Pingos nos
Is: O que programa da Jovem Pan conta sobre os bastidores da tentativa de golpe
Os quatro anos de governo de
Jair Bolsonaro (PL) representaram o pico de audiência do programa Os Pingos nos Is, transmitido pela Jovem
Pan. Os vídeos publicados pelo programa em 2022 somam mais de 1 bilhão de
visualizações apenas no YouTube – fora as transmissões pela rádio e TV fechada.
Nos bastidores, o Pingos,
como era chamado, ficou conhecido como o “programa do Bolsonaro”.
A Agência Pública apurou
com funcionários e ex-funcionários da Jovem Pan, ouvidos sob anonimato, que,
enquanto a audiência crescia, o programa era blindado pela direção da empresa,
que dava carta branca para comentaristas alinhados ao ex-presidente Jair
Bolsonaro disseminarem informações falsas e minimizarem os atos que culminaram
na tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. Um deles, Paulo
Figueiredo, segundo a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR)
apresentada no dia 18 de fevereiro, teria utilizado o espaço na emissora para
fortalecer a trama golpista.
Os relatos descrevem que
havia interferência do governo na emissora e que servidores da Presidência
de Jair Bolsonaro – além do próprio ex-presidente – teriam acesso direto aos
responsáveis pela escolha dos temas abordados pelo programa, sugeriam pautas,
entrevistas e o foco dado para as notícias serem favoráveis ao governo.
<><> Por que
isso importa?
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Denúncia da PGR indica que a emissora teria sido
utilizada pelo governo para angariar apoio a Bolsonaro, inclusive quanto aos
atos de 8 de janeiro.
·
Ainda que a Jovem Pan esteja sob investigação, o
governo Lula voltou a fazer repasses de publicidade federal à empresa.
A reportagem teve acesso a
um print que indica uma dessas situações. Em uma conversa pelo mensageiro
WhatsApp, o então editor-chefe do Pingos Clayton
Ubinha relata ter recebido um pedido do ex-presidente para incluir uma
entrevista no programa. “O Bolsonaro tinha pedido pra Tereza Cristina
entrar nos Pingos hoje
também. Ainda não lancei lá porque estou ajustando o horário”, ele teria
escrito em 2 de março de 2022.
Naquele momento, poucos dias
após o início da guerra entre Ucrânia e Rússia, havia incerteza sobre o
fornecimento de fertilizantes ao Brasil. Outros jornais, como a Folha de S.Paulo, haviam reproduzido uma fala da então ministra da
Agricultura Tereza Cristina de que impactos do conflito poderiam aumentar o
preço dos alimentos no país.
Mas no Pingos foi diferente. Após a suposta
sugestão de Bolsonaro, a ministra de fato foi incluída no programa e
passou 25 minutos sendo
entrevistada sobre a questão. Expôs o plano do governo de procurar alternativas
no Canadá, falou sobre a possibilidade de buscar fertilizantes em terras
indígenas e outras pautas defendidas pelo governo. Não foi interrompida nem
pressionada pelos entrevistadores.
“O Bolsonaro pedia e o Pingos atendia”, disse uma pessoa que
tinha cargo de chefia na emissora na época. “Ou melhor, a Jovem Pan
atendia”, continuou.
Três pessoas ouvidas
pela Pública afirmaram
que Ubinha, que comandou o Pingos em
seu período de maior audiência e deixou a emissora em 2023, após 16 anos, era o
responsável por tratar com o ex-presidente e pessoas próximas a ele. “O
editor-chefe falava diariamente com o coronel Mauro Cid [ex-ajudante de ordens
de Bolsonaro]. Tudo que era falado ali [no programa] era combinado”, disse uma
ex-funcionária.
“A redação inteira sabia,
porque ele mesmo [Ubinha] falava. Ele dizia: ‘Está vendo essa notícia que o
Bolsonaro leu na live? Eu que mandei pra ele’. Sempre que alguém precisava de
alguma informação do Bolsonaro na redação, era o Ubinha que fazia essa
interlocução”, disse outra pessoa que tinha posição de chefia. Ubinha foi
procurado, mas não quis responder aos questionamentos da reportagem.
“O Tutinha [então presidente
da Jovem Pan] torrou uma grana para transformar a rádio em uma televisão. Quando acabou a reforma, ele estava preocupado em conseguir retorno
logo. E percebeu que o jeito mais fácil era se aliando de vez com Jair
Bolsonaro”, avalia o jornalista Guga Noblat, que trabalhou na emissora como
comentarista entre 2019 e 2022.
Em resposta à Pública, a Jovem
Pan afirmou que “nenhuma pauta do jornalismo da Jovem Pan foi, é ou será
conduzida de forma tendenciosa aos interesses deste ou daquele grupo político”
e que mantém uma “linha editorial independente e apartidária”. A emissora
também afirmou que publicou “editoriais” nos quais “reiterou o seu apoio ao
sistema eleitoral, às instituições nacionais e, sobretudo, à Democracia”
durante o ano de 2022. A empresa afirmou que Clayton Ubinha e Paulo Figueiredo
foram desligados e que não comentaria sobre suas condutas.
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Paulo
Figueiredo: comentarista da Jovem Pan é um dos 34 denunciados pela PGR
Paulo Figueiredo foi
apontado pela PGR como integrante do núcleo de coordenação da disseminação de
desinformação na trama golpista. Ele foi um dos 34 denunciados pelo
procurador-geral, Paulo Gonet, no dia 18 de fevereiro, pelos crimes de golpe de
Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização
criminosa armada, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o
patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.
Neto do ex-ditador João
Figueiredo (1979-1985), o economista recebeu, no final de novembro de 2022,
informações seletivamente vazadas por militares das forças especiais do
Exército, conhecidos como “kids pretos”, que queriam pressionar o então
comandante do Exército general Freire Gomes a aderir aos planos
golpistas. A denúncia da PGR aponta que os acusados de tramar um golpe de
Estado sabiam que precisavam de apoio e pressão públicos a fim de concretizar
seus objetivos. Para isso, contavam com o alcance do programa.
A relação do Pingos nos Is com a trama
golpista, no entanto, não se deu apenas após a derrota eleitoral de Bolsonaro,
destaca a denúncia da PGR. Em agosto de 2021, Jair Bolsonaro entrou ao vivo no
programa e desacreditou o sistema eleitoral com base em afirmações falsas. Ele
acusou, por exemplo, que um hacker teria violado o sistema eleitoral em 2018 e
o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) teria ocultado provas sobre os fatos.
O vídeo foi removido pelo
YouTube em alguns canais por conter desinformação, mas segue disponível no
canal do programa com o termo “sistema eleitoral invadido” em seu título.
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Kids
pretos combinaram vazamento de carta golpista à emissora
A interação entre pessoas
ligadas ao ex-presidente e comentaristas e funcionários da Jovem Pan com o
intuito de pautar o programa é narrada pela PGR.
“Assista o Pongo [sic] nos
Is hoje. O Prec, o Espora Dourada e o Bigode serão expostos”, disse o coronel
Corrêa Netto, integrante da Cavalaria do Exército, a Mauro Cid, por volta das
14h de 28 de novembro de 2022. “Eu sei… Hahahahaha”, respondeu Cid, conforme
descrito em um dos trechos da denúncia.
Quatro horas depois da troca
de mensagens, Paulo Figueiredo fez no programa exatamente o esperado pelo
coronel. O comentarista antecipou a divulgação de uma carta de pressão assinada
por militares da ativa – proibidos de se posicionar politicamente – e citou
três dos 14 generais do Alto-Comando que seriam “contra uma ação mais direta,
mais contundente das Forças Armadas”. “Eu vou fazer isso porque eu acho que o
povo brasileiro tem que saber quem é quem”, afirmou.
Foram mencionados Tomás
Paiva, do Comando Militar do Sudeste – atualmente comandante do Exército –, Valério
Stumpf, do Estado-Maior do Exército, e Richard Nunes, do Comando Militar do
Nordeste, cujos codinomes, segundo a Polícia Federal (PF), eram Prec, Espora
Dourada e Bigode.
Para o procurador-geral da
República, Paulo Gonet, a troca de mensagens revela que há uma “ação
coordenada” entre os militares e Paulo Figueiredo. A denúncia aponta
também que a divulgação do nome dos generais contrários a uma tentativa de
golpe de Estado era parte da estratégia de pressão ao então comandante do
Exército, general Freire Gomes, organizada pelos kids pretos em parceria com o
general Braga Netto (PL).
Braga Netto, candidato a
vice-presidente pela chapa de Jair Bolsonaro, também é um dos denunciados como
parte do “núcleo crucial da organização criminosa”, supostamente liderado pelo
ex-presidente.
Segundo a denúncia, o
vazamento da carta vinha sendo planejado antes mesmo de os nomes de seus
signatários serem definidos. A investigação da PF obteve acesso a
mensagens trocadas entre os tenentes-coronéis Sergio Cavaliere e Ronald
Ferreira, que ironizavam: “logicamente que, ‘acidentalmente’, irá vazar”, disse
o primeiro. “A versão que vai sem querer parar na mão de alguém aí, eu até já
sei quem, ela vai também com os nomes”, acrescentou Ferreira.
Depois do programa, os
militares foram alvos de ofensas nas redes sociais. Entre 29 de novembro e 3 de
dezembro de 2022, o Aos Fatos identificou ao menos 39
compartilhamentos de correntes difamatórias com foto e nome dos generais. Os
textos acusavam os oficiais de serem “melancias” – verdes por fora e vermelhos
por dentro [alegoria que visa associar os indivíduos ao Partido dos
Trabalhadores].
Em depoimento à PF, Freire
Gomes afirmou que Figueiredo “foi um dos responsáveis pelos ataques pessoais e
caluniosos que recebeu”. O general afirmou também que os golpistas primeiro
tentaram convencê-lo pacificamente, “mas, tendo ele resistido, passaram aos
ataques incisivos”.
Procurado pela Pública, Paulo
Figueiredo afirmou não ter sido notificado formalmente da denúncia, disse que
apenas “reportou com precisão os bastidores das Forças Armadas” e afirmou
sentir-se honrado de “estar ao lado de grandes patriotas” no que ele considera
uma perseguição política. Ele negou saber de “plano golpista” ou ser
favorável a um golpe de Estado e disse lamentar que o general Freire Gomes
“seja tão ‘sensível’”. Figueiredo negou espalhar notícias falsas, disse ser
“líder absoluto de audiência” nos programas de que participou e afirmou que
“quem fala determinadas coisas merece uma porrada na cara mesmo”.
Uma transmissão ao vivo
feita pelo consultor político argentino Fernando Cerimedo após o segundo turno
das eleições brasileiras, em 4 de novembro de 2022, também foi citada na
denúncia da PGR. Na ocasião, o consultor, que trabalhou na campanha de Javier
Milei à presidência da Argentina, apresentou um dossiê com falsas evidências de
fraude nas eleições presidenciais brasileiras.
De acordo com Mauro Cid, as
alegações de Cerimedo teriam sido produzidas por quem ele chamou de “nosso
pessoal”. Meses depois, em fevereiro de 2023, foi ao ex-ajudante de ordens de
Bolsonaro que Figueiredo recorreu para solicitar o contato do consultor.
Procurado, o advogado de Mauro Cid não se manifestou até o momento.
Em julho de 2023, a Pública, em
parceria com o UOL e o Centro Latino-Americano de Jornalismo Investigativo
(Clip), revelou que um
funcionário de Cerimedo foi contratado pela campanha de Eduardo Bolsonaro
(PL-SP) nas eleições do ano anterior. A reportagem mostrou também que o
deputado federal viajou à Argentina em missão oficial, às vésperas do segundo
turno, em viagem “patrocinada” pelo consultor.
À reportagem, a Jovem Pan
afirmou que “a fala de terceiros (…) não é submetida à edição prévia, sobretudo
porque grande parte de seus programas são transmitidos ao vivo. Nesta linha, os
terceiros – convidados, entrevistados, colaboradores, entre outros –
responsabilizam-se integralmente pelas suas opiniões pessoais, as quais não
representam a posição institucional da Jovem Pan”.
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De
gota em gota: emissora enfrenta implicações na Justiça e quedas de verba e
audiência
Nos bastidores da redação da
Jovem Pan, Figueiredo era conhecido por entrar em embates com jornalistas, como
Guga Noblat, que afirmou ter sido chamado para “a porrada” pelo comentarista
após discordâncias políticas. Relatos ouvidos pela Pública o
apontam como um “protegido” da direção em função de suas boas relações com
integrantes do governo Bolsonaro.
Em 2022, por exemplo, a
Jovem Pan foi obrigada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a dar espaço para
três direitos de resposta da campanha do então candidato Luiz Inácio Lula da
Silva, que havia sido chamado de “mentiroso” e “descondenado” e acusado de
perseguir cristãos caso fosse eleito. A Jovem Pan alegou estar sendo censurada.
Figueiredo apareceu no ar com nariz de palhaço e Ana Paula Henkel leu uma
receita de bolo no ar – uma referência à prática dos jornais que substituíam
conteúdos censurados pela ditadura militar de 1964.
O ambiente começou a mudar
após o 8 de janeiro de 2022, quando a Jovem Pan virou alvo de um
inquérito civil do Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) por
veicular em seus programas conteúdos “desinformativos com potencial para minar
a confiança dos cidadãos na idoneidade das instituições judiciárias brasileiras
e na rigidez dos processos democráticos por elas conduzidos”.
Seis falas de Figueiredo
no Pingos nos Is foram
citadas na justificativa para a abertura do inquérito. Em 22 de dezembro de
2022, por exemplo, o comentarista afirmou que uma eventual convocação por
Bolsonaro de uma intervenção das Forças Armadas seria declarada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas sustentou que a Corte
apenas teria poder “enquanto as Forças Armadas cumprirem as decisões que eles
fizerem”.
O comentarista fez também
“diversas falas justificadoras” do 8 de janeiro, de acordo com o MPF. “As
pessoas estão revoltadas com a forma como o processo eleitoral foi conduzido,
elas estão revoltadas com a truculência com que certas instituições têm violado
a nossa Constituição”, disse durante a invasão.
Em 10 de janeiro, a empresa
afastou Figueiredo e outros comentaristas alinhados ao bolsonarismo. Uma semana
depois, eles foram demitidos. Ao longo de 2023, os programas, incluindo o Pingos, passaram a ser mais enfáticos ao
dizer que o 8 de janeiro havia sido uma ameaça à democracia.
De acordo com fontes ouvidas
pela reportagem, advogados foram chamados para aconselhar os jornalistas e
comentaristas a moderar os termos que usavam para se referir principalmente ao
ministro Alexandre de Moraes – “aquele careca” e “cabeça de ovo” eram
expressões costumeiras. Tutinha, então responsável pela emissora, saiu da
presidência, e seu irmão, Marcelo Carvalho, considerado mais equilibrado,
assumiu a coordenação.
O ano de 2023 também foi de
mudanças nos volumes de verba recebida pela empresa, já que o governo Lula
repassou apenas R$ 270 mil em
publicidade federal à emissora. A verba foi de R$ 2,4 milhões em 2024, enquanto
na gestão Bolsonaro o valor totalizou ao menos R$ 18,8 milhões, segundo dados
do portal da Secretaria de Comunicação Social. Questionado, o governo federal
não respondeu por que voltou a anunciar na Jovem Pan.
Em junho de 2023, o MPF
ajuizou uma ação civil pública contra a emissora e pediu o cancelamento de suas
outorgas de radiodifusão à Justiça Federal de São Paulo. Além do Pingos nos Is, o conteúdo publicado nos
programas 3 em 1, Morning Show e Linha de Frente foi avaliado pelas
autoridades, que afirmam ter encontrado “numerosas condutas ilícitas, que
configuram abusos de sua liberdade de radiodifusão e violações graves tanto dos
princípios quanto das finalidades sociais que lastreiam as outorgas”, como
descreveram os procuradores Yuri Corrêa da Luz e Ana Letícia Absy.
A ação civil pública pediu
também que a Jovem Pan seja condenada ao pagamento de R$ 13,4 milhões de
indenização por danos morais coletivos e obrigada a veicular mensagens sobre a
confiabilidade do processo eleitoral. Em março de 2024, a Advocacia-Geral
da União (AGU) se posicionou contrária
à cassação das outorgas, mas concordou com a imposição das outras penalidades.
À reportagem, a Jovem Pan afirmou que “não comentará sobre qualquer processo
e/ou investigação em curso”.
Com a derrota eleitoral de
Bolsonaro, as demissões e o fim do fluxo de informações exclusivo do governo
com o programa, a audiência do Pingos despencou.
Em 2022, vídeos com a íntegra de cada programa atingiram uma média de 850 mil
visualizações, com mais de 40 deles ultrapassando 1 milhão. Em 2024, a média de
visualizações foi de 51 mil por programa e nenhum deles passou de 100 mil. Os
dados são do YouTube Data Tools.
A perda de audiência da
Jovem Pan coincidiu com a ascensão do programa Oeste Sem Filtro, da Revista
Oeste, que conta com ex-comentaristas do Pingos, como Augusto Nunes e Ana Paula
Henkel. O programa, que estreou em novembro de 2022, teve uma média de 453
mil visualizações em 2024.
Fonte: Por Amanda
Audi, Laura Scofield, Rafael Oliveira | Edição: Ed Wanderley
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