segunda-feira, 10 de março de 2025

Índia já propôs enviar ao Brasil milhões de camponeses para erradicar a fome e pobreza em seu território

Em fevereiro de 1974, o presidente indiano Varahagiri Venkata Giri (1969-1974) e a primeira-ministra Indira Gandhi receberam uma carta vinda da cidade de Kerala com um pedido inesperado: “promover uma emigração em massa de camponeses indianos” para o Brasil.

A carta foi enviada por Mathew Pallithanam, secretário organizador da Associação de Amizade Indo-Brasileira na cidade costeira de Alleppey. Junto com a carta, a associação anexou um plano detalhado intitulado “Um Êxodo Intercontinental”, que descreveu a proposta de migração em massa para o Brasil como uma “necessidade para a erradicação da fome e da pobreza humanas”.

“Os patrocinadores da proposta esperam fervorosamente que, se [a emigração] puder ser alcançada, será um passo sem precedentes para a libertação do sofrimento de milhões de pessoas em nosso país e para o bem-estar de toda a humanidade”, escreveu Pallithanam na carta.

·        Por que o Brasil?

Mas, por que o Brasil? “Um vasto país no Novo Mundo, quase três vezes maior que a Índia em área e de instalações e potencialidades naturais insuperáveis, mas apenas 1/7 da população da Índia, já estendeu as mãos a nós para uma luta conjunta por maior prosperidade”, diz a proposta.

O documento acrescenta que o presidente brasileiro Artur da Costa e Silva [1967-1969, durante a ditadura militar] discutiu a ideia com Indira Gandhi durante sua visita ao país sul-americano em 1968.

Nem Pallithanam nem Costa e Silva foram os primeiros a sugerir o envio de indianos para o Brasil. Já em 1948, Mahatma Gandhi havia falado com o advogado e político Chetput Pattabhiraman Ramaswami Iyer sobre a perspectiva de reassentar refugiados da Partição [da Índia – evento ocorrido em 1947 quando surgiram dois países independentes na região, a Índia e o Paquistão, o que deslocou milhões de pessoas e gerou crise humanitária] no país sul-americano – uma conversa registrada por Iyer na revista Bhavan’s Journal, uma publicação da Bhartiya Vidya Bhavan [Instituto de educação superior na Índia], duas décadas depois.

“Foi de fato depois de uma entrevista muito amigável com ele, menos de um mês antes de seu assassinato, que empreendi, no decorrer de minhas viagens, uma viagem ao Brasil, onde Gandhi me pediu para descobrir se havia algum espaço para assentamento dos refugiados do Paquistão”, escreveu Iyer.

·        Relações diplomáticas

Embora as autoridades do Brasil possam ter apoiado a ideia na época, a possibilidade foi descartada porque as relações diplomáticas entre os dois países estavam tensas pelo apoio brasileiro à posição portuguesa no estado indiano de Goa.

“Enquanto o Brasil tentava explicar à Índia que sua posição deveria ser entendida no contexto de uma longa tradição de amizade entre Brasil e Portugal, o governo indiano estava profundamente desapontado com o fato de o Brasil, um país democrático e uma ex-colônia, apoiar um Portugal não democrático contra a Índia democrática e recentemente independente”, escreveu o cientista político alemão-brasileiro Oliver Stuenkel no Indian Foreign Affairs Journal em 2010. “O episódio complicou significativamente os laços entre os dois países, especialmente porque a campanha para integrar Goa ao território indiano foi imensamente popular entre os indianos”.

Apesar das relações diplomáticas difíceis, as portas do Brasil pareciam permanecer abertas para os indianos. “Em 1958, o presidente do Brasil, em uma mensagem ao presidente indiano Rajendra Prasad (1950-1962), convidou oficialmente os colonos indianos para o Brasil, garantindo muitas facilidades para migração e assentamento”, disse a Associação de Amizade Indo-Brasileira em sua proposta. “Naquela época, a Índia tinha, na prática, pouco comércio com o Brasil e a proposta teve que ser posta de lado por falta de divisas necessárias para sua execução”.

As coisas mudaram após a libertação de Goa em 1961. As relações diplomáticas entre a Índia e o Brasil começaram a melhorar gradualmente e houve vários intercâmbios de alto nível, levando à visita de Indira Gandhi ao país sul-americano em 1968.

Em sua proposta, a Associação de Amizade Indo-Brasileira citou diversas razões pelas quais a ideia de migração merecia um novo olhar. Ela mencionou a necessidade brasileira de imigrantes para explorar seus vastos recursos naturais e acrescentou que havia imensa simpatia pela Índia no país.

“Com um amor tradicionalmente inerente pela paz e níveis educacionais muito elevados, os brasileiros nutrem a mais alta estima por Gandhiji, Tagore e pelo povo da Índia e, por meio de suas leis de emigração, oferecem imensas promessas para que os indianos migrem para o país”, diz a carta. “Para lidar com as necessidades imediatas e de longo alcance da Índia e da humanidade e em cumprimento honroso das políticas e programas dedicados de esforços conjuntos para um futuro grande e próspero, tornou-se um apelo histórico para os camponeses indianos de hoje migrarem para o Brasil”.

A associação tinha grandes objetivos. Não se contentou com uma pequena onda de migração e, em vez disso, chamou um milhão de indianos para o Brasil na década de 1980 e outro milhão na década de 1990. Isso incluía pessoas qualificadas e semiqualificadas, que dificilmente poderiam ser classificadas como “camponeses”.

“O governo brasileiro de bom grado alocaria alguns milhões de acres de terra na fértil bacia amazônica ou em outro lugar para nossos emigrantes por um preço justo e pagamento de liquidação de longo prazo com o devido reconhecimento dos direitos e privilégios de cidadania também”, escreveu a associação. “Para cada cem famílias na comunidade de emigrantes, deve haver um médico, cinco enfermeiros, um engenheiro, cinco especialistas agroindustriais (graduados ou superiores), cinco professores e um número suficiente de artistas, músicos, etc. para serviços sociais organizados e entretenimento da unidade”.

Para gerenciar o vasto processo de migração, a associação propôs a formação de um órgão estatutário internacional com um capital social de US$100 bilhões. “Os governos da Índia e do Brasil podem contribuir com 40% cada um do capital social, e a Organização das Nações Unidas (ONU) com 20%”, disse. “Dentro do quadro, pode haver uma margem para que as pessoas dos respectivos países subscrevam o capital social”.

Outra tarefa que a associação propôs que o novo órgão estatutário poderia realizar é financiar a produção de bens de consumo e equipamentos industriais. “Os camponeses indianos, especialmente os de Kerala, possuem as habilidades e talentos agroindustriais necessários”, disse ele. “Mas certos fatores psicológicos e econômicos exigem um empreendimento corporativo da Índia, do Brasil e das Nações Unidas”.

Por fim, a associação apelou aos líderes católicos de ambos os países para que ajudem os imigrantes indianos a se integrarem em seu novo lar. Isso foi curioso. Não havia nada na proposta que sugerisse que ela seria destinada apenas aos católicos indianos e a associação esclareceu que o país sul-americano de maioria católica era oficialmente secular e conhecido por sua tolerância religiosa.

·        Relatório secreto da Índia

Tanto o Rashtrapati Bhavan quanto o Secretariado do primeiro-Ministro consideraram seriamente a proposta da Associação de Amizade Indo-Brasileira, mas não responderam imediatamente. O diretor da Secretaria do primeiro-ministro encaminhou os documentos ao Ministério das Relações Exteriores, que solicitou ao embaixador indiano em Brasília que os estudasse detalhadamente.

Algumas semanas depois, a divisão das Américas do Ministério das Relações Exteriores da Índia apresentou um relatório secreto e altamente crítico.

“A questão sobre as possibilidades de emigração de indianos para o Brasil, Paraguai e Argentina foi levada aos governos interessados por meio de nossas missões desde 1964”, diz o relatório. “Embora o Paraguai e a Argentina tenham dado respostas encorajadoras, o governo brasileiro não demonstrou nenhuma disposição especial em favor da emigração de indianos para o Brasil”.

O governo brasileiro definitivamente não imaginou o montante, os números da migração proposta pela Associação de Amizade Indo-Brasileira. Além disso, o custo trouxe desânimo, assim como aos indianos.

O relatório do Ministério das Relações Exteriores da Índia disse que o Secretariado do Gabinete não considerou a proposta viável “principalmente devido ao enorme envolvimento de divisas”. Outros motivos citados para a rejeição foram:

1. Não há escopo para assentar um número considerável de indianos devido à distância e ao custo envolvidos.

2. É improvável que a emigração assistida resolva nosso problema populacional.

3. Por um custo muito menor, poderíamos desenvolver áreas dentro da Índia, o que aliviaria a pressão sobre áreas congestionadas.

4. É prematuro considerar tal esquema em um momento em que até mesmo os indianos que vivem no exterior há muito tempo estão enfrentando situações que podem forçá-los a retornar à Índia.

Em uma resposta manuscrita ao relatório do Ministério das Relações Exteriores, o diplomata indiano Raj Krishna Tandon, que serviu como embaixador em países como Irlanda e Holanda, disse que “os imigrantes semi-qualificados ou qualificados, que os brasileiros provavelmente querem, são aqueles que não podemos nos dar ao luxo de perder… Além disso, o Brasil provavelmente também quer investimento privado estrangeiro, juntamente com pessoal qualificado. “Não podemos permitir uma saída de capital num futuro próximo”.

A ambiciosa proposta de enviar dois milhões de indianos para o Brasil ao longo de duas décadas recebeu um rápido enterro. Se tivesse sido implementado, só podemos imaginar as complicações da migração em massa e seu impacto no agora caloroso relacionamento diplomático da Índia com o Brasil.

 

Fonte: Opera Mundi

 

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