Índia já propôs
enviar ao Brasil milhões de camponeses para erradicar a fome e pobreza em seu território
Em fevereiro de 1974, o presidente indiano Varahagiri Venkata Giri
(1969-1974) e a primeira-ministra Indira Gandhi receberam uma carta vinda da
cidade de Kerala com um pedido inesperado: “promover uma emigração em massa de
camponeses indianos” para o Brasil.
A carta foi enviada por Mathew Pallithanam, secretário organizador da
Associação de Amizade Indo-Brasileira na cidade costeira de Alleppey. Junto com
a carta, a associação anexou um plano detalhado intitulado “Um Êxodo Intercontinental”, que descreveu a proposta
de migração em massa para o
Brasil como uma “necessidade para a erradicação da fome e da pobreza humanas”.
“Os patrocinadores da proposta esperam fervorosamente que, se [a
emigração] puder ser alcançada, será um passo sem precedentes para a libertação
do sofrimento de milhões de pessoas em nosso país e para o bem-estar de toda a
humanidade”, escreveu Pallithanam na carta.
·
Por que o Brasil?
Mas, por que o Brasil? “Um vasto país no Novo Mundo, quase três vezes
maior que a Índia em área e de instalações e potencialidades naturais
insuperáveis, mas apenas 1/7 da população da Índia, já estendeu as mãos a nós
para uma luta conjunta por maior prosperidade”, diz a proposta.
O documento acrescenta que o presidente brasileiro Artur da Costa e
Silva [1967-1969, durante a ditadura militar] discutiu a
ideia com Indira Gandhi durante sua visita ao país sul-americano em 1968.
Nem Pallithanam nem Costa e Silva foram os primeiros a sugerir o envio
de indianos para o Brasil. Já em 1948, Mahatma Gandhi havia falado com o
advogado e político Chetput Pattabhiraman Ramaswami Iyer sobre a perspectiva de
reassentar refugiados da Partição [da Índia – evento ocorrido em 1947 quando
surgiram dois países independentes na região, a Índia e o Paquistão, o que
deslocou milhões de pessoas e gerou crise humanitária] no país sul-americano –
uma conversa registrada por Iyer na revista Bhavan’s
Journal, uma publicação da Bhartiya Vidya Bhavan [Instituto de
educação superior na Índia], duas décadas depois.
“Foi de fato depois de uma entrevista muito amigável com ele, menos de
um mês antes de seu assassinato, que empreendi, no decorrer de minhas viagens,
uma viagem ao Brasil, onde Gandhi me pediu para descobrir se havia algum espaço
para assentamento dos refugiados do Paquistão”, escreveu Iyer.
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Relações diplomáticas
Embora as autoridades do Brasil possam ter apoiado a ideia na época, a
possibilidade foi descartada porque as relações diplomáticas entre os
dois países estavam tensas pelo apoio brasileiro à posição portuguesa no estado
indiano de Goa.
“Enquanto o Brasil tentava explicar à Índia que sua posição deveria ser
entendida no contexto de uma longa tradição de amizade entre Brasil e Portugal,
o governo indiano estava profundamente desapontado com o fato de o Brasil, um
país democrático e uma ex-colônia, apoiar um Portugal não democrático contra a
Índia democrática e recentemente independente”, escreveu o cientista político
alemão-brasileiro Oliver Stuenkel no Indian
Foreign Affairs Journal em 2010. “O episódio complicou
significativamente os laços entre os dois países, especialmente porque a
campanha para integrar Goa ao território indiano foi imensamente popular entre
os indianos”.
Apesar das relações diplomáticas difíceis, as portas do Brasil pareciam
permanecer abertas para os indianos. “Em 1958, o presidente do Brasil, em uma
mensagem ao presidente indiano Rajendra Prasad (1950-1962), convidou
oficialmente os colonos indianos para o Brasil, garantindo muitas facilidades
para migração e assentamento”, disse a Associação de Amizade Indo-Brasileira em
sua proposta. “Naquela época, a Índia tinha, na prática, pouco comércio com o
Brasil e a proposta teve que ser posta de lado por falta de divisas necessárias
para sua execução”.
As coisas mudaram após a libertação de Goa em 1961. As relações
diplomáticas entre a Índia e o Brasil começaram a melhorar gradualmente e houve
vários intercâmbios de alto nível, levando à visita de Indira Gandhi ao país
sul-americano em 1968.
Em sua proposta, a Associação de Amizade Indo-Brasileira citou diversas
razões pelas quais a ideia de migração merecia um novo olhar. Ela mencionou a
necessidade brasileira de imigrantes para explorar seus vastos recursos
naturais e acrescentou que havia imensa simpatia pela Índia no país.
“Com um amor tradicionalmente inerente pela paz e níveis educacionais
muito elevados, os brasileiros nutrem a mais alta estima por Gandhiji, Tagore e
pelo povo da Índia e, por meio de suas leis de emigração, oferecem imensas
promessas para que os indianos migrem para o país”, diz a carta. “Para lidar
com as necessidades imediatas e de longo alcance da Índia e da humanidade e em
cumprimento honroso das políticas e programas dedicados de esforços conjuntos
para um futuro grande e próspero, tornou-se um apelo histórico para os
camponeses indianos de hoje migrarem para o Brasil”.
A associação tinha grandes objetivos. Não se contentou com uma pequena
onda de migração e, em vez disso, chamou um milhão de indianos para o Brasil na
década de 1980 e outro milhão na década de 1990. Isso incluía pessoas
qualificadas e semiqualificadas, que dificilmente poderiam ser classificadas
como “camponeses”.
“O governo brasileiro de bom grado alocaria alguns milhões de acres de
terra na fértil bacia amazônica ou em
outro lugar para nossos emigrantes por um preço justo e pagamento de liquidação
de longo prazo com o devido reconhecimento dos direitos e privilégios de
cidadania também”, escreveu a associação. “Para cada cem famílias na comunidade
de emigrantes, deve haver um médico, cinco enfermeiros, um engenheiro, cinco
especialistas agroindustriais (graduados ou superiores), cinco professores e um
número suficiente de artistas, músicos, etc. para serviços sociais organizados
e entretenimento da unidade”.
Para gerenciar o vasto processo de migração, a associação propôs a
formação de um órgão estatutário internacional com um capital social de US$100
bilhões. “Os governos da Índia e do Brasil podem contribuir com 40% cada um do
capital social, e a Organização das Nações Unidas (ONU) com 20%”, disse. “Dentro do quadro, pode haver uma margem para que
as pessoas dos respectivos países subscrevam o capital social”.
Outra tarefa que a associação propôs que o novo órgão estatutário
poderia realizar é financiar a produção de bens de consumo e equipamentos
industriais. “Os camponeses indianos, especialmente
os de Kerala, possuem as habilidades e talentos agroindustriais necessários”,
disse ele. “Mas certos fatores psicológicos e econômicos exigem um
empreendimento corporativo da Índia, do Brasil e das Nações Unidas”.
Por fim, a associação apelou aos líderes católicos de ambos os países
para que ajudem os imigrantes indianos a se integrarem em seu novo lar. Isso
foi curioso. Não havia nada na proposta que sugerisse que ela seria destinada
apenas aos católicos indianos e a associação esclareceu que o país sul-americano
de maioria católica era oficialmente secular e conhecido por sua tolerância
religiosa.
·
Relatório secreto da Índia
Tanto o Rashtrapati Bhavan quanto o Secretariado do primeiro-Ministro
consideraram seriamente a proposta da Associação de Amizade Indo-Brasileira,
mas não responderam imediatamente. O diretor da Secretaria do primeiro-ministro
encaminhou os documentos ao Ministério das Relações Exteriores, que solicitou
ao embaixador indiano em Brasília que os estudasse detalhadamente.
Algumas semanas depois, a divisão das Américas do Ministério das
Relações Exteriores da Índia apresentou um relatório secreto e altamente
crítico.
“A questão sobre as possibilidades de emigração de indianos para o
Brasil, Paraguai e Argentina foi levada aos
governos interessados por meio de nossas missões desde 1964”, diz o relatório.
“Embora o Paraguai e a Argentina tenham dado respostas encorajadoras, o governo
brasileiro não demonstrou nenhuma disposição especial em favor da emigração de
indianos para o Brasil”.
O governo brasileiro definitivamente não imaginou o montante, os números
da migração proposta pela Associação de Amizade Indo-Brasileira. Além disso, o
custo trouxe desânimo, assim como aos indianos.
O relatório do Ministério das Relações Exteriores da Índia disse que o
Secretariado do Gabinete não considerou a proposta viável “principalmente
devido ao enorme envolvimento de divisas”. Outros motivos citados para a
rejeição foram:
1. Não há escopo para assentar um número considerável de indianos devido
à distância e ao custo envolvidos.
2. É improvável que a emigração assistida resolva nosso problema
populacional.
3. Por um custo muito menor, poderíamos desenvolver áreas dentro da
Índia, o que aliviaria a pressão sobre áreas congestionadas.
4. É prematuro considerar tal esquema em um momento em que até mesmo os
indianos que vivem no exterior há muito tempo estão enfrentando situações que
podem forçá-los a retornar à Índia.
Em uma resposta manuscrita ao relatório do Ministério das Relações
Exteriores, o diplomata indiano Raj Krishna Tandon, que serviu como embaixador
em países como Irlanda e Holanda, disse que “os imigrantes semi-qualificados ou
qualificados, que os brasileiros provavelmente querem, são aqueles que não
podemos nos dar ao luxo de perder… Além disso, o Brasil provavelmente também
quer investimento privado estrangeiro, juntamente com pessoal qualificado. “Não
podemos permitir uma saída de capital num futuro próximo”.
A ambiciosa proposta de enviar dois milhões de indianos para o Brasil ao
longo de duas décadas recebeu um rápido enterro. Se tivesse sido implementado,
só podemos imaginar as complicações da migração em massa e seu impacto no agora
caloroso relacionamento diplomático da Índia com o Brasil.
Fonte: Opera Mundi
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