O enigma do Centrão na
política brasileira
O clientelismo político advém uma forma de se reforçar as solidariedades
políticas no interior da classe dominante, já que os benefícios distribuídos
(cargos, verbas, equipamentos) são signos de compensações econômicas, feitas
pela fração hegemônica, aos interesses das frações subordinados, em troca da
estabilidade política. Em outras palavras, a barganha de vantagens materiais
imediatas por apoios políticos é o aspecto manifesto das relações
intergovernamentais, partidárias e eleitorais; porém, mais profundamente, são
os interesses da fração hegemônica que, em boa medida, constituem o conteúdo
latente da relação dos aparelhos de Estado, da competição dos partidos e das
disputas eleitorais.
O capital financeiro internacional e o capital bancário nacional
conquistaram o executivo federal nas eleições presidenciais de 2018. A
expressão dessa aliança hegemônica foi a política econômica liderada pelo
ministro da fazenda Paulo Guedes, cujos eixos representavam uma radicalização
do programa neoliberal: desregulação da economia, privatizações, monetarismo. A
adoção de uma composição parlamentar e ministerial por meio dos partidos de
clientela era uma maneira coerente com essa política hegemônica, centrada na
estratégia de redução de custos, pois contornava os acordos mais amplos com as
forças sociais subordinadas que significassem sacrifícios econômicos do anel de
interesses hegemônicos, como eram os casos da política ambiental restritiva ou
da política salarial expansiva.
A tendência dessas forças alinhadas ao neoliberalismo extremado foi de
minimizar o papel dos partidos políticos e dos grupos sociais na canalização de
demandas gerais junto ao aparelho de Estado, opondo-se a uma política de pacto
social ou aliança de classes. Os mandatários do capital financeiro-bancário
buscaram deslocar o centro da hegemonia no aparelho de Estado, transferindo-o
do Executivo para o Legislativo.
Como o líder do executivo, no Brasil, é eleito pelo voto majoritário,
ele tem o incentivo para a discussão dos temas estratégicos ou nacionais da
política governamental; diferentemente, a eleição proporcional dos
parlamentares os induz a uma perspectiva imediatista ou fragmentária das
questões da política nacional, em vista do retorno eleitoral. O deslocamento
para a dominância do Legislativo se traduzia na tática de controlar o processo
orçamentário do governo, por meio principalmente das mudanças nos dispositivos
de emendas parlamentares.
Em 2016, em um contexto de crise da hegemonia neodesenvolvimentista
(Boito Jr, 2018), a oposição parlamentar conseguiu aprovar a mudança
constitucional que tornava impositiva a emenda orçamentaria individual. Este
foi o primeiro passo num percurso que visava retirar do Executivo o controle
político do processo orçamentário.
Vale observar que desde o ano de 2000 havia o projeto do Senador Antônio
Carlos Magalhães de tornar obrigatória a emenda parlamentar individual. No
entanto, tal proposta não entrara em pauta, porque a coalizão
neodesenvolvimentista, fiadora de uma política de acordos mais amplos, estava
comprometida com os dispositivos das emendas coletivas (bancada, comissões).
Durante o Governo Lula II (2007-2010) o peso das emendas coletivas nas despesas
discricionárias foi em média de 60, 3%; já no Governo Bolsonaro (2019-2022), a
média dessas emendas ficou em 28, 4% (Faria, 2023).
Em 2019, as Emendas Constitucionais 100 e 102 aprovaram,
respectivamente, as impositividade das emendas orçamentárias das bancadas
estaduais e a obrigatoriedade de execução das despesas primárias
discricionárias, que são principalmente os investimentos. Além disso, o
Congresso Nacional tornou impositivas as emendas das comissões permanentes do
Senado e da Câmara e estendeu o papel do relator-geral no processo
orçamentário. Por fim, ainda em 2019, foi aprovada a EC 105 instituindo as
transferências especiais ou transferências com finalidade definida, que
independiam de convênio ou contrato com o ente beneficiado, permitindo ao
parlamentar doar ao município que desejasse, sem destinação específica e sem
fiscalização do Tribunal de Contas da União, até a metade do valor de suas
emendas orçamentárias. Isso explica que as despesas de emendas individuais no
orçamento federal tenham ultrapassado as emendas coletivas ao longo do Governo
Bolsonaro, invertendo a tendência do ciclo de governos Lula e Dilma.
Porém, o dispositivo por meio do qual o poder legislativo mais avançou
no controle político do processo orçamentário foram as atribuições do
relator-geral à peça orçamentária de governo. Em 2020, foi estabelecido o
identificador de Resultado Primário para discriminar as emendas do
relator-geral (RP-9). Feita a triangulação deste dispositivo com as normas
constitucionais e as regras regimentais, na prática a emenda de relator-geral
se torna quase impositiva, com a regulação da possibilidade de indicação dos
beneficiários e da ordem de prioridades de tais emendas. Disso resulta o
crescimento exponencial do montante de recursos das emendas do relator-geral:
se durante os Governos Lula I e II foram aplicados, respectivamente, um total
de R$ 25 bilhões e R$ 30 bilhões; no Governo Bolsonaro, esse total chegou a R$
93,2 bilhões.
Compreende-se que, num contexto de limitação democrática, no qual as
forças hegemônicas tendem a ressaltar os partidos clientelísticos e os
interesses locais ou paroquiais, tenha-se o aumento do montante orçamentário
para as emendas individuais, em detrimento das emendas coletivas. E mais
importante nesta tática individualista é a concentração dos recursos nas
emendas do relator-geral, o qual normalmente está subordinado à presidência da
Câmara Federal.
Porém, não estava excluído o conflito no interior da coalizão
governante, que no Governo Bolsonaro controlava tanto o Executivo e quanto o
Legislativo, promovendo os interesses do grande capital financeiro-bancário com
relativo equilíbrio dos poderes ou baixo nível de conflitos, embora a tendência
fosse de dominância do Legislativo. Diante do avanço do Congresso Nacional, ou
seja, os representantes diretos (financiados pelas campanhas eleitorais) da
aliança hegemônica no processo orçamentário, era previsível que houvesse a
reação do Executivo, os seus representantes indiretos (relacionados ao
funcionário de carreira). Uma manifestação disso foi o julgamento pelo STF de
inconstitucionalidade da emenda de relator-geral em dezembro de 2022. Mas não
houve um retorno ao status quo anterior em termos de
prerrogativas orçamentárias do Executivo, permanecendo o cenário de limitação
de suas atribuições orçamentárias; o que se fez foi impedir a continuidade da
nova “ferramenta de composição” da coalizão governativa (RP-9), desenvolvida e
instrumentalizada a partir do Legislativo (Faria, 2023).
Em contexto de relativa consolidação da democracia, na década de 1990,
em que as forças hegemônicas, defensoras de um neoliberalismo moderado, não se
mostravam opostas ao regime democrático, dando importância aos partidos
políticos e os grupos sociais, tinha-se o baixo índice de emendas
individualizadas e uma baixa correlação entre a execução das emendas
individuais e os votos dos parlamentares aos projetos de governo (Figueiredo;
Limongi, 2005). O desenvolvimento de um sistema partidário forte pode atenuar
os ciclos eleitorais orçamentais, particularmente num sistema eleitoral
majoritário, ao reorientar a competição legislativa para os temas mais
estratégicos de desenvolvimento do país.
Pode-se, porém, levantar a hipótese de que, neste contexto de política
neoliberal e estabilidade democrática, a força da barganha clientelista tenha
se deslocado das emendas individuais para as emendas coletivas, expressando uma
sofisticação das práticas clientelistas. Como observa um analista, a grande
vantagem das emendas coletivas, que foram concebidas para atender os interesses
maiores de Estados, regiões ou comissões setoriais, seria supostamente estarem
livres de motivações escusas [sic.!], já que teriam que ser objeto de negociação
formal entre grupos de parlamentares (com exigências de quórum mínimo).
Infelizmente, com o passar do tempo, as emendas coletivas passaram a ser
acometidas dos mesmos males das emendas individuais (Tollini, 2008, p. 218).
Torna-se previsível que a coalizão governante se utilizasse do avanço
das emendas parlamentares no orçamento federal como um meio de fortalecer sua
coesão política, a despeito de uma retórica oposta a isso. O Presidente Jair
Bolsonaro negava que o aumento de liberação de emendas parlamentares fosse uma
prática da “velha política”: “tudo o que é liberado está no orçamento. (…)
Nada foi inventado, não tem mala, não tem conversa escondidinha em lugar
nenhum, é tudo à luz da legislação” (Valor econômico,12\07\2019).
Tem-se ainda um discurso de criminalização do clientelismo político,
tentando se afastar de uma prática que é inerente às democracias capitalistas.
Mas efetivamente o que se está tentando ocultar é a conduta de regressão às
formas individualistas dessa barganha política, expressas nas emendas
parlamentares individuais e as transferências especiais que independem de
destinação específica e nas emendas da relatoria-geral. Um efeito disso é uma
mudança no papel do legislativo na definição de políticas públicas, voltando-se
para as prioridades e as metas de curto prazo e medidas fragmentárias, cujos
rendimentos eleitorais podem ser maiores.
Uma manifestação concreta dessa tendência política foi alardeada em
reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo, em maio de 2021,
referindo ao caso das emendas de relator-geral, apelidadas de “orçamento
secreto”:
Secretamente, esses recursos extras foram concentrados num grupo de
parlamentares. É um dinheiro paralelo ao previsto nas tradicionais emendas
individuais a que todos os congressistas têm direito, aliados ou
oposicionistas. […] Na Região Norte, a cidade de Santana foi a mais beneficiada
por recursos do orçamento secreto. Por indicação do senador Davi Alcolumbre
(DEM-AP), o município firmou contrato de repasse de R$ 95,7 milhões para a pavimentação
de ruas, que teriam como destino Macapá se o irmão dele, Josiel Alcolumbre
(DEM), tivesse vencido a eleição para prefeito da capital amapaense. Segundo
fontes, para não turbinar o mandato do adversário da família, Alcolumbre
redirecionou o investimento.
A despeito de seu discurso sobre a “nova política”, o que na prática
poderia significar uma oposição à política clientelista, o Governo Bolsonaro
respondeu de modo específico o traço marcante da governabilidade, que são as
coalizões parlamentares e ministeriais. Tendo feito a presidência da Câmara dos
Deputados, a bancada governista recebeu dez vice-lideranças na Casa,
contemplando dez Partidos diferentes e concedeu a um partido de clientela, o
Partido Progressista, a liderança do governo na Câmara e, em seguida, a este
mesmo partido, o Ministério da Casa Civil, principal ministério de articulação
e negociação do Executivo com os outros ramos do aparelho de Estado. Por outro
lado, foi reinstituído o Ministério das Comunicações a ser entregue a outro partido
de clientela, o Partido Social Democrático; e vários outros pequenos partidos
que compõem o chamado Centrão, agregando bancadas partidárias tidas por
pragmáticas, ganharam cargos no segundo e terceiro escalões dos Ministérios ou
das Autarquias do Executivo Federal (Amaral, 2021).
A coalizão bolsonarista praticava um clientelismo como tentativa de
voltar ao sistema das “lealdades pessoais”, típico das antigas oligarquias
agrárias (Leal, 1975). Só que em lugar dessas oligarquias tradicionais,
desaparecidas com a penetração do capitalismo no campo, ascendem os quadros
políticos de origem numa espécie de lumpen burguesia
(comerciantes de terras, milícias, empresas religiosas etc.), que se
multiplicaram nas legendas partidárias clientelistas.
Fonte: Por Francisco
Pereira de Farias, em A Terra É Redonda
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