segunda-feira, 10 de março de 2025

Luiz Marques: A sociedade de mercado

A Revolução Industrial destampou a caixa das obras de ficção científica, em função das inovações tecnológicas postas em marcha. Dois séculos depois, a distopia é parte de nosso cotidiano. O filme alemão, Paraíso (2023), dirigido por Boris Kunz, excelente na avaliação da Netflix, é emblemático dos medos que nos espreitam sob a mercantilização ampla, geral e irrestrita qual uma pandemia. 

No longa, uma corporação global explora o desejo de ascensão social das criaturas em situação de vulnerabilidade, na Europa, comprando anos de suas vidas. Os doadores (refugiados) envelhecem enquanto os receptores (milionários) rejuvenescem. Na abertura, vê-se um funcionário persuadir um jovem a vender quinze anos de existência, em troca do conforto à família que torce pelo “sim”.

Para os neoliberais, a pobreza é um problema – dos pobres. Ao revés de políticas redistributivas do Estado, para aumentar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), postulam um acordo com o diabo para a mutilação corpórea (olhos, pulmões, etc.) a fim de elevar a renda dos miseráveis com órgãos do corpo. Barrigas de aluguel são comercializadas. A travessia do Rubicão já aconteceu.

Em A tirania do mérito (2020), no capítulo “A retórica da ascensão”, Michel Sandel relata o debate em sala de aula, na Universidade de Harvard. “Meu tema era sobre os limites morais dos mercados. Manchetes haviam reportado a história do adolescente que vendeu um dos rins para comprar um iPhone e um iPad”. Essa é a versão prática da visão de mundo hegemônica, em tempos de cólera.

Vários estudantes assumem a posição libertarista de que se o doador concorda em vender um rim, sem pressão ou coação, não tem nada de errado. Outros discordam – é injusto os ricos prolongarem a vida com a máquina de moer do darwinismo social, às expensas dos desvalidos. Alguns ponderam que os ricos com posses, havendo galgado lugares proeminentes na rígida hierarquia, merecem a longevidade ao contrário da massa ignara. A discussão viola prerrogativas vitais e inalienáveis de cada pessoa. Exceção aberta para os gestos de genuína empatia ou amor por um ente querido.

“Fiquei surpreso com a aplicação descarada do pensamento meritocrático”, exclama o filósofo norte-americano. Nem era para tanto. Em templos religiosos, onde o evangelho da prosperidade se abriga, a saúde e a riqueza sempre foram abordadas como dádivas divinas. Hoje o que importa não é decifrar de onde viemos, quem somos ou para onde vamos. A pergunta que interessa é – quanto?

Em livro anterior, O que o dinheiro não compra (2012), o autor tinha ligado o alerta. “Vivemos a época em que quase tudo pode ser comprado ou vendido”. Cita escolas, hospitais e prisões inseridos no cálculo do lucro; terceirização da guerra a empresários militares privados (Afeganistão, Iraque); guardas particulares que somam o dobro da força policial pública (Estados Unidos, Grã-Bretanha). Acrescente-se o mercado de direitos de emissões de carbono no meio ambiente e os mecanismos de compensação. O que inicia na “economia de mercado” acaba na insensível “sociedade de mercado”.

·        Reativar a antítese

O sentimento de náufrago dos que sofrem o sequestro das funções do Estado beneficia o status quo. Dados os carecimentos objetivos e subjetivos, a mera reprodução da força de trabalho é um milagre. Continuar respirando, apesar da precarização trabalhista, demonstra fibra e resiliência. Porém, não uma consciência situacional no contexto em que se esvai qualquer chance para o pacto de classes.

Na batalha diária pela sobrevivência, a supercompetição exalta o vencedor (winner) e estimula os demais a fugirem da triste condição de perdedores (losers). O fato de achar energia todas as manhãs para levantar suscita a sensação de missão cumprida no batalhador: “aquele que trabalha muito”, segundo o Dicionário Houaiss. Quem labuta nos aplicativos exige o justo reconhecimento. Cabe interpelar e não atropelar a categoria em tela com um doutrinarismo abstrato, sem os pés no chão.

O mercado reinstaura o fosso entre “grandes” e “pequenos”; radicaliza o retrocesso civilizacional. O ritual democrático da “fila” se esvanece. Os passageiros de “primeira classe” do avião furam a série da checagem. Nos parques temáticos, um ingresso turbinado burla a sequência de acesso a shows e brinquedos. As políticas neoliberais de Margaret Thatcher (Reino Unido) e Ronald Reagan (EUA) legitimaram a arrogância meritocrática. Agora o poder do dinheiro compra as leis e refaz a ética.

Confrontada com a igualdade, a desigualdade passa a ser preferível para a potencialização das individualidades e das coletividades. A liberdade deixa de ser um predicado coletivo para elaborar um juízo autônomo, à medida que é apropriada por agentes econômicos. A fraternidade é suprimida da agenda institucional. A esfera social antes sólida, desmancha no ar. Prefeitos seguem a moda e privatizam os serviços em troca de publicidade à espera do lance maior no leilão – ou de propinas.

Os riscos são repassados aos indivíduos, em vez de às empresas ou ao Estado. O álibi costuma ser a “modernização”: leia-se a retirada de direitos adquiridos, com o aval das instituições. O período de vida surrupiado da população, com a degradação dos meios de subsistência, é um crime de lesa-humanidade. No Mapa da Desigualdade, os moradores de Tiradentes no extremo leste de São Paulo morrem 23 anos mais cedo do que os de Moema, bairro elegante da capital paulistana. Iniquidades abreviam o finamento dos cidadãos, na periferia. O Bope é apenas a face truculenta do eugenismo.

Achille Mbembe trata o mote em Políticas da inimizade (2020). “A expressão máxima da soberania reside no poder e na capacidade de ditar quem deve viver e quem deve morrer”. No neoliberalismo, o cetro do soberano é o “necropoder” ou a “necropolítica”; preconceitos e extermínios decidem a mortalidade. Os critérios da mercadoria e a ideologia mercadológica se convertem em pilares da dominação atual. Aporofobia, racismo e sexismo servem à depuração na sociedade de mercado. 

O motivo para o vazio moral da política é o banimento dos ideais de bem comum e de participação popular, nos discursos públicos. Cabe à análise política contemporânea travar a disputa por valores para superar as fórmulas positivistas. Há que impedir uma banalização do mal para construir a nova “soberania”, com respeito à democracia pluralista e à diversidade do Homo sapiens em combinação com os princípios da República e da natureza. É preciso reativar a antítese do sistema de opressão com políticas da amizade inclusivas, que universalizem direitos e coíbam privilégios. Sem anistia.

 

¨      Dinâmicas de poder no Brasil. Por Michel Aires de Souza Dias

As dinâmicas de poder no Brasil têm historicamente sido caracterizadas pela ilegalidade e pela violência. O Estado policial que elimina jovens nas periferias, negros, miseráveis e excluídos socialmente mantem um permanente estado de exceção para as camadas mais pobres. Há aqui uma tradição autoritária que tem origem no colonialismo e que se reproduziu por todo o período republicano até nossos dias.

Apesar do Estado de direito em seu fundamento ter por princípio a eliminação do arbítrio no exercício de seus poderes, garantindo os direitos individuais, historicamente sempre existiu práticas autoritárias por parte dos agentes públicos. Essas práticas autoritárias constituem a cultura política em nosso país.

Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (1995) já havia notado um excessivo gosto pela autoridade, pela centralização do poder e pelo imperativo categórico da obediência cega. Esse fato já explica o autoritarismo incrustado na alma do povo brasileiro, como uma espécie de consciência coletiva, que se expressa através do preconceito racial, do despotismo do homem branco privilegiado, da frouxidão das instituições, do personalismo político e da realidade social marcada por grandes desigualdades. No Brasil “toda a hierarquia funda-se necessariamente em privilégios” (Holanda, 1995, p. 35)

Ainda hoje os valores patriarcais da vida colonial são preponderantes na política e nos costumes. As elites continuam a controlar e a se perpetuar nas instituições e nos cargos públicos, assim como no passado colonial. O poder é transmitido de geração em geração, como se os altos postos da república fossem hereditários. O que é público sempre foi uma extensão dos interesses privados.

Durante o período colonial, fazendeiros escravocratas e seus descendentes, formados em profissões liberais, monopolizavam o poder, elegendo-se ou garantindo a eleição de seus aliados. Hoje, esse domínio persiste, agora exercido por empresários do agronegócio e empresários urbanos, que, junto a seus herdeiros, controlam os parlamentos, os ministérios e os principais cargos de decisão: “A família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política as relações entre governantes e governados” (Holanda, 1995, p. 85).

O resultado da dominação histórica das famílias patriarcais em todo o período colonial e nas origens da república é o extremo conservadorismo e o autoritarismo nas estruturas sociais e nas instituições políticas: “o absolutismo colonial se transformou simplesmente no absolutismo das elites” (Pinheiro, 1991, p. 52). Hoje, o comportamento e os valores das classes médias e das classes dominantes são determinados por traços autoritários herdados do Brasil colonial.

A conduta machista, racista, misógina e uma personalidade extremamente autoritária são características de uma parte da população brasileira. Nos últimos anos, o preconceito contra negros, mulheres, pobres e nordestinos se tornou explicito nas redes sociais e em discursos de políticos e autoridades. Isso demonstra que os valores da Casa Grande ainda estão presentes em nossa época: “Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade da Casa Grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes” (Holanda, 1995, p. 87).

Esse imaginário fundamentado no poder dos senhores de terra, no autoritarismo e nas hierarquias sociais colabora para a manutenção dessas estruturas autoritárias, que se reproduzem independentemente de governos. Foi o que o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro denominou de “autoritarismo socialmente implantado”. O autoritarismo se manifesta não somente no plano ideológico (violence douce), mas também no interior das práticas sociais (violence ouvert).

No seio da democracia, o autoritarismo produz um regime de exceção paralelo. Dissemina-se o arbítrio, a repressão física, a violência ilegal, os abusos de poder, e a violência simbólica: “Os organismos responsáveis por essa repressão passam a agir, sem limites, de acordo com as necessidades dos grupos dominantes. Assim, o autoritarismo desvenda na prática o que nas fases democráticas fica dissimulado: o caráter de repressão autoritária e os contornos da violência física ilegal” (Pinheiro, 1991, p. 49).

O autoritarismo faz parte da cultura política brasileira e está diretamente ligada aos sistemas de hierarquias implantadas no período colonial: “Parece estar inscrito numa grande continuidade autoritária que marca a sociedade brasileira (e sua ‘cultura política’) diretamente dependente dos sistemas de hierarquia implantados pelas classes dominantes e reproduzidos regularmente com o apoio dos instrumentos de opressão, da criminalização da oposição política e do controle ideológico sobre a maioria da população” (Pinheiro, 1991, p. 55).

As relações de poder no Brasil tradicionalmente sempre foram marcadas pela ilegalidade e pela violência. A hostilidade, os desmandos, a coerção e as práticas repressivas sempre submeteram a população ao poder arbitrário dos poderosos. Essas práticas autoritárias nunca foram afetadas pelas mudanças institucionais ou de governo. Elas sempre se mantiveram, seja em períodos autoritários ou democráticos.

Nas transições de poder tornou-se comum à persistência da ilegalidade e da violência, sem que o poder judiciário interviesse: “Durante toda a República no Brasil, as práticas repressivas dos aparelhos de Estado e das classes dominantes estiveram caracterizadas por um alto nível de ilegalidade, independentemente da vigência ou não das garantias constitucionais. Para os pobres, miseráveis e indigentes que sempre constituíram a maioria da população podemos falar de um ininterrupto regime de exceção paralelo, sobrevivendo às formas de regime, autoritário ou constitucional” (Pinheiro, 1991, p. 45).

Uma sociedade de tradição escravocrata como a nossa, onde a escravidão durou séculos, criou uma matriz de subordinação que se encontra hoje em todas as esferas da vida social. As relações autoritárias tornaram-se parte da cultura política e do imaginário popular: “Temos então um sistema geral de classificação em que as pessoas são marcadas por categorias extensivas de um modo binário. De um lado, os superiores; de outro, os inferiores” (Damata, 1997, p. 204).

Essas relações hierarquizadas desde o Brasil colônia estão na origem dos preconceitos de classe. São elas que estão na raiz do autoritarismo socialmente implantado, uma vez que são sempre os pobres, miseráveis e excluídos que são estigmatizados e se tornam objetos de violência.

Para Paulo Sérgio Pinheiro (1991), existem três componentes do autoritarismo socialmente implantado: o racismo, a desigualdade social e a violência estatal. São esses três ingredientes que são responsáveis por tornar a sociedade brasileira extremamente autoritária e violenta. Apesar da aparente legalidade do Estado, as instituições judiciárias e penais são omissas. Os aparelhos policiais não são neutros como o discurso das autoridades e políticos pretendem mostrar. O aparato policial está a serviço das classes dominante na defesa da propriedade e do capital.

O terror, os abusos, o arbítrio e a pena de morte são praticados todos os dias, com a cumplicidade das instituições: “Tanto a tortura como a eliminação de suspeitos e outras práticas rotineiras da ‘pedagogia do medo’, sistematicamente aplicada as classes populares (invasões de domicílio, operações sweeps de limpeza das ruas, espancamentos, sequestros, assassinatos no campo, massacres), são tolerados” (Pinheiro, 1991, p. 51).

Essas tendências autoritárias também se manifestam no plano ideológico (violence douce). A violência contra mendigos, pobres, sem tetos e contra os movimentos populares é reforçada e estimulada de modo sutil e, às vezes, de modo explícito, nos meios de comunicação de massa. Geralmente os pobres são vistos como preguiçosos, insubmissos, que vivem de bolsa família e não querem trabalhar. Os que reivindicam terras e moradias são vistos como invasores e terroristas. Os negros da periferia aparecem na televisão de forma estereotipada, como serviçais e muitas vezes como criminosos.

Há também um discurso maniqueísta do bem contra o mal em toda imprensa brasileira, com narrativas simplistas sobre a realidade, principalmente nos assuntos de política e economia. Tornou-se comum o ataque a adversários políticos e aos grupos de oposição, assim como a criminalização de movimentos populares. A população pobre é a que sofre as maiores consequências desse discurso. Colabora com essa visão estereotipada os programas policiais como DatenaCidade Alerta190linha DiretaOperação de riscoComando policial etc. Com o apoio desses programas se fomenta na população o caráter autoritário, que ajuda a reproduzir as práticas repressivas e autoritária na sociedade.

O autoritarismo socialmente implantado se aproxima muito daquilo que o filósofo camaronês Achile Mbenbe (2016) chamou de “necropolítica”. Ele compreendeu a necropolítica como uma forma de racionalidade política que procura eliminar os indesejáveis do sistema capitalista. Para o filósofo, a expressão máxima de soberania hoje reside, em grande medida, no poder e na capacidade de dizer quem pode viver e quem deve morrer. Os atributos fundamentais dessa política é matar ou deixar viver.

Nesse sentido, o exercício da soberania não significa a luta pela autonomia, mas a instrumentalização da vida humana e a destruição material dos corpos e populações. O que define essa política de exclusão e eliminação é o racismo, uma vez que “esse controle pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros” (MBEMBE, 2016, p. 128).

O Estado atualmente não só mata pobres e negros nas periferias, mas também impede o acesso das populações mais humildes aos serviços públicos essenciais. Ao cercear direitos, precarizar o mercado de trabalho, cortar benefícios sociais, impedir o acesso gratuito a medicamentos, privatizar serviços públicos, impedir que os mais pobres tenham acesso a saúde e ao precarizar a educação, o Estado pratica uma política de morte, uma necropolítica.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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