'Ainda Estou Aqui':
os bastidores da carta que expôs o caso Rubens Paiva ao mundo e ajudou a soltar
Eunice
Naquele final de
janeiro de 1971, em um apartamento confortável da Zona Sul do Rio de Janeiro,
uma adolescente de 15 anos tinha diante de si algumas folhas de papel, uma
caneta e uma missão difícil para qualquer pessoa: tirar os próprios pais da
cadeia.
Seu nome era Eliana Paiva. Seus pais eram o
deputado federal cassado Rubens Paiva e Maria Eunice Paiva. Àquela altura, os
dois estavam detidos em um quartel do Exército, no Rio de Janeiro. Eliana
também havia sido presa, junto com a mãe, mas foi liberada um dia depois.
A história do
desaparecimento e morte de Rubens Paiva e da luta de sua família para que ele
fosse reconhecido como uma das vítimas da ditadura militar inspiraram o
livro "Ainda Estou
Aqui",
escrito pelo filho do casal, Marcelo Rubens Paiva.
O livro deu origem
ao filme de mesmo nome dirigido por Walter Salles, estrelado por Fernanda
Torres e vencedor do Oscar
de Melhor Filme neste ano.
Eu seu discurso,
Salle dedicou o prêmio à Eunice. "Esse filme vai para uma mulher que, após
uma perda enorme por um regime autoritário regime, decidiu não se render:
Eunice Paiva."
Fora da cadeia,
coube a Eliana elaborar o primeiro documento redigido por um membro da família
Paiva sobre o caso e expô-lo à opinião pública nacional e internacional.
Até então, o
desaparecimento do deputado por sua ligação com militantes de esquerda e de sua
mulher ainda não havia ganhado repercussão e os amigos da família temiam que,
quanto menos gente soubesse, menores seriam as chances de os dois retornarem
com vida para casa.
De volta à casa,
com a ajuda de amigos, Eliana escreveu uma carta com três páginas em letras
desenhadas nas quais ela denunciava o sumiço dos pais. Foi a primeira
manifestação pública da família Paiva sobre o caso que depois ficaria conhecido
no Brasil e no exterior: o caso Rubens Paiva.
"Era uma
maneira de fazer com que a imprensa internacional pressionasse os militares para
soltar meu pai e a Eunice e colocar foco nesse assunto", disse Eliana
Paiva em entrevista à BBC News Brasil.
O objetivo, porém,
foi apenas parcialmente atingido.
Eunice foi solta no
início de fevereiro daquele ano. Rubens Paiva, no entanto, nunca mais seria
visto. Investigações posteriores apontaram que ele foi torturado e morto por
agentes da ditadura militar enquanto
estava preso. O paradeiro do seu corpo continua um mistério até hoje.
Cinquenta e quatro
anos depois que tudo aconteceu, Eliana Paiva contou à BBC News Brasil os
bastidores que antecederam a elaboração da carta que mobilizou a atenção
internacional sobre os abusos da ditadura militar no Brasil.
A carta faz parte
de um lote específico de documentos organizado em 1981 pelo Ministério da
Justiça atendendo a um pedido de informação sobre o caso feito ao Conselho de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). O documento está disponível para
consulta no site do Arquivo Nacional.
A BBC News Brasil
localizou esta e outras cartas escritas pela família Paiva e conversou com
Eliana sobre o episódio.
·
Os
bastidores da carta
Rubens Paiva era um
ex-deputado federal e engenheiro que morava no Rio de Janeiro com a mulher,
Maria Eunice, e cinco filhos, em uma casa confortável no Leblon, bairro da Zona
Sul da capital fluminense.
Em 1964, a ditadura
militar cassou o seu mandato de deputado federal. Após uma temporada no exílio
na ex-Iugoslávia e na França, Paiva e sua família retornaram ao Brasil e ele
retomou a carreira na construção civil. Apesar disso, manteve contato com
militantes de esquerda.
No dia 20 de
janeiro de 1971, homens à paisana foram à sua casa e anunciaram a sua prisão.
Ele foi levado a um quartel do Exército na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio
de Janeiro. No dia seguinte, os agentes da ditadura levaram Maria Eunice e
Eliana Paiva para prestarem depoimento.
Adolescente, Eliana
passou por três interrogatórios. À BBC News Brasil, ela contou que os militares
colocaram capuzes sobre sua cabeça durante parte do período em que esteve
detida.
Apesar dos momentos
de tensão, no dia seguinte, Eliana foi liberada. Sozinha, pois seu pai e sua
mãe continuavam presos.
À BBC News Brasil,
Eliana contou que a história da carta começou logo depois que ela foi solta, no
dia 22 de janeiro.
"O pessoal do
DOI-CODI me deixou num bar na Tijuca, perto da praça Saens Peña. Me deixaram lá
num fusca. Eles só usavam fuscas. Não me lembro como, mas consegui ligar ao
Bocaiúva. Ele foi me buscar de carro, com um médico", disse. O DOI-CODI é
a sigla para Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de
Defesa Interna, vinculado ao Exército.
Bocaiuva é um uma
referência ao ex-deputado federal Bocaiúva Cunha, um dos melhores amigos de
Rubens Paiva e que no filme é interpretado pelo ator Dan Stulbach.
No reencontro com
os amigos, ela contou que houve um momento de catarse.
"Eu entrei no
carro e caí no choro", contou Eliana.
Eliana disse que
foi levada à casa da família, onde seus avós paternos a aguardavam.
Lá, Eliana contou
que encontrou um cenário de indefinição.
Apesar de seus pais
estarem presos e incomunicáveis, seus avós paternos hesitavam em tornar o caso
público.
Segundo ela, o avô,
o político e fazendeiro Jaime de Almeida Paiva, tinha medo de sobre expor o
episódio porque achava que, por meio de seus contatos políticos, poderia
conseguir a liberação do filho e da nora.
"Meu avô
estava imobilizado [...] ainda houve uma época em que ele esperou por
informações. Ele era rico e desembolsou muito dinheiro para alguns militares
que disseram que poderiam resolver a história comprando informações sobre o meu
pai", contou Eliana.
Em meio a essa
indefinição, coube aos amigos de Rubens Paiva elaborar uma estratégia para
pressionar o regime militar.
Eles já haviam
acionado o advogado Lino Machado para atuar no caso e tentaram um habeas corpus
para obter a liberação do casal, mas não obtiveram sucesso.
Foi nesse momento
que entrou na história um personagem central: o jornalista Raul Ryff.
Nascido na Suíça e
radicado no Brasil havia décadas, Ryff era amigo pessoal de Rubens Paiva e
tinha sido assessor de imprensa do ex-presidente João Goulart, deposto pelo
golpe militar.
Os dois se
refugiaram na embaixada da ex-Iugoslávia após o golpe de 1964 e foram juntos para
o exílio na França antes de voltarem ao Brasil.
No filme
"Ainda estou aqui", Ryff é interpretado pelo ator Daniel Dantas.
Ryff e os amigos de
Rubens, então, elaboram um plano para tentar a liberação do casal.
O plano tinha duas
etapas. Na primeira, Eliana escreveria uma carta relatando o desaparecimento
dos pais.
Na segunda, Ryff e
os amigos de Rubens Paiva usariam suas conexões com a imprensa nacional e
internacional para dar visibilidade ao caso e, assim, pressionar o regime
militar a soltar o casal.
Eliana contou que
escreveu a carta no apartamento de Bocaiuva, enquanto os amigos de seu pai
aguardavam na sala de estar.
"Sou filha de
Rubens Paiva e Maria Eunice Paiva, tenho 15 anos", começava a carta
endereçada ao deputado federal Pedroso Horta, do MDB, que à época integrava o
Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, do qual faziam parte
parlamentares e membros do governo militar.
A carta seguia em
tons dramáticos.
"Soube da
comissão dos direitos humanos e como agora, com 15 anos, já posso me revoltar
diante de injustiças".
No texto, Eliana
contava que seu pai havia sido levado de casa sem explicações e como isso
afetou sua família.
"Minha mãe,
meus irmãos e eu estivemos numa espécie de prisão domiciliar durante 24 horas
depois da prisão de meu pai. Vi a angústia de mamãe e agora minha, sem
compreender o que acontecia, assim como meus irmãos menores. Durante estas
horas, amigos foram me visitar e consequentemente foram presos sem a menor
explicação", diz outro trecho da carta.
Mais adiante, ela fala
sobre a experiência de ter sido presa.
"Fui depois
levada junto de minha mãe à prisão, já passei a noite numa cela. Com isso tudo
não sou mais a mesma garota, como também sou vista de uma maneira diferente
pelos amigos", diz a carta.
Eliana contou à BBC
News Brasil que este trecho teve a influência de Raul Ryff.
"Eu escrevi
uma primeira versão e Ryff corrigiu. Eu escrevi uma segunda versão onde ele
colocou essas coisas mais dramáticas", conta Eliana.
Próximo ao fim, a
carta prosseguia.
"Não sei onde
estão meus pais e os quero de volta para mim e meus irmãos".
Carta pronta, era a
vez de Ryff e seus amigos entrarem em cena.
O documento foi,
então, repassado a correspondentes internacionais de diversos jornais e
revistas.
No dia 2 de
fevereiro de 1971, o jornal norte-americano The New York Times publicou uma
reportagem sobre o caso com base na carta de Eliana. O texto foi escrito pelo
correspondente Joseph Novitski.
Foi a primeira
reportagem internacional sobre o caso Rubens Paiva, conforme relatado pela revista
Piauí, em janeiro deste ano.
Depois do artigo no
jornal norte-americano, outros veículos internacionais divulgaram a história.
Dez dias depois, no
dia 12 de fevereiro, a pressão parecia ter surtido efeito parcialmente: os
militares soltaram Eunice Paiva. Sobre Rubens, no entanto, nenhuma novidade.
Continuava desaparecido.
·
Fúria
e intuição
Ao lembrar dos
momentos que antecederam a carta, Eliana disse à BBC News Brasil como se sentia
naqueles dias.
"Não houve
nenhuma pressão [...] Eu estava furiosa, tensa e centrada porque eu sabia que
eu poderia exercer essa tarefa de soltar meus pais", disse Eliana.
De todas as
sensações que ela afirma ter tido naquela época, uma lhe chamou mais atenção.
Apesar de escrever
pela soltura de seu pai e de sua mãe, Eliana contou que antes mesmo de ser
liberada pelos militares, já sentia que Rubens Paiva havia morrido.
"Minha mãe
ainda estava presa, mas meu pai eu já sabia… eu achava que ele estava morto. E
estava [...] não me pergunte como (eu sabia). Eu não sei. Não sou espírita. Mas
parece que havia uma coisa… foi como uma luz que se apaga", disse.
Em 2014, um
relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) indicou que o sentimento de
Eliana poderia estar certo.
Segundo o
documento, o ex-deputado foi morto sob custódia do Estado brasileiro, pouco
depois de ser preso e torturado nas dependências do Destacamento de Operações
de Informações do I Exército (DOI) no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971.
O relatório da CNV
aponta que a versão oficial divulgada pelo Exército – de que Paiva teria fugido
após um suposto resgate por militantes de esquerda – foi forjada para encobrir
o crime.
Nos anos que se
seguiram ao desaparecimento de seu pai, a família Paiva tentou, por diversos
caminhos, obter informações sobre o paradeiro de Rubens Paiva.
No final dos anos
1970, com o regime militar dando as primeiras amostras de relaxamento da
repressão, a família voltou a recorrer ao governo e pedir a reabertura das
investigações sobre o caso.
Somente em 1996, 25
anos depois do desaparecimento de Rubens Paiva, Maria Eunice Paiva conseguiu
obter uma certidão de óbito do marido, que até então, constava como
desaparecido.
Em 2014, o
relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou que Rubens Paiva teria
sido morto durante interrogatório realizado por militares. Ao todo, a comissão
reconheceu a morte de 434 pessoas, sendo 210 desaparecidas.
Neste ano, após a
repercussão em torno do filme, sua certidão de óbito foi alterada. Agora,
consta como motivo da morte: "não natural; violenta; causada pelo Estado
brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como
dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964".
Apesar disso, 54
anos depois da morte e desaparecimento de Rubens Paiva, ninguém foi punido pelo
episódio. Em 1979, o Congresso Nacional do país aprovou a Lei da
Anistia,
que perdoou crimes de natureza política cometidos durante a Ditadura Militar.
A BBC News Brasil
mostrou, porém, que a repercussão obtida pelo filme "Ainda estou
aqui" influenciou o Supremo Tribunal Federal (STF) a reabrir discussões
sobre a validade ou não da lei aprovada nos anos finais do regime militar.
·
Torcida
pelo Oscar
Mais de cinco
décadas após o desaparecimento e morte de seu pai, Eliana disse à BBC News
Brasil que está feliz com a repercussão positiva que o filme vem tendo e
animada com a possibilidade de o filme ganhar alguma das três categorias
do Oscar às quais foi
indicado. O filme disputa o prêmio de: melhor filme, melhor filme internacional
e melhor atriz, pela interpretação de Fernanda Torres.
Apesar da torcida,
ela disse considerar importante não esquecer do que é que o filme trata.
"A gente
festeja um Oscar e está achando tudo muito bom em termos de denúncia, mas antes
de qualquer coisa, é a denúncia de um assassinato brutal dentro de um quartel
de Exército no Brasil. Do que a gente está tratando é de um assassinato",
disse Eliana.
A jornalista aposentada
disse ainda que espera que o filme consiga atingir outros objetivos para além
do entretenimento.
"O filme
existe para melhorar a memória social e política do Brasil, quando as pessoas
não entendem mais o que aconteceu naquela época. As pessoas conseguem ver o que
acontece ali: o desaparecimento de um pai de família quando o casal era
felicíssimo e a família, por conseguinte, também era feliz", disse Eliana.
Fonte: BBC News
Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário