O Itamaraty na ditadura
militar
A ascensão da extrema direita no Brasil, nos últimos
anos, veio acompanhada de recorrentes tentativas de alterar a narrativa sobre a
ditadura militar (1964-1985). Se no período imediato à redemocratização do
país, na década de 1980, se evidenciou junto à sociedade brasileira a herança
negativa deixada pelos militares, a partir do governo de Jair Bolsonaro, junto
às constantes ameaças à democracia, se acentuaram as investidas para promover
uma imagem positiva daquele período.
As polêmicas que envolvem o inegável sucesso de Ainda estou aqui se constituem
em um exemplo eloquente disso. O filme retrata, sob a perspectiva de Eunice
Paiva, o desaparecimento de seu marido, o ex-deputado Rubens Paiva, morto pelo
regime autoritário. No dia 2 de março, o longa-metragem fez história ao ganhar
o Oscar de melhor filme internacional, fato inédito para o Brasil. Entre
efusivas comemorações do campo progressista e da direita moderada e a produção
de fake
news pela
extrema direita, o fato é que a memória sobre esse período continua sendo alvo
de disputas.
A política externa parece ser exceção quando se trata
das distintas narrativas sobre o regime autoritário, pois existe uma percepção
quase generalizada sobre os seus acertos neste período. Nos 21 anos de governos
militares, o perfil da inserção internacional brasileira se alterou bastante,
não sendo possível falar de uma “política externa do regime militar”. Afinal, o
alinhamento automático aos EUA promovido pelo governo de Castelo Branco
(1964-1967) foi paulatinamente sendo substituído por uma política externa de
teor desenvolvimentista, culminando no pragmatismo responsável do governo de
Ernesto Geisel (1974-1979), que guarda, em seu caráter autônomo e altivo,
similaridades com a política externa dos primeiros dois governos de Luiz Inácio
Lula da Silva (2003-2011).
O Ministério das Relações Exteriores (MRE), também
conhecido como Itamaraty, tem características específicas junto à administração
pública brasileira. O espírito de corpo que marca a sociabilidade entre os
diplomatas fez com que a instituição preservasse uma memória positiva acerca de
sua atuação durante os governos militares, veiculando a ideia de que o
Ministério das Relações Exteriores esteve alheio aos aspectos mais abjetos da
ditadura. A ideia veiculada e corroborada por estudiosos, diplomatas e imprensa
foi a de que o Itamaraty continuou a pautar suas ações pelos interesses do
desenvolvimento nacional, sem se deixar influenciar pelo que ocorria na
política doméstica.
No entanto, na última década, pesquisas realizadas no
âmbito acadêmico e àquelas que resultaram no Relatório Final da Comissão
Nacional da Verdade demonstraram que o suposto distanciamento do Itamaraty da
política doméstica e particularmente do aparato repressivo não existiu. Se a
postura oficial foi a de alheamento ao que se passava no âmbito interno, nos
bastidores o Itamaraty participou da engrenagem repressiva, auxiliando na vigilância
e repressão de brasileiros exilados.
Mas também existiu o outro lado da moeda, ou seja,
diplomatas indesejados e perseguidos pelo regime ditatorial, seja por não
apresentarem uma postura condizente com o perfil ideal do diplomata, ou por
ameaçarem os esquemas de corrupção envolvendo militares e o alto escalão do
governo, como denuncia o caso de José Pinheiro Jobim.
·
Entre a conivência e o apoio
Inspirada nas experiências do Chile e Argentina, a
Comissão Nacional da Verdade foi instituída no Brasil durante o governo da
presidenta Dilma Rousseff (2011-2016) com o objetivo de investigar e esclarecer
as graves violações de direitos humanos cometidas pela ditadura militar
(1964-1985), sendo a própria ex-presidenta uma sobrevivente que foi presa e
torturada durante o regime. Entre suas contribuições mais relevantes, a
Comissão Nacional da Verdade dedicou um capítulo específico aos crimes
cometidos no exterior com o apoio do Ministério das Relações Exteriores,
demonstrando o envolvimento direto do Itamaraty na repressão transnacional e na
perseguição de opositores políticos fora do Brasil.
O relatório
final, divulgado em 2014, fornece provas documentais e testemunhais
fundamentais para o reconhecimento institucional dessas violações, reforçando a
necessidade de preservação da memória histórica e responsabilização dos agentes
envolvidos.
O Centro de Informações do Exterior (CIEX), criado em
1966, foi um dos principais mecanismos de espionagem e repressão utilizados
pela ditadura militar brasileira contra opositores do regime que haviam deixado
o país devido à perseguição política. Vinculado ao Ministério das Relações
Exteriores e ao Serviço Nacional de Informações (SNI), o CIEX foi um centro
clandestino que desempenhou papel crucial no monitoramento de exilados
políticos brasileiros e na cooperação repressiva com outros regimes
autoritários do Cone Sul, especialmente no âmbito da Operação Condor.
Pesquisadores brasileiros da Fundação Getúlio Vargas
(FGV) e da Universidade de São Paulo (USP), junto ao Instituto Norueguês de
Relações Internacionais, realizaram pesquisas que resultaram em um banco de
dados com cerca de 8 mil documentos que demonstram que o Itamaraty monitorou
mais de 17
mil brasileiros no exterior. Apesar da diplomacia brasileira tradicionalmente se
apresentar como neutra diante das políticas de segurança interna, esses
documentos revelam que o Itamaraty estava diretamente envolvido na repressão,
fornecendo informações detalhadas sobre atividades de exilados, dificultando a
emissão de passaportes e concedendo dados estratégicos a outros serviços de
inteligência (PENNA FILHO, 2009, p. 44-45).
O CIEX não operava de forma isolada. Ele era parte da
Comunidade de Informações do Ministério das Relações Exteriores (CI/MRE),
interligado a outros órgãos repressivos do Estado brasileiro, como o CIE
(Centro de Informações do Exército), o Cenimar (Centro de Informações da
Marinha) e o CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) (COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 179). Esses centros trocavam dados sobre a
localização, atividades e contatos de exilados brasileiros na Europa e na
América Latina.
A existência do órgão de espionagem evidencia que o
regime militar possuía um aparato repressivo sistemático e estruturado, com o
Itamaraty como peça-chave na perseguição política dentro e fora do país.
Segundo Balbino (2023, p. 11), o Ministério das Relações Exteriores não apenas
colaborou com o regime militar, mas integrou-se ao aparato repressivo,
fornecendo suporte logístico e burocrático para ações de vigilância e
repressão.
Dentre os alvos do CIEX estavam figuras conhecidas,
como o ex-presidente deposto João Goulart e o ex-governador do Rio Grande do
Sul, Leonel Brizola. O caso de João Goulart é um dos mais emblemáticos.
Documentos apontam que ele foi monitorado de perto pelo CIEX e por serviços de
inteligência de países vizinhos, como Uruguai e Argentina. A preocupação do
regime autoritário era que o ex-presidente estivesse articulando um retorno
político ao Brasil, o que levou à sua constante vigilância e ao cerceamento de
suas movimentações (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 192).
Leonel Brizola, por sua vez, tornou-se alvo prioritário
da espionagem brasileira no exterior, especialmente no Uruguai. Registros
indicam que agentes brasileiros acompanharam suas atividades, enviando
relatórios detalhados sobre suas reuniões políticas e discursos públicos (PENNA
FILHO, 2009).
Outro aspecto relevante foi a repressão aos exilados de
menor expressão pública, mas igualmente considerados “subversivos” pelo regime.
Documentos do CIEX revelam que estudantes, artistas e sindicalistas também eram
alvo de monitoramento constante. Muitos tiveram passaportes negados e foram
impedidos de retornar ao Brasil, enquanto outros foram presos e entregues às autoridades
brasileiras em operações conjuntas com os regimes militares da região (COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 194).
O CIEX também desempenhou um papel fundamental na
chamada Operação Condor, a rede de cooperação repressiva entre as ditaduras do
Cone Sul (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai), que permitia
a troca de informações sobre exilados e facilitava sequestros e assassinatos
(PENNA FILHO, 2009, p. 48-49). Segundo documentos analisados pela Comissão
Nacional da Verdade, o Brasil participou ativamente desse esquema, fornecendo
dados sobre refugiados políticos e auxiliando na captura de opositores nos
países vizinhos (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 220).
Além disso, o apoio do Brasil ao golpe no Chile, em
1973, foi articulado por meio do Itamaraty e outros órgãos do aparato
repressivo. O embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto desempenhou um papel
crucial nesse processo, fornecendo informações estratégicas e apoio logístico
aos militares brasileiros que planejavam a deposição de Salvador Allende. Segundo
Roberto Simon (2021),
o Brasil, sob o comando do presidente militar Emílio Garrastazu Médici, não
apenas auxiliou os conspiradores chilenos nos meses que antecederam o golpe,
mas também contribuiu ativamente para consolidar o regime ditatorial de Augusto
Pinochet.
Assim, o CIEX representou um dos pilares da repressão
política no exterior, demonstrando que a ditadura militar brasileira não
limitou sua ação ao território nacional, mas expandiu sua vigilância e
perseguição a nível internacional. Ao colaborar ativamente com outros regimes
autoritários e ao vigiar ininterruptamente seus opositores, o CIEX contribuiu
para a perpetuação de um sistema de terror que marcou a história recente do
Brasil. A análise de seus arquivos e de suas atividades é essencial para
compreender a extensão da repressão política no período e reforça a importância
de preservar a memória histórica para evitar que tais episódios se repitam. A
ditadura não é “página virada”.
·
Diplomatas indesejáveis
Existiu o outro lado da moeda: a repressão sofrida por
muitos diplomatas que não se adequaram ao comportamento considerado ideal pela
ditadura. Menor em termos quantitativos se comparada a outros ministérios, a
depuração também ocorreu no MRE. Logo após o golpe militar, os ministérios
foram autorizados a iniciar investigações internas para identificar suspeição
ideológica e afastar os servidores críticos ao novo regime.
Em 1964, o Itamaraty obteve especificidade ao poder
criar uma comissão própria, sendo a Comissão de Investigação Sumária (CIS)
conduzida por Vasco Leitão da Cunha, diplomata escolhido por Castelo Branco
para chefiar o MRE. A CIS resultou em 97 diplomatas investigados e 20
exonerados (CARMO, 2018, p. 60).
Em 1968, no auge da repressão política interna, uma
nova comissão foi formada, incidindo sobre condutas consideradas desviantes e
recomendando a exoneração dos homossexuais. Segundo Gessica Carmo, houve a
obrigatoriedade de exames médicos para atestar hábitos e ações íntimas,
colocando esses diplomatas em condições vexatórias (2018, p. 65). Outros foram
afastados por serem boêmios demais e por terem comportamentos avaliados como
inadequados. O caso mais conhecido talvez seja o de Vinicius de Moraes, que foi
afastado e posteriormente integrado aos quadros do Ministério da Educação e
Cultura.
Cabem também algumas considerações sobre o diplomata José
Pinheiro Jobim, vítima do regime militar por esboçar a intenção de registrar um
esquema de corrupção relacionado à construção da Usina de Itaipu. No início da
década de 1960, José Pinheiro Jobim foi designado pelo presidente João Goulart
para conversar com autoridades paraguaias sobre o aproveitamento hidrelétrico
do rio Paraná. O projeto saiu do papel durante os governos militares, mas os
valores empenhados na suntuosa obra foram absurdamente maiores
do que inicialmente se previa.
Em 1979, já aposentado, José Pinheiro Jobim afirmou
junto a um círculo pequeno de conhecidos que estava preparando um livro sobre
as irregularidades na construção da hidrelétrica binacional. Dias depois seu
corpo foi encontrado e mesmo com indícios da farsa montada, a versão oficial
foi a de suicídio. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade, ao reavivar o caso,
reconheceu que o regime foi responsável pela tortura e a morte de José Pinheiro
Jobim. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), em
2018, determinou que sua certidão de óbito fosse retificada, reconhecendo a
morte violenta causada pelo Estado
brasileiro.
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O Ministério das Relações Exteriores entre
a política de governo e a de Estado
Servidores de carreira do Ministério das Relações
Exteriores contribuíram com o aparato repressivo através de uma estrutura
burocrática de proporções grandiosas, no entanto, muitos deles foram vítimas
das arbitrariedades cometidas pela ditadura militar. Os casos aqui apresentados
evidenciam que as explicações polarizadas, que apontam toda a diplomacia
brasileira genericamente como vítima ou como partícipe do aparato repressivo,
não dão conta de uma realidade complexa e multifacetada.
Sendo assim, não se trata de demonizar ou enaltecer de
forma exagerada o Ministério das Relações Exteriores. Como ocorre em qualquer
instituição, os diplomatas são suscetíveis a assimilar interesses provenientes
de espectros políticos e ideológicos distintos, havendo certamente entre eles
os que ficaram satisfeitos em contribuir com a repressão e os que se indignaram
e se arriscaram a combater as arbitrariedades cometidas pelos militares.
O Itamaraty é reconhecido internacionalmente por
formar excelentes quadros que já demonstraram capacidade de representar com
maestria os interesses brasileiros. Nesse sentido, a instituição tem seus
méritos na seta do tempo, ao preservar algumas tradições, como a defesa do
multilateralismo e da solução pacífica de controvérsias. Mas junto às ações
próprias de uma política de Estado caminham decisões condizentes com as
prioridades dos governos de plantão, o que comprova que a política externa é
também uma política de governo. A ideia de que o Itamaraty é uma instituição
pouco permeável às interações com o universo político interno, é insustentável
diante das evidências.
Fonte:
Por Ismara Izepe de Souza & Bruno Fabricio Alcebino da Silva, em
A Terra é Redonda
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