito de “capitalismo gore” para descrever esse círculo vicioso onde corpos são consumidos e descartados como bens transacionáveis. O termo “gore” vem do inglês e é usado para descrever cenas de violência extrema, com sangue e mutilação, sendo frequentemente associado a filmes e literatura de horror. A violência, em sua análise, deixa de ser um acidente e passa a ser uma engrenagem formatada, uma estratégia de poder.

Do cartel mexicano ao Vale do Silício, do extermínio de populações racializadas à estetização da brutalidade nas redes sociais e no audiovisual, tudo está interligado.

Na entrevista a seguir, Sayak Valencia detalha essas conexões e fala da interseção entre neoliberalismo, necropolítica e resistência transfeminista. Para ela, se há alguma esperança de escapar desse pesadelo, está nas fissuras, nas alianças interseccionais e nas práticas de cuidado que subvertem o espetáculo de dentro para fora.

LEIA A ENTREVISTA:

·        Como você se define politicamente? Poderia contar um pouco sobre como suas experiências pessoais a levaram a defender e professar as ideias pelas quais luta?

Sayak Valencia – Eu me defino como transfeminista. Entendo o prefixo “trans” em seu sentido etimológico de movimento, portanto, para mim, o transfeminismo é a ampliação do sujeito político dos feminismos, incluindo a justiça social. 

Minha militância transfeminista surge em resposta à violência necropolítica contra mulheres cis e trans, assim como contra sujeitos feminizados em todos os lugares, especialmente nas fronteiras do mundo. O transfeminismo no qual milito considera os estados de trânsito de gênero, migração, mestiçagem, vulnerabilidade, raça e classe como elementos transversais para formar alianças emancipatórias contra a violência cis-hetero-patriarcal e racista dirigida a todos os corpos. 

Vale destacar que nasci e vivo em uma fronteira, Tijuana, e, como pessoa fronteiriça, sei que qualquer aliança que não seja interseccional nos leva a repetir os antigos padrões do poder (necro)patriarcal.

·        Como você chegou a essa formulação do conceito de ‘capitalismo gore’ e quais foram as principais influências teóricas para desenvolvê-lo?

“Capitalismo gore” é uma proposta à qual cheguei durante a elaboração da minha tese de doutorado, combinando minhas vivências na fronteira de Tijuana — onde o narcotráfico, o machismo e a violência necropolítica são cotidianos — com um referencial crítico baseado nos estudos feministas e de gênero, na literatura, no decolonialismo e na perspectiva marxista feminista. 

Meu trabalho se caracteriza pela transdisciplinaridade, e minhas principais influências teóricas vieram de feministas mexicanas como Cherrie Moraga, Chela Sandoval e Gloria Anzaldúa, além de pensadoras afro-americanas como Angela Davis. Também me inspirei na leitura atenta de Achille Mbembe, Michel Foucault, Rosi Braidotti, Judith Butler e Montserrat Galcerán. 

Com esse referencial crítico, busquei formular uma nova maneira de enunciar a relação entre violência, capitalismo, gênero e contextos neocoloniais no cenário fronteiriço do norte do México.

·        No livro, você argumenta que a violência se tornou um produto dentro do capitalismo neoliberal. Como esse processo de mercantilização da violência se manifesta?

A violência, como já apontava Marx e como sustenta Silvia Federici, é uma forma altamente produtiva de economia. No entanto, sua instrumentalização muda conforme o tempo e o contexto. No cenário contemporâneo, essa violência gera lucro para o mercado (necro)liberal ao converter vidas e corpos em mercadorias. 

Alguns se tornam rentáveis por meio do extermínio — como vimos recentemente em Gaza —, enquanto outros são explorados por um cerco estético disseminado pelos meios de comunicação e redes digitais.

Esse processo normaliza a violência e cria nichos de consumo, especialmente no entretenimento e na cultura visual, onde assassinatos, sequestros, estupros e outras atrocidades são promovidos como mensagens centrais. Assim, a violência não apenas se torna conteúdo desejável, mas também gera um consenso social que legitima sua reprodução e consumo.

·        Você sugere que a lógica do narcotráfico e a do estado neoliberal são semelhantes. Poderia explicar melhor essa relação e como essas estruturas se retroalimentam?

A lógica do estado (pelo menos no México) se baseia em uma estrutura machista, onde o Pater Familias se coloca como proprietário das vidas sob seu domínio. 

Durante décadas, o estado mexicano construiu ativamente um mito da masculinidade guerreira, desafiadora, heterossexual, cisgênero, machista e violenta, que reivindica a posse sobre os corpos de mulheres e pessoas racializadas. Esse discurso foi disseminado socialmente como um símbolo de orgulho nacional.

Nessa narrativa, sucesso e legitimidade social se vinculam à ideia do “homem que se faz por si mesmo”, um princípio que também está presente no neoliberalismo, que prega o empreendedorismo individual a qualquer custo — inclusive na criação de empresas criminosas. O narcotráfico herda essa lógica e a reforça, incorporando a necessidade de ser provedor a qualquer custo como um meio de ascensão social.

Essa interseção entre machismo, violência, necro-estado e narcotráfico no neoliberalismo não é velada, mas explícita, manifestando-se na violência gore que se espalha tanto no crime organizado quanto na política internacional.

Isso se reflete nas políticas cínicas, misóginas e violentas de governos fascistas e ultraconservadores, como os de Donald Trump, Javier Milei e, anteriormente, Jair Bolsonaro, além do fortalecimento de figuras tecnofeudais como Elon Musk.

·        Você critica a masculinidade vinculada à cultura do narco. De que maneira a construção de gênero contribui para a perpetuação da violência no México e no mundo?

Minha crítica se direciona especialmente à necromasculinidade, ou seja, não a todas as masculinidades, mas àquela que transforma a violência — tanto de baixa quanto de alta intensidade — em uma ferramenta de trabalho e de governo sobre os corpos mais vulneráveis.

Essa crítica não é apenas uma denúncia, mas também um convite para refletir sobre como podemos construir e visibilizar outras formas de masculinidade que não sigam o mandato do domínio e da violência, que hoje parecem ser a base da masculinidade machista. Acredito que já existem formas mais saudáveis e justas de viver a identidade masculina, e é essencial torná-las visíveis como alternativas reais para as novas gerações.

·        Falando especificamente sobre o papel da mídia e do entretenimento, como você acredita que séries, filmes e videogames romantizam ou problematizam a cultura do narco? E como os meios de comunicação influenciam a percepção global sobre essas dinâmicas de poder e violência?

É evidente que muitos dos meios de comunicação, tanto tradicionais quanto digitais, funcionam como grandes máquinas de controle e propaganda. Os conteúdos que distribuem, seja nas notícias diárias ou no entretenimento, não são neutros; pelo contrário, ajudam a posicionar, normalizar e reforçar discursos que glamourizam a violência e a morte como formas de trabalho.

Nesse sentido, considero fundamental exigir responsabilidade e ética dos grandes conglomerados de informação, para que não contribuam com a desinformação e mostrem de forma crítica as verdadeiras consequências sociais da violência.

·        O que você pensa sobre o conceito de empreendedorismo promovido pelo neoliberalismo e sua relação com a precarização dos direitos trabalhistas? Como essa visão se aplica ao contexto latino-americano?

Sem dúvida, há uma conexão entre o discurso do empreendedorismo neoliberal e a desregulamentação dos direitos trabalhistas. No entanto, a questão não é simples nem de resposta rápida, pois o trabalho tradicional ainda existe, embora em condições cada vez mais precárias, enquanto o trabalho desregulado é glamourizado pelo neoliberalismo. Essa lógica impõe uma estética que mistura trabalho, vida e lazer como se fossem indistinguíveis.

O ideal máximo dessa visão exalta a ideia de ser “empresário de si mesmo”, incentivando a adesão ao mundo dos influenciadores, podcasters, instagramers e youtubers como uma fórmula “mágica” de ascensão financeira com mínimo esforço. Contudo, essa promessa também empurra populações marginalizadas para os circuitos da economia informal e, muitas vezes, para a economia criminal, ampliando desigualdades e fragilizando ainda mais os direitos sociais.

·        As marcas e empresas incorporaram, nos últimos anos, discursos feministas, antirracistas e libertários em geral em suas campanhas publicitárias. Você vê isso como uma oportunidade de transformação ou apenas como mais uma faceta do espetáculo distópico do mercado?

Procuro não adotar uma visão dicotômica sobre nenhum fenômeno e vejo que ambas as coisas acontecem. Explico: a instrumentalização das demandas progressistas pelo mercado cria um consenso ambíguo, pois, ao mesmo tempo que transforma essas pautas em produtos lucrativos sem necessariamente aplicá-las na realidade social, também pode disseminá-las em larga escala. Isso pode servir como uma semente para despertar uma sensibilidade diferente, mais justa, especialmente entre os consumidores mais jovens, que talvez não tivessem acesso a essas discussões por outros meios.

Com a vitória de Donald Trump e a ascensão da extrema direita na política mundial, como essa crise global reforça ou altera sua análise sobre a política da morte?
Basicamente, com o avanço das ultradireitas no mundo, vemos o capitalismo gore se manifestar de forma ainda mais explícita, sem disfarces, inclusive em contextos que antes pareciam democráticos, como o Norte Global.

No caso de Trump, fica evidente que o autoritarismo não apenas retrocede em termos de liberdades sociais, mas também se torna letal para populações vulneráveis, como imigrantes, pessoas racializadas, pessoas trans, mulheres e diversas dissidências de gênero e sexualidade.

·        Você acredita que as redes sociais e os coletivos autônomos estão conseguindo criar alternativas eficazes para combater essa lógica de poder e violência?

Acredito que diversas formas de organização coletiva, incluindo os movimentos feministas, antirracistas, indígenas em defesa do território e pelos direitos sexuais e reprodutivos têm construído formas de resistência e transformação na micropolítica.

Esses movimentos foram capazes de criar gramáticas e léxicos que hoje ecoam no discurso público, influenciando (em diferentes graus) a consciência sobre justiça social. Seus impactos não são medidos pelos padrões de sucesso neoliberal, mas pela construção de um senso comum voltado à justiça para as maiorias.

Prova disso é a reação neoconservadora, que muitas vezes se apropria de conceitos progressistas para distorcê-los, como Milei fez com a ideia de “liberdade”, utilizando-a para justificar um projeto malthusiano distante da democracia e da justiça social.

·        Seu livro apresenta um diagnóstico contundente sobre o capitalismo gore. Existe um caminho possível para escapar desse ciclo de violência e exploração?

As alternativas que existem e têm existido há séculos são políticas, mas não se equiparam à política tradicional de partidos, pois fazem política a partir de outros lugares e apostam pela sustentabilidade da vida e pela justiça social. Exemplos disso são os movimentos pela terra, os movimentos antirracistas, os movimentos camponeses e operários, os movimentos (trans)feministas, entre outros.

Quanto às suas estratégias de organização, em alguns casos são micropolíticas, comunitárias e afetivas. Essas alternativas são políticas no sentido de que tecem laços, criam uma ética do cuidado e são contextuais, ou seja, não funcionam da mesma maneira para todos os territórios. São movimentos de longo prazo que estão tecendo a sustentabilidade da vida em seus próprios contextos e buscando garantir que a memória das lutas e suas conquistas não desapareçam.

Não é um problema que não sejam movimentos totais, mas sim interseccionais, pois, como vimos, todo projeto totalitário e identitário levado ao extremo pode desembocar em um autoritarismo desenfreado que continua alimentando e expandindo o capitalismo gore no mundo contemporâneo.

 

Fonte: Por Eduardo Ribeiro, em The Intercept

 

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