O relógio e a delicadeza
“Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”. Talvez essa seja
a frase mais reproduzida em cartazes e camisetas, sempre acompanhada da icônica
foto do Che, a imagem de um revolucionário. Ainda que Che Guevara nunca a tenha
enunciado exatamente assim, a frase continua a expressar o melhor espírito da
militância e nos oferece uma chave humana única, a nos inspirar em meio a uma
dura luta de resistência contra obscurantismos e ditaduras.
Agora, porém, esse tipo de sensibilidade parece
apartada da política, de qualquer linha política. No chão duro da gestão e das
lutas partidárias, a alma delicada pode até ser acusada de despreparo e
fraqueza. A política seria para os fortes e, em geral, feita sem deixar
testemunhas. Nesse campo, portanto, estaria abolida qualquer sensibilidade
excessiva – como a que, outrora, com o perdão da impropriedade, diziam ser
feminina.
A sensibilidade, ao contrário, deveria ser a própria
medida do humano. Infelizmente, costuma-se endurecer com o concomitante
sacrifício de qualquer ternura. Esquecem muitos que, com isso, a completa
rispidez, sobretudo no detalhe, pode deixar marcas terríveis. Conseguimos,
muita vez, sobreviver a grandes ataques, mas todo nosso sangue pode esvair-se
por um corte mínimo, quase à flor da pele.
É claro que alguma selvageria faz parte da interação
humana, como se fora um traço perene de toda sociedade. Não cabe aqui nenhuma
ilusão. Porém, essa atitude do tipo “não é nada pessoal, são apenas negócios”
pode ser a regra em outro contexto que não o da política, uma vez que esta
sempre há de exigir justificativas, e essas são irredutíveis a meros
resultados.
Um teste da rudeza política precisa ser formulado, indicando
quem tem mais chances de sobreviver e vencer na política e quem, por outro
lado, pode representar uma visão humana e progressista. Arrisquemos um possível
questionário – e resta a curiosidade em saber a opinião do eventual leitor,
caso queira associar as características abstratas descritas abaixo a nomes de
nossa política, embora esta nossa especulação seja tão somente, como se diz,
uma mera obra de ficção.
Os políticos não se distinguem por terem mais ou menos
inteligência, vale lembrar. A inteligência é um dado de destino, estando ela,
ademais, bem distribuída por todas as categorias, de sorte que não implica por
si só traços virtuosos de caráter. Tendo isso em conta, podemos perguntar quem
costuma vencer a luta política: Quem atropela seus adversários e desrespeita
interesses alheios ou quem hesita em atravessar um sinal? Uma pauta
progressista ou valores tradicionais e reacionários? O democrático na gestão ou
o autoritário? Quem representa valores ou quem luta por interesses? Prevalecem
os realistas ou os tocados pela utopia? Quem se mede pela óbvia superioridade
da força ou quem se inclina por argumentos, detalhes e, quem sabe,
lenga-lengas?
A lista de questões pode ser ampliada em muito, em
traços largos ou acerca de decisões imediatas, visando a desvelar aspectos
ideológicos, psicológicos, políticos e intelectuais. Se não nos enganamos no
diagnóstico, afirma-se amiúde a crueldade da pragmática política.
As divisões da infantaria tendem sempre a prevalecer
sobre os cuidados da banda de música. E ganha um doce quem souber elaborar uma
classificação das personalidades ora no poder ou fora dele, neste momento ou em
outros, proporcionando o poder efetivo dos governantes em conformidade com a
cadeia de características desse teste – ou de algum outro mais sagaz e
apropriado.
De nossa parte, arriscamos privadamente uma simulação,
sem discriminar nomes, pois alguns são óbvios demais para merecerem ser
citados. Nada tinha de improvável a conclusão pavorosa a que chegamos de
poderem parecer mais aptos para a política e terem mais poder aqueles capazes
de reunir as características, digamos, de serem ideologicamente reacionários,
politicamente autoritários e pessoalmente grosseiros.
Um absurdo, sem sombra de dúvida; mas tais atributos
podem ser lidos como aptidão para a política e mais propícios à obtenção de
resultados, de modo semelhante a como a competição parece a muitos preferível
por ser ela capaz de nos fazer chegar ao “melhor dos resultados”, mesmo ao
preço de extrair o pior das pessoas. Por outro lado, aplicando o mesmo teste,
espíritos sensíveis, corteses e dispostos a múltiplos “considerandos” estariam
condenados ao fracasso e à obsolescência.
Dada essa taxonomia, com a projeção de cenários
infernais, quem sabe até que ponto podem chegar essas pessoas rudes no
exercício do poder. Tampouco podemos prever o quão subservientes a seus
desmandos podem ser os que, sem a devida altivez, lhes atribuem méritos que
estão longe de ter ou direitos que lhes deveríamos recusar.
São grandiosos e raros os líderes capazes de
acrescentar uma nota pessoal ao exercício de suas funções públicas. Toda figura
pública sabe que o jogo é duro. Entretanto, em meio à conflagração de
interesses, o grande líder estabelece um vínculo único e pessoal com seus
seguidores – um vínculo tão forte que parece independer de circunstâncias as
mais mesquinhas e outras quaisquer ninharias mortais. A gente não quer só
comida, afinal de contas; a gente quer comida, diversão e arte.
Trabalhamos até em dobro para retribuir um simples
afago, uma atenção que nos pareça sincera. Como lembrava um bom pregador,
gentileza gera gentileza; e a aridez pura torna-se o terreno natural apenas
para os capazes de sacrificar princípios por interesses.
Na capacidade de gerar um vínculo especial com as
pessoas, nosso presidente Lula é inigualável. Seu abraço nos aparece sincero,
acolhedor, sendo capaz de dobrar quaisquer resistências e de fascinar mesmo os
mais céticos. Considerem esta uma declaração assumidamente feita sem a mais
mínima prova. Esses laços intransferíveis só podem ser atestados por quem já
teve a experiência de alguma prosa, de algum ritual, mesmo fugaz, de
aproximação e acolhimento. Ou seja, não podem ser provados para quem não os
conheça e dispensam demonstração para os convertidos.
Agora, entretanto, temos múltiplos testemunhos de que,
supostamente, parte do encanto teria esmaecido – o que talvez se reflita na
recente queda de aprovação do governo. Como é possível, todavia, que um laço
assaz indemonstrável se dissolva? Como poderia faltar à liderança mais
acolhedora seu poder de encantamento? Permitam-me aqui uma hipótese, esta
também resistente a uma mera prova.
Ora, é mesmo difícil entender a mudança, se ela, de
fato, existe. Afinal de contas, a prisão não o tornou amargo, mas talvez, é
parte de nossa hipótese, tenha retirado muito da sua paciência. Retornou à cena
valorizando então os que lhe trazem mais “entregas” e as mais imediatas,
conquanto para isso possam embaralhar agressividade pessoal e argúcia política.
O tempo encolheu.
É incalculável, contudo, o dano que pode resultar do
convívio com pessoas alçadas a grande poder, mas cuja inteligência (geralmente
grande) pode conviver com a falta de polidez e, por vezes, com visões
reacionárias da vida em comum ou com métodos agressivos e autoritários para a
obtenção de quaisquer resultados. Não pode ser só nem sobretudo isso, é claro;
mas é isso também. Nosso presidente deveria tomar um banho de folha e afastar
as pessoas nefastas, recuperando sua característica sensibilidade e sua
singular gentileza.
Em suma, a maior liderança brasileira precisa voltar a
gastar mais do seu tempo no cuidado com o outro – virtude em cujo exercício não
tem igual. Entretanto, episódios recentes o mostram bem distante disso.
Mostram, sim, uma impaciência crescente, algo que nenhum expediente de
comunicação pode curar.
E, não duvidem, adversários que são um perigo para
nossa democracia hão de cobrar qualquer deslize e ampliar qualquer falta. A
direita, sobretudo, constitutivamente violenta, aguarda ansiosa para mostrar
que, de pleno direito, a pauta da agressividade e da exclusão é toda sua, mesmo
quando revestida de títulos acadêmicos e discursos técnicos de competência.
Além do banho de folha, que é de lei, sugiro que nosso
presidente seja invadido por algum lirismo. Afinal de contas, perante um
contexto tornado árido e feito sob medida para fazer parecer mais fortes os
que, homens ou mulheres, apenas são mais rudes, há que contra-atacar com alguma
poesia.
Para entendermos a gravidade de um gesto banal,
valhamo-nos aqui de um dos nossos mais sensíveis poetas, Mario Quintana, capaz
de extrair poesia elevada até dos pequenos anúncios de jornais. Quintana
abomina a indiferença, a pressa, o descaso, até mesmo diante de quem, inerte,
deixou de funcionar, por ter sido subtraído do tempo. Ou seja, mesmo diante de
quem tenha falecido, impor-se-ia uma delicadeza simbólica. Ensina, pois, em seu
poema em prosa “Do tempo”: “Nunca se deve consultar o relógio perto de um
defunto. É uma falta de tato, meu caro senhor… uma crueldade… uma imperdoável
indelicadeza…”.
Imaginem então quão grave é a indelicadeza quando se
tem pressa diante de quem permanece, de quem vai continuar seu serviço público
e deve ser estimulado e louvado em sua luta. Como se fora um adolescente que
não desgruda de um celular, Lula foi flagrado olhando o relógio com impaciência
exatamente na cerimônia que tinha o claro e consabido significado de ser a
despedida do cargo de uma extraordinária figura pública, a ministra Nísia
Trindade – que, ademais, é uma sua correta e competente aliada.
Um Lula em plena forma, com seu raro talento político,
podia ter transformado o momento em uma singela homenagem, um afago, mas esteve
bem longe disso. Podia exatamente frisar que alguém da estatura de Nísia, tendo
já prestado um grande serviço, continua viva e firme e, por isso mesmo, para
além de qualquer cortesia cerimonial, ela mereceria mais ainda todos os
meneios.
O constrangimento tornou-se visível por Nísia Trindade
não ter perdido a compostura, nem ter manifestado qualquer ressentimento. Sua
pauta, inclusive à frente do ministério, tem sido mais larga; e ela não
abandonou, nem abandonará o compromisso com um projeto que, afinal, mesmo
deixando vítimas no caminho, nos vincula a uma sociedade democrática, com saúde
e, esperamos, com doses generosas de delicadeza.
Alguns querem esquecer esse episódio rapidamente.
Outros insistem na imagem da “entrega” – péssimo vocabulário, aliás, que
deveria ser abolido em nosso meio, porquanto reduz a interação da política a
uma medida de comércio e não à realização de princípios. A cultura política da
entrega nivela todos os partidos, subordina todos à mesma medida. Por isso,
veludosas vozes dos diversos campos dizem com pretensa sabedoria: Nísia
Trindade não teria feito a devida “entrega”.
Dois equívocos estão presentes nessa crítica. O
primeiro é esse desvio genérico que repelimos acima, porquanto carregado da
antiga retórica do “progresso”, que despreza circunstâncias e não poupa nada
nem ninguém. O segundo é a aplicação de uma medida gerencial que ignora a
especificidade das políticas de saúde, cuja praxe Nísia Trindade respeitou ao
começar a implementar pelos estados o programa Mais Acesso a Especialistas, ou seja, seguindo o que é
necessário ao SUS e sem fazer com que a velocidade da implementação atropele o
cuidado integral das pessoas – e isso é boa política, feita no tempo certo, no
ritmo adequado e conforme às melhores e mais bem-sucedidas práticas.
Contra essa dupla leitura inquinada das “entregas”, é
hora de reiterar nossos cumprimentos a Nísia Trindade, com a certeza de que ela
há de continuar seu notável serviço público, com todo seu brilho e vivacidade.
Com sua postura elegante, ela nos relembra ademais o que podemos ter de melhor
e que continuamos a julgar que deva, sim, ser bem representado pelo próprio
presidente Lula.
Se supostamente não “entregou” no Ministério da Saúde
da forma que lhe pediam, são expressivos e estratégicos os seus resultados, que
podem ser mais bem apreciados por pessoas da área da saúde. Enfim, ela nos
deixa também, nesse episódio infeliz, uma lição exemplar de dignidade pública e
de educação. Lembra-nos, que, pouco importando a correção de uma decisão, ela
jamais pode vir embalada em péssima política. A sensibilidade é revolucionária,
não a rudeza.
Fonte: Por João Carlos Salles, em A
Terra é Redonda
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