segunda-feira, 10 de março de 2025

Trump se une a Putin, cutuca Europa e constrange patriotas brasileiros

Uma nova ordem mundial está sendo desenhada por Donald Trump. Além de ter iniciado uma guerra tarifária que desorganizará o comércio global, o presidente americano abandonou a Europa à própria sorte na guerra da Ucrânia e se juntou a Vladimir Putin, o líder da Rússia. 

O cenário geopolítico pós-Segunda Guerra já não existe mais. Trump deixou claro que os EUA mudaram de lado. A Europa não poderá mais contar com a proteção da maior potência bélica do mundo, que durante décadas ofereceu tropas e armas nucleares em território europeu para conter possíveis agressores. 

No ano passado, os EUA forneceram mais de 40% da assistência militar à Ucrânia, de acordo com a Otan. Em poucos dias de mandato, Trump suspendeu essa ajuda e interrompeu a cooperação de inteligência com a Ucrânia. Não há como a Europa cobrir essa lacuna a curto prazo. Nada será como antes.

O presidente francês, Emmanuel Macron, fez um pronunciamento à nação em que tratou a Rússia como uma ameaça ao continente, pregou a união dos países europeus na defesa da Ucrânia e colocou as armas nucleares da França à disposição como instrumento de dissuasão. “Quero acreditar que os EUA estarão ao nosso lado. Mas temos que estar prontos se esse não for o caso”, disse Macron depois de colocar seu arsenal nuclear sobre a mesa. 

No dia seguinte ao pronunciamento, líderes dos países da União Europeia se reuniram em Bruxelas e prometeram aumentar os gastos com defesa para apoiar a Ucrânia. Batizado de “ReArm Europe”, o plano acordado pretende mobilizar até 800 bilhões de euros (R$ 4,7 trilhões) para a defesa da Ucrânia e da Europa. Para se ter uma ideia do montante, nos últimos três anos foram destinados 267 bilhões de euros de todos os países doadores, incluindo os EUA. 

Trump empurrou a Europa para uma corrida armamentista justamente em um momento em que os orçamentos dos países europeus estão curtos. Se o modelo do Estado do bem-estar social europeu já estava em crise, agora passará por uma prova de ferro nunca vista. O alto investimento na guerra custará caro aos contribuintes europeus e, inevitavelmente, causará grande impacto nos serviços públicos. 

A consequência mais óbvia dessa nova configuração será o fortalecimento da extrema direita nos países europeus e a derrocada existencial do continente. Essa corrida armamentista desesperada tende a impulsionar ainda mais o neofascismo na região. Quando grandes crises políticas, sociais e econômicas aparecem no horizonte, a extrema direita fascistóide se apresenta como a solução. Eis a nova ordem mundial.

Para a Europa, não há outra alternativa a não ser se armar até os dentes. Juntos, Rússia e EUA, liderados por extremistas de direita com sanha imperialista, possuem quase 90% das armas nucleares do mundo. Com Trump ao seu lado, a possibilidade de Putin invadir outros países europeus é real. 

A cúpula do poder em Moscou considerou o pronunciamento de Macron como uma ameaça e mandou recados claros. “Uma análise tão falha leva a erros fatais”, afirmou o senador russo Konstantin Kosachev. O ex-primeiro-ministro Dmitri Medvedev debochou do presidente francês, dizendo que ele “não representa uma grande ameaça”. 

Putin ainda trouxe à memória o fracasso de Napoleão Bonaparte em 1812, que invadiu Moscou com suas tropas, mas foi enxotado pelo exército e pelo inverno russo. “Ainda há pessoas que querem voltar aos tempos de Napoleão, esquecendo como tudo terminou”, afirmou o líder do Kremlin. Putin nunca se sentiu tão à vontade no xadrez geopolítico. 

No Brasil, a extrema direita está confusa. Depois de passarem os últimos anos tratando a Rússia de Putin como “comunista” e Zelensky como um herói da democracia, nossos patriotas ficaram atordoados com a nova jogada de papai Trump. 

Em novembro do ano passado, uma comitiva de parlamentares bolsonaristas viajou para a Ucrânia para prestar apoio a Zelensky e condenar o “apoio” do “comunista” Lula ao “comunista” Putin (perdão pelo excesso de aspas, mas o surrealismo bolsonarista me obriga). 

Os senadores Sergio Moro, do União Brasil do Paraná, Damares Alves, do Republicanos do Distrito Federal, Magno Malta, do PL do Espírito Santo, e o deputado federal Paulo Bilynskyj, do PL de São Paulo, foram alguns dos políticos que largaram suas tarefas parlamentares e atravessaram o oceano para bajular o “democrata” que hoje é humilhado por Trump. 

A caravana foi bancada, é claro, pelos cofres públicos brasileiros. Mas alguma coisa ficou fora da ordem nos delírios “globalistas” dos nossos patriotas. Enquanto Magno Malta e Damares preferiram o silêncio diante da contradição, Bilynskyj e Moro optaram pela cara de pau ao lançarem mão de malabarismos argumentativos. 

Bilynskyj afirmou que “a falta de capacidade política de Zelensky colocou todo esforço de guerra ucraniano em risco”. A afirmação não faz o menor sentido. Há pouco mais de três meses, o deputado estava em Kiev tirando foto abraçado com o líder ucraniano. 

Sergio Moro seguiu a mesma linha nonsense e se fingiu de louco. Em um texto sofrível para a Gazeta do Povo, o ex-juiz abusou da embromação, se mostrou compreensivo com Trump, mas não explicou o porquê da mudança brusca de opinião em relação à guerra. Nossos vira-latas complexados não nos devem maiores explicações e seguirão o instinto de balançar o rabinho para o Tio Sam. 

Putin e Trump estão testando as democracias e ditando o ritmo do avanço da extrema direita mundial. Ambos compartilham a mesma visão de mundo, estão alinhados nas pautas morais e rejeitam o conceito de globalização. Aguardemos os próximos episódios do jogo geopolítico. Daqui, o futuro que se desenha me parece bastante sombrio.

¨         Patriotas golpistas dão show constrangedor após ataque trumpista contra Moraes

Tivemos mais um show constrangedor dos nossos “patriotas” nesta semana. Começou com Marcos do Val, senador do Podemos do Espírito Santo, que gravou um vídeo implorando para os Estados Unidos nos salvarem da terrível ditadura em que vivemos. Lembremos que este nobre defensor da democracia brasileira é o mesmo que admitiu ter recebido uma missão de Bolsonaro: grampear o ministro Alexandre de Moraes em favor do plano golpista. 

Aos berros e palavrões, quase chorando, o parlamentar só faltou ajoelhar para que o Tio Sam nos atacasse. Apesar de tudo ser muito engraçado e caricato, é importante que não nos distanciemos da gravidade da coisa: estamos diante de um senador da República que está incitando publicamente um país estrangeiro a mobilizar suas tropas e invadir o Brasil. Andamos tão anestesiados pela avalanche diária de absurdos produzidos pela extrema direita que nem se cogitou a cassação do seu mandato. E assim vamos empilhando e naturalizando os absurdos.

Enquanto Do Val cumpria mais esse papelão, o Comitê Judiciário do Congresso americano aprovou um projeto de lei para punir estrangeiros que atuem contra a liberdade de expressão de um cidadão americano, violando a Primeira Emenda da Constituição dos EUA. Batizada de No Censors on our Shores Act, a proposta estabelece a deportação e proibição de entrada nos Estados Unidos. 

A aprovação da lei é resultado de uma articulação entre bolsonaristas e parlamentares trumpistas, que não fazem questão alguma de esconder que o alvo é o ministro Alexandre de Moraes. O juiz tem sido o algoz de plataformas de redes sociais como o X, de Elon Musk, e a Rumble, que se recusaram a fornecer dados de criminosos envolvidos com os atos golpistas. 

Assim como já aconteceu com o X, a Rumble teve sua operação bloqueada por determinação de Moraes, na semana passada, por se recusar a fornecer os dados do parajornalista Allan dos Santos, que é um criminoso foragido da justiça brasileira que está escondido nos EUA. Isso aumentou ainda mais o ímpeto dos militantes da liberdade de expressão de Taubaté. 

Uma das parlamentares do partido Republicano que encabeçaram o projeto, María Elvira Salazar soltou um comunicado à imprensa em que afirma que “Moraes é a vanguarda de um ataque internacional à liberdade de expressão contra cidadãos americanos como Elon Musk”. 

Trata-se, obviamente, de uma grande patacoada sem o menor sentido lógico, já que um juiz brasileiro deve atuar segundo a Constituição brasileira. É de uma obviedade que chega a ser constrangedora, o que não chega a ser um problema para quem utiliza a mentira e delinquência como método. 

O Comitê Judiciário que aprovou a lei é chefiado por Jim Jordan, um deputado trumpista que teve papel fundamental no golpismo que culminou com a invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Na manhã daquele dia, Jordan conversou por telefone por 10 minutos com Trump e, à tarde, foi ao plenário da Câmara para se opor à posse do então presidente eleito Joe Biden. Essas são as credenciais democráticas do sujeito. Jordan não está preocupado com a liberdade de expressão no mundo, claro. O americano usa seu mandato nos EUA para fomentar o golpismo bolsonarista. 

Maria Elvira Salazar e Jim Jordan se encontraram com Eduardo Bolsonaro e Paulo Figueiredo Filho para tratar do projeto que barra a entrada de Moraes nos EUA. Lembremos também das credenciais morais e democráticas de Figueiredo.  O neto do general João Baptista Figueiredo — o  último presidente da ditadura militar no Brasil — foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República pelos crimes de organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça. 

Atualmente, ele mora nos EUA, onde mantém um canal no Youtube dedicado a conspirar contra a democracia brasileira. É um mentiroso contumaz. Ele chegou a ser preso pelo governo americano em 2019 por participar de um esquema de pagamento de propinas para diretores do Banco de Brasília, o BRB, em troca de investimentos na marca hoteleira de Donald Trump. É esse o tipo de gente que hoje se arvora em paladino internacional da liberdade de expressão.  

Logo depois que o projeto foi aprovado, o Departamento de Estado norte-americano fez um alerta ao Brasil por conta da “censura” no país. A nota foi traduzida e publicada pelos perfis oficiais da Embaixada dos EUA no Brasil. “Bloquear acesso à informação e impor multas em empresas sediadas nos EUA por se recusar a censurar pessoas vivendo nos EUA é incompatível com valores democráticos, incluindo liberdade de expressão”, diz a nota. 

Foi a primeira vez que o governo americano se pronunciou oficialmente, o que levou a coisa para um outro patamar. Agora já não são mais meia dúzia parlamentares americanos cupinchas do bolsonarismo enchendo o saco. É o governo americano oficialmente agindo contra o judiciário do Brasil e testando nossa soberania. 

O governo brasileiro, que até o momento não havia se manifestado, deixou claro que não vai aceitar a distorção dos fatos e a ingerência em assuntos domésticos. Em nota dura, o Itamaraty respondeu: “O governo brasileiro recebe, com surpresa, a manifestação veiculada hoje pelo Departamento de Estado norte-americano a respeito de ação judicial movida por empresas privadas daquele país para eximirem-se do cumprimento de decisões da Suprema Corte brasileira. O governo brasileiro rejeita, com firmeza, qualquer tentativa de politizar decisões judiciais e ressalta a importância do respeito ao princípio republicano da independência dos poderes, contemplado na Constituição Federal brasileira de 1988”. 

O Itamaraty lembra que a liberdade de expressão é um direito fundamental garantido pela legislação brasileira, mas que deve ser exercido “em consonância com os demais preceitos legais vigentes, sobretudo os de natureza criminal”.  

O governo americano parece mesmo estar disposto a endurecer com o Brasil. Isso deixou os patriotas bolsonaristas em polvorosa nas redes sociais, comemorando a intimidação à soberania brasileira. Mas aguardemos as cenas dos próximos capítulos. Apesar de Trump agir como um chimpanzé bêbado jogando War, as coisas na diplomacia internacional não são tão simples assim. 

O Brasil não é um país qualquer no cenário internacional e qualquer violação à nossa soberania terá um custo. As chances de tudo isso morrer no campo das bravatas são grandes. O objetivo maior é alimentar as narrativas de um bolsonarismo em desespero e acho provável que não passe disso.

Independente de qualquer coisa, a única certeza que se tem é que essa gritaria internacional não será capaz de livrar Bolsonaro e sua gangue golpista da cadeia. Marcos do Val ainda vai chorar muito.

 

Fonte: Por João Filho, em The Intercept

 

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