segunda-feira, 10 de março de 2025

Trump abandonar Ucrânia evoca pacto de 1938 com nazistas

"Não posso deixar de me perguntar: já estivemos aqui antes? Tchecoslováquia, 1938. Temos um agressor às nossas portas, com a intenção de tomar território que não é dele. E os negociadores [...] já estão entregando suas fichas de barganha antes mesmo de as negociações começarem. Essa é uma tática desastrosa. E estamos caminhando a toda velocidade para o desastre."

Essas observações foram feitas em fevereiro por Kaja Kallas, ex-premiê da Estônia e atual alta representante da União Europeia para Exterior e Segurança, durante a Conferência de Segurança de Munique.

O local do discurso não poderia ser mais simbólico: a poucas centenas de metros do prédio no qual, há 86 anos, líderes da França e do Império Britânico assinaram o Acordo de Munique, que marcou o clímax da política de apaziguamento dos anos 1930, quando potências ocidentais concordaram em ceder a ambições territoriais da Alemanha nazista na esperança de que isso serviria para evitar um novo conflito mundial.

Como parte do acordo, em 1938, líderes franceses e britânicos decidiram abandonar aos nazistas a antiga Tchecoslováquia (hoje dividida entre República Tcheca e Eslováquia), permitindo que o regime de Adolf Hitler anexasse, sem luta, parte considerável do país da Europa Central. Em nenhum momento os tchecoslovacos foram ouvidos, enquanto as potências da época decidiam seu destino.

No entanto, longe de satisfazer os nazistas, o acordo foi rapidamente rasgado por Hitler, que, bastante reforçado pelo domínio do novo território, anexou o restante da Tchecoslováquia e depois voltou seus olhos para a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Entre os tchecos, o acordo ficou conhecido como "A traição de Munique". E para vários líderes se tornou um paradigma de que a política de apaziguamento, quando aplicada a regimes expansionistas e agressivos, está fadada ao fracasso.

"Como historiador e político, a única coisa que posso dizer hoje é: Munique nunca mais”, disse o premiê polonês Donald Tusk, na mesma conferência em fevereiro de 2025, ecoando a visão da estoniana Kallas.

                                          <><> Trump x Ucrânia

Os dois políticos do Leste Europeu não estavam apenas citando um acordo que é considerado um dos maiores desastres da história da diplomacia, mas também manifestando temor de que a história possa se repetir agora com a Ucrânia, que há três anos está sob ataque da Rússia sob Vladimir Putin.

Tusk e Kallas evitaram mencionar nomes, mas entre os participantes da conferência estava claro que o temor era que os EUA, desde janeiro novamente sob o comando de Donald Trump, reencenassem o papel dos britânicos e franceses em 1938, abandonando os ucranianos frente aos russos.

E, ao longo de fevereiro, o temor entre os europeus apenas foi reforçado. Trump revelou que havia começado a conversar diretamente com Putin, e negociadores americanos e russos se reuniram na Arábia Saudita para falar sobre a guerra – os ucranianos e seus aliados na Europa não foram convidados.

Em seguida, Trump declarou que não achava "importante” que o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, participasse das negociações, e começou a condicionar a continuidade da ajuda militar e financeira dos EUA aos ucranianos à assinatura de um bilionário acordo de exploração mineral, classificado por alguns analistas como uma "extorsão”. Posteriormente, chamou o líder ucraniano de "ditador" e fez elogios a Putin.

A virada na posição americana ficou mais clara quando representantes do governo Trump começaram a falar abertamente em pressionar os ucranianos a fazerem concessões territoriais ao Kremlin para pôr fim ao conflito – atualmente, os russos ocupam 20% do território ucraniano.

"Esta guerra precisa acabar e isso exigirá concessões territoriais", pontificou Mike Waltz, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, nesta segunda-feira (03/03), horas antes de a Casa Branca suspender novos pacotes de ajuda aos ucranianos. Ao mesmo tempo, acrescentou que "isso exigirá concessões russas em termos de garantias de segurança".

No entanto, como lembram historiadores, Hitler também ofereceu em 1938 ao então premiê britânico Neville Chamberlain garantias semelhantes de que se contentaria com uma fatia da Tchecoslováquia, antes de ocupar completamente o país e direcionar suas tropas para outros alvos.

"Em comparação com as concessões de Donald Trump a Vladimir Putin, até mesmo a política fatal de apaziguamento de Neville Chamberlain em relação a Hitler parece um realismo corajoso e baseado em princípios. Afinal de contas, Chamberlain, então primeiro-ministro britânico, estava tentando evitar uma grande guerra na Europa. A manobra de Trump, por outro lado, ocorre quando a guerra já está em andamento”, apontou o historiador britânico Timothy Garton Ash, em artigo publicado no semanário alemão Die Zeit.

<><> "A traição de Munique"

Entre 1933 e 1938, o regime nazista de Adolf Hitler adotou uma política rearmamento e de violação de tratados assinados pela Alemanha na esteira da derrota na Primeira Guerra Mundial. Vários desses passos, como a remilitarização da região ocidental alemã da Renânia em 1936, e a anexação da vizinha Áustria em 1938, provocaram pouca comoção entre a França e o Império Britânico.

Na segunda metade de 1938, Hitler começou a voltar suas atenções para a região montanhosa dos Sudetos, uma fatia da Tchecoslováquia com 3 milhões de habitantes, na maioria de etnia alemã, e que representava 25% do território do país. Sob Hitler, que via a Tchecoslováquia como um estado "artificial" e "fraudulento", a propaganda nazista começou a inundar a Alemanha, denunciando que os alemães dos Sudetos estavam supostamente sofrendo atrocidades nas mãos dos eslavos tchecoslovacos. Os nazistas então começaram a deslocar tropas para a fronteira.

Criada em 1918, após o colapso do Império Austro-Húngaro, a Tchecoslováquia era oficialmente aliada da França e possuía relações amistosas com os britânicos. E a região dos Sudetos, que estava na mira de Hitler, era peça primordial da estratégia de defesa tchecoslovaca, possuindo uma rede reforçada de fortalezas e bunkers. O país possuía ainda um dos parques industriais mais formidáveis da Europa.

No entanto, franceses e britânicos decidiram não agir para defender a Tchecoslováquia. Diante das ameaças de Hitler, o então premiê britânico Neville Chamberlain solicitou uma reunião com o ditador, na esperança de que se encontrasse uma solução diplomática para evitar a guerra. Uma série de encontros entre ambos se sucedeu em setembro de 1939.

Historiadores apontam que Chamberlain era motivado tanto pelo trauma da participação britânica na Primeira Guerra Mundial, quando seu país perdeu mais de 800 mil soldados, quanto pelo temor de que suas tropas ainda não estivessem prontas para um novo conflito.

Os encontros culminaram numa reunião final em Munique, na Baviera, com a assinatura de um acordo entre a Alemanha nazista, a Itália fascista, a França e o Império Britânico. Em troca de garantias de paz, Hitler recebeu sinal verde para anexar os Sudetos.

Em nenhum momento das negociações os tchecoslovacos foram ouvidos. O mesmo ocorreu com a União Soviética, que à época também era aliada da Tchecoslováquia. "Sobre a gente, sem a gente”, dizia sobre Munique um slogan tchecoslovaco da época. Chamberlain voltou a Londres no fim de setembro de 1938 afirmando que o acordo garantia a "paz para o nosso tempo".

Houve alívio no Império Britânico e na França de que os países teriam evitado se envolver numa guerra, mas também surgiram críticas. As principais vieram de Winston Churchill, que viria a suceder a Chamberlain como premiê em 1940, e que resumiria a política de apaziguamento como um homem que "alimenta um crocodilo” na esperança de que o animal "vá comê-lo por último".

Apesar do discurso triunfal de Chamberlain, seria uma questão de poucos meses para os nazistas rasgarem completamente o acordo. Horas após a assinatura, o próprio Hitler manifestou ao seu círculo próximo que aquela seria a última vez em que aceitaria participar desse tipo de conferência, e repetidamente expressou desprezo pelos esforços franco-britânicos.

"Nossos inimigos são homens abaixo da média, não são homens de ação, não são mestres. Eles são pequenos vermes. Eu os vi em Munique", disse o ditador nazista em 1939 a um grupo de generais.

No fim da primeira quinzena de março de 1939, meros cinco meses após a conferência, Hitler enterrou qualquer ilusão de que pretendia garantir o restante da integridade da Tchecoslováquia, ao convocar o então presidente, Emil Hácha, e forçá-lo, num encontro marcado por ameaças e intensa pressão, a aceitar a ocupação do restante do território.

Sem as fortificações dos Sudetos e abandonado pelas potências ocidentais, Hácha capitulou. As tropas nazistas ocuparam sem luta o território em 16 de março. Boa parte do país foi renomeado "Protetorado da Boêmia e da Morávia”, enquanto a fatia eslovaca foi transformada num estado-cliente da Alemanha nazista e confiada a um grupo de fascistas-católicos eslovacos.

Pouco menos de seis meses depois, em setembro, Hitler, sem precisar se preocupar com uma ameaça militar da Tchecoslováquia e com seu exército reforçado por armamentos produzidos pela indústria pesada do novo território anexado, voltou seus olhos para a Polônia, ordenando a invasão do país. Desta vez, no entanto, a França e o Império Britânico reagiram. Era o início da Segunda Guerra Mundial, que só terminaria em 1945, deixando mais de 50 milhões de mortos.

<><> Paralelos

Mais de 80 anos depois do Pacto de Munique, o historiador americano Timothy Snyder apontou que, se a Tchecoslováquia tivesse resistido em 1938 e recebido assistência dos franceses e britânicos, o século 20 teria sido bem diferente.

"Se os tchecos resistissem, e os franceses, os britânicos e talvez os americanos começassem a ajudar, haveria um conflito, mas não haveria uma Segunda Guerra Mundial”, disse o historiador em entrevista ao jornal The Guardian em 2024. "Em vez disso, quando a Alemanha invadiu a Polônia em 1939, ela estava invadindo a Polônia com a indústria de armamentos tcheca, que era a melhor do mundo. Estava invadindo com soldados eslovacos. Estava invadindo a partir de uma posição geográfica que só conquistara por haver destruído a Tchecoslováquia.”

Snyder traçou ainda  paralelos com a situação atual da Ucrânia: "Se os ucranianos desistirem, ou se nós desistirmos da Ucrânia, então será a Rússia fazendo guerra no futuro. Será a Rússia fazendo guerra com tecnologia ucraniana, numa posição geográfica diferente. Nesse ponto, estaremos em 1939. [Mas] estamos em 1938 agora. Na verdade, o que os ucranianos estão nos permitindo fazer é estender 1938."

¨      Ajuda à Ucrânia coloca Europa diante de encruzilhada

Trata-se de um "momento único" para a segurança da Europa, enfatizou o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, ao iniciar uma cúpula informal no palacete Lancaster House, em Londres.

À esquerda dele estava o presidente francês, Emmanuel Macron; à direita, o ucraniano, Volodimir Zelenski. Também presentes estavam chefes de Estado e de governo europeus, os principais representantes da União Europeia (UE), o secretário-geral da Otan, Mark Rutte, o ministro do Exterior da Turquia, Hakan Fidan, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau. Todos estavam cientes da gravidade da situação.

A cúpula de domingo já estava marcada mesmo antes do desentendimento público entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e Zelenski, na sexta-feira anterior. Em reação ao bate-boca, muitos chefes de Estado e de governo europeus garantiram sua solidariedade à Ucrânia. Na cúpula em Londres, eles discutiram o que isso significará na prática.

<><> Mais ajuda militar à Ucrânia

O importante é colocar a Ucrânia na posição mais forte possível, destacaram. Starmer enfatizou após a reunião que nada muda no apoio militar à Ucrânia e na pressão econômica sobre a Rússia. Ele anunciou que disponibilizará ao país agredido 1,6 bilhão de libras (R$ 12 bilhões) para a compra de mais de 5 mil mísseis antiaéreos fabricados no Reino Unido. Na véspera, o país assinara um empréstimo de 2,2 bilhões de libras para a Ucrânia, garantido por fundos russos congelados.

Os líderes reunidos também destacaram que é necessário garantir que a Ucrânia seja capaz de se defender no longo prazo, mesmo depois da paz. Ou, nas palavras da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen: a nação deve se tornar um "porco-espinho de aço indigesto para potenciais agressores".

Para o chanceler federal alemão, Olaf Scholz, um fator-chave para a paz na Ucrânia é a capacidade de defesa do país e a existência de um exército forte. "Ele terá que permanecer grande mesmo em tempos de paz – muito além do potencial econômico da Ucrânia." Além disso, demandas russas, como a instalação de um governo pró-Rússia ou a desmilitarização da Ucrânia, não devem ser atendidas.

<><> Uma "coalizão dos dispostos"

Já antes da reunião, Starmer anunciara na BBC que estava trabalhando com a França para, juntamente com mais um ou dois outros países, elaborar um plano com a Ucrânia para acabar com os combates. Esse plano deveria depois ser levado aos EUA. Segundo o premiê britânico, as tratativas estariam "no caminho certo".

Também foi acordado que o plano de paz, qualquer que seja, deve garantir a soberania e a segurança da Ucrânia. E os ucranianos devem participar das negociações. Uma "coalizão dos dispostos" deverá garantir a manutenção da paz, e a reunião de domingo teve por objetivo unir os demais países em torno disso, observou Starmer.

Reino Unido e França se declararam publicamente dispostos a enviar tropas à Ucrânia para garantir um possível acordo de paz. Segundo o primeiro-ministro britânico, outros países também demonstraram disposição, mas cabe a cada governo falar publicamente sobre isso.

<><> Nada é possível sem os EUA

No entanto, também ficou claro que nada disso é possível sem a ajuda dos Estados Unidos. Starmer defendeu que a Europa assuma a maior parte do fardo, mas, para serem bem-sucedidos, esses esforços precisam do forte apoio americano.

Em especial, trabalha-se com os EUA para garantir um acordo de paz. A ideia de um "backstop" – ou seja, de uma intervenção dos americanos em caso de emergência – está sendo discutida, disse o premiê britânico. Trump ainda não se posicionou sobre a questão.

A defesa europeia também depende fundamentalmente da cooperação com os Estados Unidos em outras áreas, como logística e informações de inteligência. O chanceler federal alemão enfatizou que a reunião foi "muito boa" e que todos concordaram que a cooperação transatlântica continuará sendo importante também no futuro.

Ainda não está claro, para os participantes, como o relacionamento entre a Ucrânia e os EUA pode ser reatado após o desentendimento mais recente. Antes da reunião, o secretário-geral da Otan declarou à BBC que pedira a Zelenski uma maneira de restaurar as relações com Trump. A primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, propôs uma cúpula entre os EUA e os europeus, mas até a noite de domingo não havia mais notícias a esse respeito.

<><> Também a Europa precisa se armar

Após a reunião, Von der Leyen, declarou que na próxima cúpula da UE, em 6 de março, pretende apresentar,um plano sobre como rearmar a Europa, o que classificou como uma necessidade urgente. 

Há uma discussão dentro da UE sobre como financiar esse rearmamento em tempos de orçamentos apertados. O valor que já está sobre a mesa há algum tempo é de 500 bilhões de euros para os próximos dez anos. Os países-membros precisam de um espaço de manobra fiscal maior, enfatizou Von der Leyen. Semanas atrás, na Conferência de Segurança de Munique, ela já havia defendido flexibilizar as regras de endividamento da UE para elevar os gastos militares.

Scholz lembrou que também a ajuda de longo prazo à Ucrânia seria custosa para os europeus e representaria "desafios significativos" aos orçamentos.

Starmer concluiu anunciando que os líderes voltarão a se encontrar dentro de algumas semanas. Segundo ele, a Europa está numa encruzilhada histórica: "Este não é um momento para mais palavras. É hora de agir. É hora de dar um passo à frente, liderar e se unir em torno de um novo plano para uma paz justa e duradoura."

¨      Professor analisa impacto da suspensão da ajuda militar dos EUA à Ucrânia

A interrupção da ajuda militar dos Estados Unidos à Ucrânia, anunciada por Donald Trump, marca uma mudança significativa na política externa americana e pode ter profundas implicações geopolíticas globais.

Segundo o professor de história dos EUA na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), Marcos Sorrilha, essa decisão vai além de uma simples estratégia de negociação. “Há de fato uma alteração na visão geopolítica norte-americana que vem sendo desenhada pelo menos desde os anos Reagan”, afirma Sorrilha.

O especialista argumenta que essa nova interpretação da política externa do governo Trump contrasta com a postura dos EUA como “polícia do mundo” adotada nas últimas décadas. Agora, o foco parece estar voltando para o que eles chamam de “próprio continente”, priorizando questões como o combate à China no Pacífico e a imigração na fronteira sul.

<><> Impacto na OTAN e na Europa

A decisão americana levanta questões sobre o futuro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Sorrilha avalia que, embora seja prematuro falar em um “atestado de óbito” para a aliança, é evidente que há um enfraquecimento. “É um sinal de que a Europa deve buscar caminhos próprios para pensar a sua própria defesa e a construção de alianças internas”, explica.

O professor alerta para possíveis consequências dessa mudança de postura dos EUA: “Não apenas teremos um avanço do armamento e do investimento em armas crescendo ao redor do mundo, mas também a ampliação da participação dos países das potências mundiais não apenas no campo da influência financeira, mas também com presença de soldados no chão”.

<><> Reações das potências mundiais

Sorrilha destaca que essa nova abordagem dos EUA pode ser interpretada por outras potências, como Rússia e China, como um sinal verde para proteger seus próprios campos de influência. Isso poderia levar a um cenário de maior instabilidade global e potenciais conflitos regionais.

O especialista ressalta a importância do discurso do Estado da União, que Trump fará em breve, como um momento crucial para entender melhor as intenções da política externa americana. “Podemos ficar de olho sim na televisão porque muito provavelmente esse discurso vai ser impactante“, conclui Sorrilha.

 

Fonte: DW Brasil/CNN Brasil

 

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